Coração de Jesus, ordenado como um exército em campo de batalha.
O culto ao Sagrado Coração de Jesus foi desvirtuado pelo Romantismo, que baniu dessa devoção as virtudes da sabedoria e da fortaleza, transformando-a em um fogareiro de sentimentalidade. Isso abriu o campo para a penetração dos erros da Ação Católica.
Quando li São Luís Grignion, me entusiasmei e fiz minha consagração a Nossa Senhora. Comecei de imediato a trabalhar para generalizar essa devoção na Congregação de Santa Cecília, à qual pertencia, e na Ação Universitária Católica, da qual era fundador.
Noção errônea a respeito do apostolado
Analisando os estados dos espíritos naquele tempo, vi que o jogo do demônio seria o seguinte: para diminuir o alcance e a robustez da consagração a Nossa Senhora, insistir muito na devoção ao Sagrado Coração de Jesus.
Em princípio, o problema se resolveria com a possibilidade de uma devoção absorver a outra, começando por não temer essa absorção caso fosse bem feita, porque a fórmula de São João Eudes é “o Sagrado Coração de Jesus e de Maria”. Contudo, eu percebia que estavam anexadas à devoção ao Sagrado Coração de Jesus, como ela era praticada então, certas deformações, o que me levou a tocar menos nessa tecla fundamental e insistir muito naquela que o demônio estava querendo silenciar mais no momento, isto é, a devoção pregada por São Luís Grignion, pois atacar essa devoção era o jeito de liquidar com ambas.
Por outro lado, havia um elemento que caracterizava profundamente a diferença entre a devoção e o apostolado daquele grupo que se reunia no salão de cima da sede da Congregação Mariana de Santa Cecília e os do grupo do Legionário.
O apostolado era concebido por eles, sobretudo, como sendo individual. A ideia de conquistar um país por uma ação de caráter político para, por esse meio, operar a conquista dos indivíduos, pareceria ímpia, seria como arrancar o apostolado de dentro do santuário e cobri-lo não sei com que verniz de mau sabor laicista, levando a ver mal o esforço dos católicos nessa direção.
Por aí pode-se imaginar o choque causado na pequena Academia Jackson de Figueiredo, da Congregação de Santa Cecília, quando um jovem congregado mariano, estudante de Direito, de uma das melhores camadas sociais de São Paulo, com o destaque normal que naquele tempo tinha um estudante de Direito, é convidado a falar e, diante de uma grande expectativa dos ouvintes, profere um discurso sobre Maria Antonieta.
“Mas, o que isso tem a ver com o apostolado?! Que loucura é essa?!”
Como eram os horizontes das pessoas imbuídas dessa mentalidade?
As duas principais paróquias nesse mundo de que estou falando eram a de Santa Cecília e a da Consolação. Fazendo uma comparação visual entre ambas as matrizes, nota-se que, embora de estilos e plantas diferentes, são do mesmo quilate, da mesma importância como igrejas.
Assim como havia uma rivalidade intensa entre os dois principais clubes de futebol de então – o Paulistano e o Palmeiras –, que fazia vibrar a cidade inteira quando ambos se confrontavam, no campo religioso rivalizavam as paróquias de Santa Cecília e da Consolação.
O grande problema no que havia de mais interno na paróquia não era conquistar as almas, nem a cidade, muito menos o país e menos ainda o mundo, mas lograr que a próxima semana de estudos promovida por Santa Cecília, ou seja, pelos “cecilianos”, tivesse mais brilho do que a organizada pelos “consolacionianos”, para fazer uma briga que, no fundo, era um ato de amor filial e de dedicação pessoal aos vigários, no caso concreto Mons. Pedrosa e Mons. Bastos. Devido a essa rivalidade, quem queria bem a Mons. Pedrosa não podia deixar de ficar machucado vendo como os outros homenageavam Mons. Bastos, e reciprocamente. Essa era a vida interna com mais nervo e “fecundidade” de uma paróquia.
Incêndio do amor de Deus que trará a regeneração da sociedade
Pode-se imaginar o choque que senti quando me deparei com essa situação, eu que entrara no movimento católico tangido por razões e considerações tão diferentes!
Compreendi que só me era dado ter contra isso uma reação: assistir às conversas e às conjurações recíprocas, interparoquiais, com ar de quem presta muita atenção, um novato que está conhecendo coisas enormes e torcendo… Sem dizer uma palavra, porque eu não podia mentir, mas pensando no íntimo com meus botões: “Quando eu tiver alguma influência aqui, outro galo cantará.”
Tão logo me foi possível, procurei despertar nessas pessoas o interesse a respeito das perseguições religiosas ocorridas naquela ocasião no México. Mostrar-lhes tudo quanto de horrível estava sendo feito lá contra os católicos tiravam-nas um pouco dessa luta de bairros. Então eu dizia: “Rezemos porque esses martírios podem trazer para as nossas almas muito bem!” Também levantava um problema: “Vai ou não vai cair Obregón1? Vai ou não vai cair Calles2? O que acontecerá? A integridade física desses bons católicos está dependendo disto. Rezemos por eles porque amanhã pode acontecer o mesmo no Brasil!”
Quer dizer, poderia suceder no Brasil que o governo perseguisse a Religião, então era preciso começar a prestar atenção no governo e abrir as janelas para algo que não fosse o “altíssimo” debate, o “altíssimo” antagonismo “cecílio-consolacionista”. Daí formar um grupinho que gostasse de conversar sobre temáticas abertas a problemas internacionais relativos a implantar a Civilização Cristã, ou seja, o Reino de Cristo, portanto o Reino do Sagrado Coração, no mundo inteiro.
Isso feito devagar, ao longo de conversas que levaram anos, mas que foram colocando nessa linha um certo número de espíritos mais cultos, mais inteligentes, mais abertos. Ao mesmo tempo, eu ia interessando-os pelos problemas espirituais de cunho individual, vistos enquanto atuando no mundo moderno.
Por exemplo, A alma de todo apostolado, de D. Chautard, considera, na sua essência, os problemas espirituais, falando do indivíduo, mas com a atenção voltada sobre o conjunto das questões do apostolado. Se houver vida espiritual intensa em algumas almas, estas alcançarão a fecundidade de seu apostolado e obterão o incêndio do amor de Deus nas outras almas. Este incêndio trará como consequência a regeneração da sociedade, porque os autênticos católicos constituirão um Estado verdadeiramente católico.
Bola de neve que não cai, mas sobe a montanha
Não se trata de tomar a seguinte posição: nós somos por uma piedade coletiva e os outros são a favor de uma piedade individual. Isto seria um antagonismo estúpido, heretizante e que eu detestaria. É preciso adotar o equilíbrio: “Queiram tudo quanto a Igreja pede e a doutrina manda para o apostolado individual. Animem, portanto, seus amigos a comungarem, rezarem o Rosário, fazerem meia hora de meditação diária, visitas ao Santíssimo Sacramento. O que um católico muito fervoroso dedica à sua vida espiritual coloquem no primeiro plano, porque se vocês não tiverem isso em dia, o resto é uma patacoada.”
Porém, o primeiro plano não quer dizer plano único. Quem plantou a árvore deve querer colher os frutos que são as obras de apostolado. Se estas atuarem de modo individual visando mais longe, conseguirão um grupo capaz de trabalhar sobre um conjunto maior que, por sua vez, atuará sobre outro grupo ainda maior. Seria uma bola de neve que não cai, mas paradoxalmente sobe a montanha, de maneira a chegar ao píncaro quase um globo.
Não tardou a começar um dardejamento contra nós, no sentido de que não nos interessávamos pela paróquia e ouvíamos pouco o vigário; tínhamos a atenção posta em questões de que ele quase não tratava e, portanto, não afinávamos com a Igreja.
É fácil notar o efeito que isso produzia sobre as devotas da paróquia e o pessoal a elas semelhantes. Isso nos isolava. Assim, quanto mais irradiávamos, mais ficávamos distantes do fluxo corrente.
Certa vez, estávamos fazendo uma obrazinha qualquer de reerguer um muro na sede da Congregação e o vigário contratou uns operários para esse serviço. Encontrávamo-nos juntos, por ali, alguns desse clã paroquial e do clã de largas vistas, quando entraram os operários para trabalhar. Estes, ao passarem por nós, disseram com amabilidade “boa tarde” e todos respondemos, com urbanidade corrente, “boa tarde”.
Julguei interessante fazer notar de modo favorável a atitude desses operários, para mostrar que não tínhamos nenhum preconceito social e nos alegrava reconhecer na classe operária uma qualidade que, conforme se dizia, ela não possuía, pois, na São Paulinho daquele tempo, se julgava que todo operário era um revolucionário, um comunista.
Então eu disse:
— Vejam como são amáveis esses operários!
Vira-se um do clã paroquial e, com os olhos incendiados e num tom de um Marat que encontrou um barão de quinta classe para exterminar, me diz:
— Plinio, é bom você ver nesta ocasião que o operário não é a fera que você imagina!
Sempre tratei essas coisas com muita brandura, mas minha vontade era de afirmar: “Fulano, veja o seguinte: eu sou seu irmão e não essa fera que você está imaginando!” Não disse, deixei passar a coisa.
Entretanto, de maneira irreversível, as relações foram rachando. Era o prognóstico da crise progressista, porque todos esses “paroquialistas” entraram para o progressismo, enquanto os de horizontes mais largos ficaram na Contra-Revolução. Então, havia alguma coisa de muito profundo que germinava dentro disso.
“Carolismo” e “anticarolismo”
Quando se tratou de fundar a Liga Eleitoral Católica, fui nomeado seu secretário e, enquanto tal, coube-me providenciar que todos os vigários da Arquidiocese de São Paulo fundassem núcleos da Liga nas suas paróquias, bem como procurar todos os bispos para fazerem a mesma coisa em suas dioceses. Era um trabalho enorme, que me tirou daquele circuito paroquial e me fez tomar contato direto com o grande público católico. Então, compreendi duas coisas que eu não sabia.
Primeira, que a massa do povo era muito mais católica do que eu pensava. Segunda, julgava que numa paróquia os bons católicos eram só os que frequentavam a igreja; ora, pelo contrário, notei existir muita gente que não frequentava as paróquias porque tinha objeções a um certo “carolismo” reinante nelas. Por certo, nesse “anticarolismo” havia opositores da Religião e, portanto, uma coisa péssima; esses não me procuravam nem nos víamos. Entretanto, existia também muita gente católica vivendo bem no seu canto, mas que carola não queria ser. Assim, havia uma massa aproveitável, desde que o espantalho do carola se tivesse afastado.
No culto do Sagrado Coração de Jesus entrava uma desfiguração que não era pregada como uma doutrina, mas estava no ambiente. Consistia em certa deformação da laudabilíssima insistência na reparação. Mostrava o Sagrado Coração de Jesus como contínua, invariável e exclusivamente ferido, machucado, magoado e triste por definição. Mas de um determinado modo que os atos de devoção a Ele só O consideravam enquanto flagelado, punido de modo injusto, perseguido, dirigindo-Se aos fiéis só para Se queixar, e essa queixa tinha obrigação de ser doce, lacrimejante e pedindo uma reparação de coração a Coração.
Ora, o que se entendia como coração no tempo de Santa Margarida Maria, e no Ancien Régime, mudou de tonalidade na época do Romantismo. Até este último, o coração era um símbolo da vontade e, portanto, de todos os movimentos legítimos – infelizmente ilegítimos também – de que a vontade humana é capaz. Então, nós poderíamos dizer: Coração de Jesus e Maria acies ordinata – ordenado como um exército em campo de batalha.
Mas todo o relacionamento entre o Coração de Jesus e o seu fiel estabelecia-se entre corações feridos, tristes e sentimentais. Em vez de o elemento determinante da consagração ao Sagrado Coração de Jesus ser o ato de vontade, era a consonância lacrimal.
Estando de viagem por um país da América espanhola, fui a uma igreja cujo andar térreo é todo consagrado ao culto perpétuo de adoração ao Santíssimo Sacramento. Tudo muito bonito e me agradou, mas notei que as músicas ali cantadas e os devocionários utilizados provinham dos mesmos manuais, em geral compostos na Europa e traduzidos para o espanhol, como aqui eram para o português.
Eu via entrarem senhoras saudáveis, distintas, com ar resoluto e muito menos sentimental do que em outros países, mas tão logo se ajoelhavam tomavam um ar sentimental. Iam lá para isso…
Em uma nação muito combativa e determinada, eu notava o efeito específico daquela forma de piedade, que era de estimular uma atitude de espírito naturalmente existente no coração de uma mãe, de um pai. A vida de família tem disso e ai de nós se não possuísse. É obrigação até dos Mandamentos ter uma sentimentalidade de família que, entretanto, quando bem constituída, é de outro modo: dominada pela razão, que se chama virtude da sabedoria, e pela vontade, que se designa virtude da fortaleza. Assim, a pessoa iluminada pela fé vê como são as coisas, está disposta ao martírio para executar seu dever e compreende que o martírio envolve a batalha. Com efeito, uma das formas de martírio não é apenas morrer na guerra, mas também marchar, cansar-se, viver no meio das baratas da trincheira, ter aquela forma de força de vontade que enfrenta tudo com vistas a um ideal. Nisto se incluiria a figura da mulher forte, exaltada na Sagrada Escritura (Pr 31, 10-31).
Posição “acies ordinata”
Ora, a devoção ao Sagrado Coração de Jesus estava transformada num fogareiro de sentimentalidade, sendo sistematicamente banidas as virtudes da sabedoria e da fortaleza. Isto tinha que trazer como consequência uma falta de entendimento entre nós.
No seio dessa incompreensão entra, de repente, a Ação Católica. Esta, contudo, não é mais lacrimejante. Ela é alegre, otimista: “Todo mundo é bom, ninguém vai para o Inferno. Alegrem-se, queiram-se bem, amem-se muito todos uns aos outros e o mal desaparecerá da face da Terra. Nada mais de luta!” A moleza deixou de ser chorosa e foi substituída por uma festividade que era uma atração ao pecado; o raciocínio deixou de ser invertebrado para ser vertebrado, mas a serviço da heresia.
Quem ficava de fora? Nós, com a posição acies ordinata. O agere contra3 faz parte de nossa espiritualidade de forma marcante ; inclusive o agere contra interior. Na realidade, sem ele o resultado é uma devoção ao Sagrado Coração de Jesus desvirtuada.
Sendo secretário da Liga Eleitoral Católica, falava em público como um profissional, mas dizia o que precisava dizer. Eu percebia que em auditórios católicos muito grandes, onde aquele núcleo paroquial mais interno estava presente, mas como força quantitativamente menor, minhas palavras eram aclamadas; o que na reunião paroquial não acontecia.
Resultado sintomático: fui eleito como deputado, de longe o mais votado. Pouco depois houve uma eleição interna na Congregação Mariana de Santa Cecília e se tratava de eleger uma diretoria. Não havia candidatos, as pessoas votavam em quem queriam. Fui derrotado. Então, ganho vinte e quatro mil votos no Brasil e não tenho votação suficiente para me eleger na Congregação Mariana. Porque aquele núcleo de vistas mais reduzidas, que achava que eu considerava o operário uma fera, organizou uma trama para me derrotar, baseada nessas questõezinhas. Derrotou-me com facilidade, enquanto eu galgava os degraus da Constituinte.
Não me queixei e na reunião de posse da diretoria compareci com fisionomia alegre, satisfeita. O vigário falou: “Eu emposso a diretoria eleita. Agora, devo dizer que manifesto o meu desagrado, porque não pode ser uma coisa correta que um candidato, considerado idôneo por vinte e quatro mil brasileiros para representá-los na Constituinte, não esteja à altura de ser presidente desta Congregação. Portanto, fica aqui esta nota do meu desagrado.”
Eu, mantendo-me frio, olho para os outros, frios também. Vê-se como aquilo que o progressismo devorou tanto quanto pôde, estava feito para ser devorado por ele.
(Extraído de conferência de 5/2/1995)
1) Álvaro Obregón Salido (*1880 – †1928), Presidente do México de 1920 e 1924.
2) Plutarco Elías Calles (*1877 – †1945), Presidente do México de 1924 a 1928.
3) Do latim: agir contra.