Coração de Jesus, ordenado como um exército em campo de batalha.

Coração de Jesus, ordenado como um exército em campo de batalha.

O culto ao Sagrado Coração de Jesus foi desvirtuado pelo Romantismo, que baniu dessa devoção as virtudes da sabedoria e da fortaleza, transformando-a em um fogareiro de sentimentalidade. Isso abriu o campo para a penetração dos erros da Ação Católica.

Quando li São Luís Grignion, me entusiasmei e fiz minha consagração a Nossa Senhora. Comecei de imediato a trabalhar para generalizar essa devoção na Congregação de Santa Cecília, à qual pertencia, e na Ação Universitária Católica, da qual era fundador.
Noção errônea a respeito do apostolado
Analisando os estados dos espíritos naquele tempo, vi que o jogo do demônio seria o seguinte: para diminuir o alcance e a robustez da consagração a Nossa Senhora, insistir muito na devoção ao Sagrado Coração de Jesus.
Em princípio, o problema se resolveria com a possibilidade de uma devoção absorver a outra, começando por não temer essa absorção caso fosse bem feita, porque a fórmula de São João Eudes é “o Sagrado Coração de Jesus e de Maria”. Contudo, eu percebia que estavam anexadas à devoção ao Sagrado Coração de Jesus, como ela era praticada então, certas deformações, o que me levou a tocar menos nessa tecla fundamental e insistir muito naquela que o demônio estava querendo silenciar mais no momento, isto é, a devoção pregada por São Luís Grignion, pois atacar essa devoção era o jeito de liquidar com ambas.
Por outro lado, havia um elemento que caracterizava profundamente a diferença entre a devoção e o apostolado daquele grupo que se reunia no salão de cima da sede da Congregação Mariana de Santa Cecília e os do grupo do Legionário.
O apostolado era concebido por eles, sobretudo, como sendo individual. A ideia de conquistar um país por uma ação de caráter político para, por esse meio, operar a conquista dos indivíduos, pareceria ímpia, seria como arrancar o apostolado de dentro do santuário e cobri-lo não sei com que verniz de mau sabor laicista, levando a ver mal o esforço dos católicos nessa direção.
Por aí pode-se imaginar o choque causado na pequena Academia Jackson de Figueiredo, da Congregação de Santa Cecília, quando um jovem congregado mariano, estudante de Direito, de uma das melhores camadas sociais de São Paulo, com o destaque normal que naquele tempo tinha um estudante de Direito, é convidado a falar e, diante de uma grande expectativa dos ouvintes, profere um discurso sobre Maria Antonieta.
“Mas, o que isso tem a ver com o apostolado?! Que loucura é essa?!”
Como eram os horizontes das pessoas imbuídas dessa mentalidade?
As duas principais paróquias nesse mundo de que estou falando eram a de Santa Cecília e a da Consolação. Fazendo uma comparação visual entre ambas as matrizes, nota-se que, embora de estilos e plantas diferentes, são do mesmo quilate, da mesma importância como igrejas.
Assim como havia uma rivalidade intensa entre os dois principais clubes de futebol de então – o Paulistano e o Palmeiras –, que fazia vibrar a cidade inteira quando ambos se confrontavam, no campo religioso rivalizavam as paróquias de Santa Cecília e da Consolação.
O grande problema no que havia de mais interno na paróquia não  era conquistar as almas, nem a cidade, muito menos o país e menos ainda o mundo, mas lograr que a próxima semana de estudos promovida por Santa Cecília, ou seja, pelos “cecilianos”, tivesse mais brilho do que a organizada pelos “consolacionianos”, para fazer uma briga que, no fundo, era um ato de amor filial e de dedicação pessoal aos vigários, no caso concreto Mons. Pedrosa e Mons. Bastos. Devido a essa rivalidade, quem queria bem a Mons. Pedrosa não podia deixar de ficar machucado vendo como os outros homenageavam Mons. Bastos, e reciprocamente. Essa era a vida interna com mais nervo e “fecundidade” de uma paróquia.
Incêndio do amor de Deus que trará a regeneração da sociedade
Pode-se imaginar o choque que senti quando me deparei com essa situação, eu que entrara no movimento católico tangido por razões e considerações tão diferentes!
Compreendi que só me era dado ter contra isso uma reação: assistir às conversas e às conjurações recíprocas, interparoquiais, com ar de quem presta muita atenção, um novato que está conhecendo coisas enormes e torcendo… Sem dizer uma palavra, porque eu não podia mentir, mas pensando no íntimo com meus botões: “Quando eu tiver alguma influência aqui, outro galo cantará.”
Tão logo me foi possível, procurei despertar nessas pessoas o interesse a respeito das perseguições religiosas ocorridas naquela ocasião no México. Mostrar-lhes tudo quanto de horrível estava sendo feito lá contra os católicos tiravam-nas um pouco dessa luta de bairros. Então eu dizia: “Rezemos porque esses martírios podem trazer para as nossas almas muito bem!” Também levantava um problema: “Vai ou não vai cair Obregón1? Vai ou não vai cair Calles2? O que acontecerá? A integridade física desses bons católicos está dependendo disto. Rezemos por eles porque amanhã pode acontecer o mesmo no Brasil!”
Quer dizer, poderia suceder no Brasil que o governo perseguisse a Religião, então era preciso começar a prestar atenção no governo e abrir as janelas para algo que não fosse o “altíssimo” debate, o “altíssimo” antagonismo “cecílio-consolacionista”. Daí formar um grupinho que gostasse de conversar sobre temáticas abertas a problemas internacionais relativos a implantar a Civilização Cristã, ou seja, o Reino de Cristo, portanto o Reino do Sagrado Coração, no mundo inteiro.
Isso feito devagar, ao longo de conversas que levaram anos, mas que foram colocando nessa linha um certo número de espíritos mais cultos, mais inteligentes, mais abertos. Ao mesmo tempo, eu ia interessando-os pelos problemas espirituais de cunho individual, vistos enquanto atuando no mundo moderno.
Por exemplo, A alma de todo apostolado, de D. Chautard, considera, na sua essência, os problemas espirituais, falando do indivíduo, mas com a atenção voltada sobre o conjunto das questões do apostolado. Se houver vida espiritual intensa em algumas almas, estas alcançarão a fecundidade de seu apostolado e obterão o incêndio do amor de Deus nas outras almas. Este incêndio trará como consequência a regeneração da sociedade, porque os autênticos católicos constituirão um Estado verdadeiramente católico.
Bola de neve que não cai, mas sobe a montanha
Não se trata de tomar a seguinte posição: nós somos por uma piedade coletiva e os outros são a favor de uma piedade individual. Isto seria um antagonismo estúpido, heretizante e que eu detestaria. É preciso adotar o equilíbrio: “Queiram tudo quanto a Igreja pede e a doutrina manda para o apostolado individual. Animem, portanto, seus amigos a comungarem, rezarem o Rosário, fazerem meia hora de meditação diária, visitas ao Santíssimo Sacramento. O que um católico muito fervoroso dedica à sua vida espiritual coloquem no primeiro plano, porque se vocês não tiverem isso em dia, o resto é uma patacoada.”
Porém, o primeiro plano não quer dizer plano único. Quem plantou a árvore deve querer colher os frutos que são as obras de apostolado. Se estas atuarem de modo individual visando mais longe, conseguirão um grupo capaz de trabalhar sobre um conjunto maior que, por sua vez, atuará sobre outro grupo ainda maior. Seria uma bola de neve que não cai, mas paradoxalmente sobe a montanha, de maneira a chegar ao píncaro quase um globo.
Não tardou a começar um dardejamento contra nós, no sentido de que não nos interessávamos pela paróquia e ouvíamos pouco o vigário; tínhamos a atenção posta em questões de que ele quase não tratava e, portanto, não afinávamos com a Igreja.
É fácil notar o efeito que isso produzia sobre as devotas da paróquia e o pessoal a elas semelhantes. Isso nos isolava. Assim, quanto mais irradiávamos, mais ficávamos distantes do fluxo corrente.
Certa vez, estávamos fazendo uma obrazinha qualquer de reerguer um muro na sede da Congregação e o vigário contratou uns operários para esse serviço. Encontrávamo-nos juntos, por ali, alguns desse clã paroquial e do clã de largas vistas, quando entraram os operários para trabalhar. Estes, ao passarem por nós, disseram com amabilidade “boa tarde” e todos respondemos, com urbanidade corrente, “boa tarde”.
Julguei interessante fazer notar de modo favorável a atitude desses operários, para mostrar que não tínhamos nenhum preconceito social e nos alegrava reconhecer na classe operária uma qualidade que, conforme se dizia, ela não possuía, pois, na São Paulinho daquele tempo, se julgava que todo operário era um revolucionário, um comunista.
Então eu disse:

— Vejam como são amáveis esses operários!
Vira-se um do clã paroquial e, com os olhos incendiados e num tom de um Marat que encontrou um barão de quinta classe para exterminar, me diz:
— Plinio, é bom você ver nesta ocasião que o operário não é a fera que você imagina!
Sempre tratei essas coisas com muita brandura, mas minha vontade era de afirmar: “Fulano, veja o seguinte: eu sou seu irmão e não essa fera que você está imaginando!” Não disse, deixei passar a coisa.
Entretanto, de maneira irreversível, as relações foram rachando. Era o prognóstico da crise progressista, porque todos esses “paroquialistas” entraram para o progressismo, enquanto os de horizontes mais largos ficaram na Contra-Revolução. Então, havia alguma coisa de muito profundo que germinava dentro disso.
“Carolismo” e “anticarolismo”
Quando se tratou de fundar a Liga Eleitoral Católica, fui nomeado seu secretário e, enquanto tal, coube-me providenciar que todos os vigários da Arquidiocese de São Paulo fundassem núcleos da Liga nas suas paróquias, bem como procurar todos os bispos para fazerem a mesma coisa em suas dioceses. Era um trabalho enorme, que me tirou daquele circuito paroquial e me fez tomar contato direto com o grande público católico. Então, compreendi duas coisas que eu não sabia.
Primeira, que a massa do povo era muito mais católica do que eu pensava. Segunda, julgava que numa paróquia os bons católicos eram só os que frequentavam a igreja; ora, pelo contrário, notei existir muita gente que não frequentava as paróquias porque tinha objeções a um certo “carolismo” reinante nelas. Por certo, nesse “anticarolismo” havia opositores da Religião e, portanto, uma coisa péssima; esses não me procuravam nem nos víamos. Entretanto, existia também muita gente católica vivendo bem no seu canto, mas que carola não queria ser. Assim, havia uma massa aproveitável, desde que o espantalho do carola se tivesse afastado.
No culto do Sagrado Coração de Jesus entrava uma desfiguração que não era pregada como uma doutrina, mas estava no ambiente. Consistia em certa deformação da laudabilíssima insistência na reparação. Mostrava o Sagrado Coração de Jesus como contínua, invariável e exclusivamente ferido, machucado, magoado e triste por definição. Mas de um determinado modo que os atos de devoção a Ele só O consideravam enquanto flagelado, punido de modo injusto, perseguido, dirigindo-Se aos fiéis só para Se queixar, e essa queixa tinha obrigação de ser doce, lacrimejante e pedindo uma reparação de coração a Coração.
Ora, o que se entendia como coração no tempo de Santa Margarida Maria, e no Ancien Régime, mudou de tonalidade na época do Romantismo. Até este último, o coração era um símbolo da vontade e, portanto, de todos os movimentos legítimos – infelizmente ilegítimos também – de que a vontade humana é capaz. Então, nós poderíamos dizer: Coração de Jesus e Maria acies ordinata – ordenado como um exército em campo de batalha.
Mas todo o relacionamento entre o Coração de Jesus e o seu fiel estabelecia-se entre corações feridos, tristes e sentimentais. Em vez de o elemento determinante da consagração ao Sagrado Coração de Jesus ser o ato de vontade, era a consonância lacrimal.
Estando de viagem por um país da América espanhola, fui a uma igreja cujo andar térreo é todo consagrado ao culto perpétuo de adoração ao Santíssimo Sacramento. Tudo muito bonito e me agradou, mas notei que as músicas ali cantadas e os devocionários utilizados provinham dos mesmos manuais, em geral compostos na Europa e traduzidos para o espanhol, como aqui eram para o português.
Eu via entrarem senhoras saudáveis, distintas, com ar resoluto e muito menos sentimental do que em outros países, mas tão logo se ajoelhavam tomavam um ar sentimental. Iam lá para isso…
Em uma nação muito combativa e determinada, eu notava o efeito específico daquela forma de piedade, que era de estimular uma atitude de espírito naturalmente existente no coração de uma mãe, de um pai. A vida de família tem disso e ai de nós se não possuísse. É obrigação até dos Mandamentos ter uma sentimentalidade de família que, entretanto, quando bem constituída, é de outro modo: dominada pela razão, que se chama virtude da sabedoria, e pela vontade, que se designa virtude da fortaleza. Assim, a pessoa iluminada pela fé vê como são as coisas, está disposta ao martírio para executar seu dever e compreende que o martírio envolve a batalha. Com efeito, uma das formas de martírio não é apenas morrer na guerra, mas também marchar, cansar-se, viver no meio das baratas da trincheira, ter aquela forma de força de vontade que enfrenta tudo com vistas a um ideal. Nisto se incluiria a figura da mulher forte, exaltada na Sagrada Escritura (Pr 31, 10-31).
Posição “acies ordinata”
Ora, a devoção ao Sagrado Coração de Jesus estava transformada num fogareiro de sentimentalidade, sendo sistematicamente banidas as virtudes da sabedoria e da fortaleza. Isto tinha que trazer como consequência uma falta de entendimento entre nós.
No seio dessa incompreensão entra, de repente, a Ação Católica. Esta, contudo, não é mais lacrimejante. Ela é alegre, otimista: “Todo mundo é bom, ninguém vai para o Inferno. Alegrem-se, queiram-se bem, amem-se muito todos uns aos outros e o mal desaparecerá da face da Terra. Nada mais de luta!” A moleza deixou de ser chorosa e foi substituída por uma festividade que era uma atração ao pecado; o raciocínio deixou de ser invertebrado para ser vertebrado, mas a serviço da heresia.
Quem ficava de fora? Nós, com a posição acies ordinata. O agere contra3 faz parte de nossa espiritualidade de forma marcante ; inclusive o agere contra interior. Na realidade, sem ele o resultado é uma devoção ao Sagrado Coração de Jesus desvirtuada.
Sendo secretário da Liga Eleitoral Católica, falava em público como um profissional, mas dizia o que precisava dizer. Eu percebia que em auditórios católicos muito grandes, onde aquele núcleo paroquial mais interno estava presente, mas como força quantitativamente menor, minhas palavras eram aclamadas; o que na reunião paroquial não acontecia.
Resultado sintomático: fui eleito como deputado, de longe o mais votado. Pouco depois houve uma eleição interna na Congregação Mariana de Santa Cecília e se tratava de eleger uma diretoria. Não havia candidatos, as pessoas votavam em quem queriam. Fui derrotado. Então, ganho vinte e quatro mil votos no Brasil e não tenho votação suficiente para me eleger na Congregação Mariana. Porque aquele núcleo de vistas mais reduzidas, que achava que eu considerava o operário uma fera, organizou uma trama para me derrotar, baseada nessas questõezinhas. Derrotou-me com facilidade, enquanto eu galgava os degraus da Constituinte.
Não me queixei e na reunião de posse da diretoria compareci com fisionomia alegre, satisfeita. O vigário falou: “Eu emposso a diretoria eleita. Agora, devo dizer que manifesto o meu desagrado, porque não pode ser uma coisa correta que um candidato, considerado idôneo por vinte e quatro mil brasileiros para representá-los na Constituinte, não esteja à altura de ser presidente desta Congregação. Portanto, fica aqui esta nota do meu desagrado.”
Eu, mantendo-me frio, olho para os outros, frios também. Vê-se como aquilo que o progressismo devorou tanto quanto pôde, estava feito para ser devorado por ele.

 

(Extraído de conferência de 5/2/1995)

1) Álvaro Obregón Salido (*1880 – †1928), Presidente do México de 1920 e 1924.
2) Plutarco Elías Calles (*1877 – †1945), Presidente do México de 1924 a 1928.
3) Do latim: agir contra.

Dizei uma só palavra e minha alma será salva!

“Dizei uma só palavra e minha alma será salva!”

 

Se tivermos fé de que uma só palavra de Nosso Senhor pode nos curar ou ser o ponto de partida da cura, compreenderemos ter nossa vida espiritual possibilidades de progresso e de desencalhe inimagináveis.

A devoção ao Coração Eucarístico de Jesus deve ser entendida como o Coração de Jesus enquanto dirigindo-Se às almas na Sagrada Eucaristia, ou a Sagrada Eucaristia considerada como prodígio da misericórdia do Coração de Jesus.
As curas narradas pelo Evangelho eram autênticas e tinham valor simbólico
Sugiro fazermos algumas considerações práticas que possam ajudar a nossa Comunhão na Festa do Sagrado Coração de Jesus.
Devemos nos lembrar do princípio, sempre importante nessas situações, de que a festa litúrgica traz consigo graças especiais relacionadas com a data. Portanto, na Festa do Sagrado Coração de Jesus receberemos graças que derivam do Coração Eucarístico de Jesus. Ao mesmo tempo, como se trata de uma festa eucarística, essas graças devem ser particularmente abundantes por ocasião da Comunhão. E nós, que possuímos a felicidade inapreciável de nos aproximarmos da Sagrada Mesa todos os dias, teremos um título especial de fervor para comungarmos.
Quando nos preparamos para receber a Sagrada Eucaristia, devemos ter em mente que o Deus que vamos receber em nossas almas é um Deus de misericórdia infinita, no maior rigor da palavra “infinita”. Ou seja, de uma condescendência imensa, pronto sempre a ajudar a reerguer o pecador, quer se trate do que tenha a suprema desventura de estar em estado de pecado mortal, quer do que se encontra em estado de pecado venial ou atolado em algumas das tais dificuldades ou ingratidões que o pecador tem às vezes, mesmo quando está em estado de graça, e que retarda o seu progresso por muitos anos.
E devemos nos lembrar de que todas essas situações dos pecadores em vários graus têm algo de parecido com as circunstâncias das pessoas curadas por Nosso Senhor. Aquelas curas narradas pelo Evangelho foram fatos autênticos, que possuíam valor simbólico. Elas indicavam doenças da alma e mostravam o poder de Jesus para curá-las. E que o Redentor pode, por uma só palavra, operar de um momento para outro a cura completa de uma alma ou, pelo menos, dizer no seu interior uma palavra que seja o ponto de partida para sua cura total.
Havia os paralíticos e há os que estão paralisados nas vias da vida espiritual e não se movem; os mudos e os que não abrem a boca para falar a Deus de suas próprias necessidades, nem ao seu diretor ou a quem pode ajudar suas almas; os surdos e aqueles que não ouvem a palavra de Deus nem os bons conselhos dados pelos verdadeiros amigos. Assim também nós estamos num desses casos.
A mais alta forma de amor
Devemos, então, dizer ao Coração infinitamente misericordioso de Jesus na Sagrada Eucaristia aquelas palavras que o padre declara quando aponta a Hóstia para os fiéis: “Sed tantum dic verbum et sanabitur anima mea.”1
Nós não temos ideia do que é a fecundidade de uma palavra de Nosso Senhor no interior das almas. Às vezes nos esforçamos durante muitos anos para abandonar um defeito ou adquirir uma virtude, e fracassamos sempre. Mas, se nos lembrássemos de que Nossa Senhora pode nos obter de Nosso Senhor Jesus Cristo, de um momento para outro, uma só palavra, a qual pode nos curar inteiros ou ao menos ser o ponto de partida de nossa cura, então compreenderíamos que a vida espiritual tem possibilidades de progresso e de desencalhe que, em nossa tibieza da rotina, nem sequer imaginamos toda sua extensão e importância.
Precisamos nos aproximar de Nosso Senhor sempre por meio de Nossa Senhora, a Medianeira de todas as graças, e pensar: Ele nos patenteia seu Coração – ou seja, o símbolo de sua misericórdia dentro da obra-prima de amor que é a Sagrada Eucaristia – e toma a iniciativa de instituir uma festa para que todos os fiéis venham a Ele. Nós, com humildade, obediência, contrição, vamos nos apresentar a Nosso Senhor rogando o perdão pelos nossos pecados e a virtude, pela qual nos unimos a Ele. É o pedido mais grato que Lhe possamos fazer, o qual contém a mais alta forma de amor: querermos parecer-nos com Ele.
E rogamos nesse dia que Ele diga uma só palavra e nossa alma será salva, curada. Essa palavra pode tanto vir agora quanto daqui a algum tempo. Pedir continuamente que ela venha é uma das melhores coisas da vida espiritual. Quanto mais ela tardar tanto mais virá fecunda e, até certo ponto, irresistível. É na espera dessa palavra que devemos viver nossa vida espiritual.
Então, por intermédio de Nossa Senhora devemos dizer: “Senhor, eu não sou digno de que entreis em meu coração, mas Vos recebo com confiança. Dizei uma só palavra e minha alma será salva!” É um dia, portanto, de alegria, de confiança e de muita esperança.
Talvez alguém receba a graça de repetir muitas vezes durante o dia e em todos os dias de sua existência esta expressão: “Sed tantum dic verbum et sanabitur animam mea.” Quando chegar a hora da morte, receberemos a última palavra que dará à nossa alma o último passo necessário para atingir toda a sua santificação. E morreremos em paz, com a morte do justo, depois de termos vivido na luta da vida dos justos.

 

(Extraído de conferência de 10/6/1964)

1) Do latim: Mas dizei uma só palavra e minha alma será salva.

 

ASCENSÃO DE NOSSO SENHOR JESUS CRISTO

As mil expressões de Nosso Senhor Jesus Cristo na Ascensão
Não é possível que Nosso Senhor Jesus Cristo ascendesse sem glória. O
Evangelho não narra quais foram os sinais sensíveis daquela ocasião, mas devemos imaginá-los majestosos, grandiosos e enlevantes.
Ascensão – Museu Palácio
Barberini, Roma Uma meditação completa
sobre a Ascensão deveria
comportar dois aspectos:
o primeiro seria a respeito
do que ela significa teoricamente. O outro, uma recomposição do quadro daquilo que se passou por ocasião da
Ascensão e que simbolizaria o significado dela.
Era preciso a glorificação
atingir o Céu A Ascensão de Nosso Senhor Jesus
Cristo aos Céus representou a consumação do triunfo d’Ele aos olhos dos homens. Ele Se encarnou,
nasceu de Maria Virgem, viveu praticando maravilhas, foi glorificado
antes de sua Paixão pelos numerosos milagres que operou, tanto no
Tabor, como na aclamação do povo em Jerusalém; foi também humilhado, crucificado e morto.
Era preciso que a enorme injustiça cometida contra Nosso Senhor Jesus Cristo fosse reparada. Essa reparação se fez sob a forma primeira da Ressurreição gloriosa d’Ele, na qual Ele venceu a morte e por todos os séculos
ficou demonstrado ser Ele o Filho de Deus, e que tudo quanto quiseram fazer não valeu de nada. Com a Ressurreição, todos os seus adversários ficaram aniquilados e a glória do Homem-Deus atingiu o auge.
Mas era ainda uma glória se realizando nesta Terra. Era preciso a glorificação
atingir o Céu, quer dizer,
depois de Nosso Senhor Jesus Cristo ser glorificado aos olhos dos homens, que estes vissem Deus Pai elevá- Lo à mais alta das glórias, levando- O ao Céu para governar ao seu lado. E o triunfo d’Ele ser o de estar sentado por toda a eternidade ao lado direito do Padre Eterno. Ele nunca deixou de estar no Céu. Contudo, na sua natureza humana, esteve também na Terra. Na Ascensão, Ele, na sua humanidade, subiu ao Céu e sentou-Se à direita do Pai. E como Ele era Homem-Deus, completamente Deus e completamente Homem, para a natureza humana
d’Ele era uma glorificação sem precedentes estar num lugar onde nunca um Querubim ou um Serafim ousou pensar em estar. Ali está sentado um verdadeiro homem, com corpo, sangue e alma humana, hipostaticamente
unido à Segunda Pessoa
da Santíssima Trindade.
O último ato da existência d’Ele na Terra foi a Ascensão. Fisicamente,
ela é um ato pelo qual Ele foi subindo até perder-se da vista dos homens.
Entretanto, é muito mais do que um subir: é entrar no Céu e sentar-Se à mão direita de Deus Pai. Os Céus se abrem Há como que “duas ascensões”
de Nosso Senhor Jesus Cristo. A primeira, aos olhos dos homens: Ele
perfura todo o espaço e sobe ao Céu. Depois, é aos olhos dos Santos, quando atravessa subindo – no sentido figurativo da palavra – os coros
dos Anjos e chega até Deus. Ele Se torna superior a todas as criaturas existentes no Céu. São, portanto, duas festas: uma
que é a Ascensão d’Ele na Terra e uma no Céu. Ele subir tanto aos olhos dos homens indica de um modo material a glória que Ele recebeu no Céu, pois subir é ser glorificado. Devemos, à vista disso, considerar que essa glória foi seguida ou acompanhada de outra glória imensa: Nossa Senhora, os Apóstolos, os
discípulos, viram-No subir, estavam presentes, mas com Nosso Senhor Jesus Cristo subiram todas as almas justas que estavam no Limbo à espera d’Ele, porque ninguém tinha entrado no Céu antes d’Ele. Então, São José, o mais santo dos
homens; São João Batista, o maior dos homens nascidos de mulher; todos
os profetas do Antigo Testamento, com exceção de Elias e de Enoc; todas as figuras justas que já tinham saído do Limbo ou do Purgatório, entrando no Céu; Nosso Senhor levou
essa miríade de almas resplandecentes. Era uma data histórica: o Céu, que estivera fechado para os
homens, se abria! Uma outra imensa festa, que só se tornava possível a partir da Ascensão, começava a se preparar: a entrada
de Nossa Senhora no Céu. Então as mais altas glórias do Céu ficariam completas, porque com Nosso Senhor e Nossa Senhora lá, todo o resto
é acidental, é novidade de quinta categoria.

Revista Dr.Plinio. Maio 2024 – Pág 8 – AS MIL EXPRESSÕES DE NOSSO SENHOR JESUS CRISTO NA ASCENSÃO

Só ama o bem quem odeia o mal

Só ama o bem quem odeia o mal

 

São Lázaro, monge do século IX, teve as mãos queimadas por ordem de um imperador iconoclasta porque fazia imagens sagradas. Os humanitários que hoje declamam contra as Cruzadas e a Inquisição não têm uma palavra de censura para com os imperadores romanos que martirizavam os católicos.

Temos para comentar alguns dados biográficos de um Santo extraordinário: São Lázaro, Confessor. Não é o amigo de Nosso Senhor, irmão de Marta e Maria. Monge e pintor de sagradas imagens, viveu no século IX. Queimaram lhe as mãos com ferro em brasa, mas foi curado pelo poder de Deus e pintou novamente imagens que haviam sido raspadas pelos iconoclastas. O Criador restaurou suas mãos e ele restaurou as pinturas.
Mãos queimadas até os ossos
Lázaro, nascido no Monte Cáucaso, deixou seu país na primeira juventude e veio para Constantinopla, onde abraçou a vida religiosa. Além dos exercícios ordinários do estado monástico, aprendeu pintura, arte que se cultivava nos claustros, sobretudo em Constantinopla, desde que a guerra contra as sagradas imagens tinha sido declarada pelos iconoclastas1.
Como os iconoclastas eram contra o uso das imagens, nos bons mosteiros os monges aprendiam a pintá-las como um meio de combatê-los. Naturalmente, depois eles difundiam essas pinturas.
Os imperadores, não contentes de quebrar as imagens e perseguir seus defensores, tinham ainda de tal modo intimidado os pintores com o rigor de seus editos, que o medo da morte, da prisão e do exílio os impedia de fazer qualquer quadro de Jesus Cristo ou dos Santos. Foi o que levou muitos superiores de mosteiros a querer reparar esse dano, apesar das ameaças e da indignação do soberano, introduzindo a arte da pintura em suas casas, para impedir que as santas imagens fossem abolidas pelos ímpios.
Lázaro tinha se tornado muito hábil nessa profissão, e a perpetuação, a reputação que adquiriu foi causa da perseguição particular que teve de sofrer.
O Imperador Teófilo, em 829, tendo ordenado a pena de morte para todos os pintores que recusassem a rasgar os quadros nos quais tivessem pintado os Santos, mandou buscar Lázaro em seu mosteiro, para executar o edito em sua presença. Não conseguiu levá-lo a isso pela doçura e recorreu à tortura. Fê-lo tão cruelmente que pensou que São Lázaro morreria no suplício. Mas, tendo recuperado suas forças algum tempo depois, continuou a pintar. O imperador mandou prendê-lo de novo e torturá-lo com brasas de ferro rubro nas mãos, queimando-as até os ossos.
A imperatriz Santa Teodora obteve do marido a sua libertação e o manteve oculto na Igreja de São João Batista, onde o fez curar. Quando Lázaro se restabeleceu, pintou, por reconhecimento, um quadro do Precursor, que se tornou um dos mais célebres de seu tempo.
Após a morte de Teófilo, a imperatriz Santa Teodora e seu filho Miguel III restabeleceram a honra das imagens. Lázaro elaborou um Salvador que colocou sobre uma coluna para ser exposto à veneração pública.
Vendo, então, o culto antigo bem fortalecido, entregou-se aos santos exercícios da vida monástica, não pensando senão em santificar-se nas obscuridades do claustro, onde morreu em 867.
Ódio contra os que defendem a Fé
Percebemos nesta narração, de modo muito notável, a fidelidade desse Santo à sua vocação, levando-o a enfrentar toda espécie de torturas. Mas me parece ser tal o número de mártires com essa fidelidade – isso é algo refulgente de tal maneira na Igreja que as nossas almas estão cheias dessa luz –, não sendo o caso de insistir sobre isso.
Talvez seria conveniente apontar, nesse conjunto de fatos, um aspecto não tão batido quanto o da glória insondável do martírio: a impiedade é fina e perspicaz no seu ódio, e devemos lamentar que nós, filhos da luz, não sejamos tão perspicazes e finos como ela.
Os humanitários declamam muito contra as Cruzadas, a Inquisição e toda forma de guerra de religião – porque, dizem eles, são torturas horrorosas, não se deve absolutamente permitir uma coisa dessas, é contra a caridade etc. – porém, não têm uma palavra de censura para com os imperadores romanos que martirizavam os católicos. Quando se diz a um deles:
— Você não fala contra Diocleciano, Nero? Só contra Torquemada2?
E num movimento temperamental de um ódio todo platônico, ele diz:
— Ah, também contra esses eu sou contra. Mas Torquemada… é preciso acabar com ele.
— E Nero não foi horroroso?
— Sim, sim. São coisas que se deve censurar, e – bocejando, acrescenta – eu censuro…
Mas o ódio dinâmico dos ímpios é contra aqueles que derramaram o sangue na defesa da Fé. Contra os que o fizeram verter para combater a Fé eles não têm ódio dinâmico nenhum. Isso prova que, no fundo, o ódio deles não é contra o derramamento de sangue, mas é contra a defesa da Fé.
Quanto se tem falado contra os Autos de Fé espanhóis! No que isso tem de diferente de um Auto contra a Fé, do ponto de vista sangue? Não tem nada de diferente. Tanto um quanto outro envolvem sangue, são opressões da liberdade. Entendamo-nos a esse respeito. O ódio dos humanitários, dos liberais vai exclusivamente contra aqueles que derramaram o sangue para defender a Fé.
Sanha de perseguição contra os bons
Isso vai mais longe. Se eles não têm ódio aos que promoveram o derramamento de sangue perseguindo os católicos, muitos dentre eles, podendo, também não verteriam o sangue dos católicos? Uma coisa traz a outra, como consequência. Se eu, diante de crimes atrozes como esse, me manifesto frio, no fundo acho que quem fez isso tem uma certa razão e eu, no caso, talvez o fizesse. Compreende-se, então, até onde chega a ferocidade dos ímpios: não só até a contradição, mas até uma sanha de perseguição que não revelam, mas que, no fundo, eles têm.
Reflexão muito útil quando estivermos em presença de pessoas como essas, pois quase todo mundo tem esse estado de espírito.
Façam um teste nos ambientes frequentados. Digam algo sobre a Inquisição e todo mundo se levanta para atacá-la. Falem contra as perseguições, por exemplo, dos iconoclastas no Império Romano do Oriente, e sai o tal ódio frio, platônico, que não é verdadeiro ódio.
Portanto, toda essa gente tem, no fundo – ao menos em algumas fibras da alma, quando não em todas –, uma complacência com a ideia de matar os autênticos católicos.
Então, em contato com pessoas desse naipe, devo pensar: “Esse indivíduo que está falando comigo quereria matar-me, se pudesse”. É preciso chegar até o caso pessoal, atingir a pele e o instinto de conservação. Não considerar apenas em tese a morte dos cristãos, dos católicos.
Não conhece nem ama o bem quem não conhece e não odeia o mal
Se esse indivíduo fosse meu familiar, eu poderia cogitar: “É verdade. Mas sendo ele meu parente, não me mataria”. Isso é falso. O ódio deles contra a Fé é tão grande que gostariam de matar os católicos e não poupariam ninguém.
Quem julgasse que o indivíduo não faria isso com ele porque é seu parente, pensaria como um ingênuo. Seria bom passar por um curso de “desingenuização” porque levou a ingenuidade até extremos muito grandes.
Peçamos, então, a São Lázaro esta graça penetrante: perceber e discernir nos ímpios com os quais tratamos o ódio que eles têm a nós.
Alguém dirá: “Mas, Dr. Plinio, qual é a vantagem disso? Eu vivo tão bem com os meus parentes. São agradáveis, influentes, conversam bem. Agora está o senhor me fazendo ver um Nero ou um Calígula… O senhor desarranja tudo! E parece estar contente com o desarranjo produzido.”
A minha resposta é a seguinte: Não conhece nem ama o bem quem não conhece e não odeia o mal. O conhecimento do mal é indispensável para o conhecimento do bem, como contraste. Depois do pecado original, não se pode dispensar o conhecimento do mal. E é preciso medir o mal em toda a sua extensão, para conhecermos o bem em toda a sua nobreza.
Portanto, é necessário fazer esse exercício com as pessoas próximas de nós. Porque, ademais, seria uma atitude simplória achar que os parentes dos outros não prestam e são muito ingênuos quando acreditam neles, mas os nossos são diferentes.
Vale muito a pena nos compenetrarmos do ódio pessoal que eles têm a nós, porque enquanto não tivermos essa compenetração, um restinho de complacência com o mundo pode ficar. E se trata, exatamente, de dissipar toda e qualquer complacência com o mal. Então, fica isso indicado à nossa consideração a propósito da vida de São Lázaro.

 

(Extraído de conferência de 22/2/1967)

1) Não dispomos dos dados da ficha utilizada por Dr. Plinio.
2) Tomás de Torquemada (*1420 – †1498), sacerdote dominicano espanhol, confessor da Rainha Isabel, a Católica, e do Rei Fernando de Aragão. Foi também grande Inquisidor de Espanha.