A História gira em torno dos eleitos

Há um jogo das almas fiéis e infiéis, inclusive das vítimas expiatórias, que conservam ou degeneram as instituições. Em vista disso, Deus vai criando outras almas, suscitando vocações, dando graças para realizar seu plano, porque em sua infinita bondade Ele concedeu a algumas almas a honra de marcarem o rumo da História.

 

Muitas pessoas, por causa do abuso da noção de misericórdia, formam uma ideia de vida espiritual completamente diferente do que ela é realmente. O que a vida espiritual tem de mais interno é a vida da graça em nós, uma participação criada na própria vida de Deus, recebida pelo Batismo. Esta é a graça santificante, perdida apenas pelo pecado mortal.

Tanques de guerra e gases que vivificam ou matam

Há também incontáveis graças atuais, dentro de toda uma escala de intensidades – desde as suficientes até as superabundantes –, por onde a pessoa recebe graças ora em maior, ora em menor profusão, seja por um efeito da justiça ou da misericórdia divina.

Quando Deus resolve realizar suas grandes intervenções na História, as graças mais assinaladas e marcantes não são como esses favores comuns que Ele concede para cada indivíduo todos os dias, mas o Criador destina algumas pessoas que, por vezes, são até modeladas naturalmente para a tarefa à qual Ele as destina.

Em atenção ao amor que Deus tem a essas pessoas – antes mesmo de tê-las criado, porque representam, dentro da sabedoria d’Ele, um papel especial nos planos divinos –, seja em virtude das atitudes delas mesmas, seja da correspondência ou incorrespondência daqueles chamados a rezar e a sacrificar-se por elas, essas pessoas podem estar dotadas de uma força de impacto na História que a leva avante.

Para usar duas imagens bélicas, seria como um tanque de guerra que avança sobre um muro e o derruba, podendo atravessar até todo um quarteirão em linha reta. Essas pessoas são os tanques da História. Ou como os gases que, uma vez soltos, não há arma nem vedação que os detenha. Eles entram por todas as frestas, se insinuam e, neste caso, vivificam ou matam: destroem as instituições que não deveriam existir e vivificam as pessoas.

Os eleitos são o eixo do amor de Deus…

Então, Deus tem planos imutáveis que Ele realiza, pequem os homens quanto pecarem ou pratiquem os atos de virtude que praticarem; são planos que Ele traçou e executa. Os antigos sentiram esses planos e chamavam isso de fatalidade.

Mas depois há planos que dificilmente Deus modifica. E se os modifica, fá-lo nos acidentes em parte, mas não no todo.

Por fim, há planos que Ele de todo em todo abandona, por assim dizer entrega ao próprio destino. Isso tudo se entrecruza e se mistura dentro de uma aparente desordem, e precisa ser visto mais ou menos como no urbanismo, em que existem algumas avenidas que, dada a topografia, são necessárias à cidade, outras podem adaptar-se às circunstâncias, e outras são totalmente supérfluas.

Tudo em função da glória de Deus e dos eleitos que, como um corpo, dizem respeito à glória d’Ele mais especialmente.

Há dois modos de alguém demonstrar que tem um plano. Um é seguir no rumo retilíneo e chegar até o fim. Outro é, atravessando os piores e mais variados obstáculos, dirigir-se invariavelmente para o mesmo rumo. É uma forma de força do plano.

Deus combina os dois métodos, às vezes aquinhoando regiamente de obstáculos alguns, para depois fazê-los brilhar mais esplendidamente, quase como sendo os autores do plano que realizaram.

Entretanto o arqui-plano de Deus consiste em auferir do curso das coisas – para falar em linguagem humana – uma determinada quota de glória. Compreendendo bem que uma vez que o Onipotente criou seres inteligentes e livres em número incontável, dentre essas criaturas muitas haveriam de fazer o contrário do que Ele quer.

Logo, estava na índole das coisas que aconteceria muito do que Deus não quer, como condição, por assim dizer, para haver Criação. E dentro da quota sem a qual a Criação ficaria sem seriedade, Ele teria que deixar a esse jogo uma flexibilidade maior ou menor, tirando dessa própria flexibilidade uma espécie de super-glória para os eleitos que são o eixo do amor d’Ele e o centro do plano. De maneira que, da existência do mal e da maldade que se efetuou, redunda um aumento de glória, quer para Ele, quer para os eleitos.

…mas seus pecados pesam muito para que Ele modifique seus planos

Por exemplo, tudo quanto aconteceu a São Miguel Arcanjo redundou para Deus num aumento de glória. E como as nossas coisas estão postas dentro do tempo, elas não são fulgurantes como as de São Miguel Arcanjo, mas se entrelaçam mantendo sempre uma constante: para os eleitos, os mais bem-amados de Deus, isso dá numa redundância de glória a Ele, de um jeito ou de outro.

Sem dúvida, todos foram destinados ao Céu. Contudo, alguns têm uma vocação específica, uma providência especial e são diletos particularmente. Entretanto, se a pessoa dileta não enfrentar os obstáculos, dependendo dos desígnios divinos, da gravidade do pecado, caso não seja confirmada em graça, ela pode perder-se. Embora Deus possa ter pena dela e salvá-la “in extremis”.

No entanto, se essa alma eleita recusar e se perder, Deus suscita – estou falando em linguagem antropomórfica – dentro da História outras almas que de algum modo compensam com vantagem. Quer dizer, nunca acontecerá que o poder de Deus para suscitar almas eleitas seja liquidado pelo adversário.

Os eleitos, no sentido em que o foi o povo eleito e o é a Igreja Católica, ocupam um lugar muito importante nos planos de Deus, mas as ofensas por eles cometidas têm na justiça divina um papel muito grande. Deus é misericordioso com eles, mas seus pecados O ofendem especialmente e pesam muito para que Ele modifique seus planos.

Às vezes, Deus suscita um vingador que destroça a confusão

Então, a História toda gira em torno das gratidões e ingratidões dos eleitos. Muitos dos sinais sinuosos, espantosos da História, inclusive com o afundamento ou aparentes soçobros de instituições, estão relacionados com pecados cometidos nas próprias instituições, as quais, conforme sua correspondência ou incorrespondência à graça, ficam com uma certa liberdade, concedida por Deus, de traçar os planos da História, pairando sobre elas uma glória ou uma culpa extraordinária pelos rumos da humanidade.

A Providência, de vez em quando, suscita um vingador dos planos divinos malbaratados, que não é necessariamente aquele que castiga, mas quem destroça a confusão. Esse, então, restabelece a clareza do rumo e as almas andam.

Há, portanto, todo um jogo das almas fiéis e infiéis, inclusive das vítimas expiatórias, que conservam ou degeneram as instituições, e um conjunto de misericórdia e justiça do qual só Deus tem conhecimento. Então, Ele vai criando outras almas, suscitando vocações, dando graças para realizar um plano, porque em sua infinita bondade Ele concedeu a algumas almas a honra de marcarem o rumo da História junto com Ele.    v

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 26/1/1980)

 

A graça que habita a criança batizada

Quando a criança é batizada, torna-se templo do Espírito Santo. À medida que vai amadurecendo, Deus acompanha o desabrochar de sua inteligência, vontade e sensibilidade. Já nos primeiros lampejos da razão começa a existir algo da noção de culpa e a possibilidade de um pecado, pois ela já tem livre-arbítrio e responsabilidade moral. Inicia-se, então, certa luta dentro da criança, que é a batalha travada por Deus com o demônio.

 

Evidentemente, quando fui batizado eu não possuía consciência de mim mesmo, de maneira que não tenho a menor sombra de recordação do meu Batismo. Devo, como todas as crianças, ter chorado muito, e estou certo de que recebi a graça batismal porque todos a recebem quando são batizados. Isso é de Fé, de maneira que não tenho dúvida a esse respeito.

A felicidade do Limbo e a do Céu

A Doutrina Católica aconselha que a criança receba o sacramento do Batismo o mais cedo possível, entre outras razões porque pode acontecer que ela morra de um modo inopinado. Ainda que seja uma criança bem constituída e forte, ela pode falecer, por exemplo, devido a uma sufocação. E, se morrer sem ser batizada, não irá para o Céu, mas para o Limbo, que é um lugar de uma felicidade inteira, porém de segunda ordem.

Para termos ideia do que seja essa felicidade, imaginemos o seguinte: uma pessoa vai morar em Versailles, no melhor dos apartamentos, no auge do luxo, do conforto, da boa mesa, e privando com o rei continuamente. Essa pessoa pode-se dizer que reuniu em torno de si vários elementos de felicidade. Não é uma felicidade perfeita, porque na Terra ela não existe.

Mas podemos supor uma pessoa que, por desígnio de Deus, gozasse em Versailles de uma felicidade suprema: tivesse uma inteligência perfeita, uma vontade de ferro, uma sensibilidade muito proporcionada, harmoniosa, bem como todas as qualidades que tornam uma pessoa atraente e agradável. Ela seria, portanto, com exceção do rei, o centro da corte, que atrairia todo mundo em torno de si.

Havia pessoas assim tão apreciadas na corte que ultrapassavam o monarca. O Rei Luís XIV, por exemplo, tinha um primo relativamente próximo que possuía o dom da conversa fascinante; chamava-se Príncipe de Conti. Quando o Monarca estava numa sala e entrava esse Príncipe, pelo protocolo ele precisava dirigir-se ao Rei e fazer uma profunda reverência, à qual o soberano respondia com um cumprimento superior e mais discreto. E se o Rei não lhe dirigisse a palavra, ele ia para qualquer canto da sala a fim de conversar com outras pessoas. Em pouco tempo Luís XIV estava quase sem gente em torno de si, porque o Príncipe de Conti sabia conversar de tal modo que as pessoas deixavam simplesmente o Rei e iam ouvi-lo falar.

Uma das coisas que torna a nossa vida agradável é nos sentirmos agradáveis aos outros. O fato de as pessoas se regalarem com o Príncipe de Conti, desejarem e preferirem sua presença à do próprio “Rei Sol”, é mais do que ser Luís XIV, no meu modo de entender.

Esse ramo da família real era muito capaz. Os Conti construíram um castelo para eles próprios, a uma distância não muito grande do Palácio de Versailles. O castelo foi ficando tão bonito que Luís XIV mandou um recado: “Proíbo-lhes aumentar o castelo ou pôr enfeites, porque deixa Versailles na sombra.” Vemos assim como eles sabiam fazer as coisas.

Então, imaginemos um homem que, além de tudo quanto descrevi acima, tivesse o dom da conversa que o Príncipe de Conti possuía. Enfim, com um homem assim poder-se-ia imaginar um pouco o que seria a felicidade existente no Limbo.

Mas a felicidade do Céu deixa o Limbo a anos-luz de diferença, porque no Paraíso Celeste a pessoa vê face a face a Deus que é infinito e, por assim dizer, dialoga sem cessar com cada um dos habitantes do Céu. Então, é uma felicidade perfeita, infinita, que com nada se pode comparar.

Começa uma batalha no interior da criança

Não se pode, por relaxamento, adiar o Batismo. Compreendemos, portanto, que uma criança, logo que foi batizada até iniciar o uso da razão, não se lembre de nada. Embora seja um templo perfeito do Espírito Santo, ela não começou ainda a ter aquela consciência da graça que adquire à medida que for amadurecendo e compreendendo melhor esse dom divino.

Tal é o valor da graça que habita uma criança batizada, que houve um Santo – cujo nome não me lembro, e creio terem existido outros Santos que faziam isso –, o qual, encontrando uma criancinha recém-batizada, costumava osculá-la no peito, porque, dizia ele, era o tabernáculo do Espírito Santo.

À medida que a criança vai amadurecendo, Deus acompanha o desabrochar da inteligência dela, bem como de sua vontade e sensibilidade. Nos primeiros lampejos da razão, já começa a existir alguma coisa da noção de culpa ou não culpa. E como tal, a possibilidade de um pecado, pois ela já tem livre-arbítrio e responsabilidade moral.

Começa então certa batalha dentro da criança, que é a batalha travada por Deus com o demônio dentro de cada um de nós.

Digamos, por exemplo, que uma criança esteja brincando em seu quarto. Sua mãe, que é extremamente carinhosa, bondosa, entra no cômodo, mas a criança está com mais vontade de brincar do que receber as carícias da mãe. Notando que seu filho tem pouco desejo de estar com ela, a mãe agrada-o ainda mais para ver se o atrai.

A criança pode ter um pequeno ato de má vontade em relação à mãe, que é o ponto de partida de uma série de implicâncias que continuam até a morte.

Pelo contrário, se a criança se vence, passa os braços em torno do pescoço da mãe, diz: “Oh, mamãe!” e beija-a, ela quebrou em algo uma unha do demônio que este queria cravar nela.  E, desta forma, ela começou a tomar uma atitude enérgica contra seus próprios defeitos, que pode ir até o extremo da velhice. Portanto, nos primórdios da vida espiritual já está presente alguma coisa que puxa a pessoa para o bem ou para o mal. Em geral, se prestarmos atenção, notaremos que toda a vida da criança é cheia de coisas dessas.

Minha alma estava como que colada à alma de Dona Lucilia

Recordo-me de que, sendo criança, restabelecendo-me de uma enfermidade, certo dia o médico disse à minha mãe:

— Ele não está mais doente, mas deve ficar na cama para se preservar um pouco e recuperar forças – eu era um menino muito fraco. A senhora alimenta-o quanto puder, dê-lhe tais e tais remédios e amanhã ou depois ele estará bom. Mamãe ficou naturalmente contentíssima.

Em minha infância, acompanhei isso a ponto de poder contar pormenores; eu tinha minha alma por assim dizer colada na alma dela. Não eram raciocínios que eu fazia, mas agia razoavelmente.

Quer dizer, a retidão que o Batismo pôs em mim levava-me a querer o carinho de mamãe e a dedicar-me a ela como ela se dedicava a mim. Eu sentia uma alegria em estar com ela, como não tinha com ninguém. E, embora eu estivesse ainda abalado, se me dissessem: “Você ficando bom, Dona Lucilia vai fazer uma viagem”, eu preferia permanecer de cama me restabelecendo, e que ela não viajasse.

Nessas circunstâncias, havia uma porção de atos de carinho dela para comigo, aos quais de um modo geral – não a cada um deles – eu deveria corresponder com afeto amoroso. De maneira que quanto mais ela se dava, mais eu me entregava a ela e a união de nossas almas começasse perfeitamente nesta ocasião, embora eu fosse um menininho.

E posso dizer que se não andei perfeitamente – não me lembro de nenhuma falta, mas pode ter havido –, andei quase perfeitamente. Isso me ajudou muito a que, mais tarde, quando fui posto diante do fenômeno religioso na Igreja do Coração de Jesus, a minha alma estivesse retamente aberta para aceitar aquela temática, mais ou menos como uma planta que respira o ar bom e disso ela vive.

Essa retidão preparou uma retidão muito maior: diante do Sagrado Coração de Jesus, do Coração Imaculado de Maria, da Liturgia católica, da Missa, do órgão, da Santa Igreja. Assim, passo a passo, Nossa Senhora me ajudou e me dispôs de maneira a que eu chegasse a ser, melhor ou pior, quem sou hoje.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 25/6/1994)
Revista Dr Plinio 267 (Junho de 2020)

Admiração desinteressada e inocente

Precisamos admirar o que é superior a nós para sermos contrarrevolucionários. Se tivermos uma admiração verdadeiramente desinteressada, do fundo de nossas almas seremos solidários com a ordem reta das coisas e, portanto, com a homenagem que se deve a Deus. Ver alguém ser contrário a isso nos afeta mais do que se nos tivesse dito um desaforo. O suprassumo de nós mesmos é aquilo que amamos sem interesse mesquinho.

 

Se prestarmos atenção no mundo de hoje, veremos o quanto ele é feito quase exclusivamente de interesse individual. Quando se trata de ser elogiada, a pessoa gosta; mas já não lhe agrada ouvir elogios dirigidos a outro. O mesmo se aplica a ganhar dinheiro, ter saúde, conforto, enfim qualquer vantagem: o indivíduo fica muito contente desde que seja ele o beneficiado.

A inversão de valores no mundo atual

Ora, por vezes, quando nos reunimos, embora sejamos de nações, formação cultural e educação tão diversas, vibramos de alegria ao celebrarmos as glórias alheias, considerando a vida e os feitos de diversos personagens históricos. Qual a razão dessa alegria?

O ser humano foi feito para crescer, tanto na alma quanto no corpo. De maneira tal que do próprio Menino Jesus diz o Evangelho que Ele “crescia e Se fortalecia, enchia-Se de sabedoria” (Lc 2, 40). Ao ler isto, tem-se a impressão do Divino Infante crescendo, florescendo, da infância delicada e sacrossanta do presépio para a adolescência e a força da idade madura, em que Ele iria carregar o lenho.

Essa transformação gradual, dia a dia, em que Ele cada vez mais se transformava de flor em cruz, de encanto em esplendor de sacrifício, era uma coisa que aumentava a formosura varonil d’Ele cada vez mais; dava-Lhe aquela forma superior de beleza que é o charme, mas o charme do varão forte, varonil, empreendedor, sério, seguro, porém tão delicado, meigo, paterno, de tanta ternura, que quase não se sabia como conciliar uma qualidade com outra. Isso era no Corpo, mas sobretudo na Alma.

A maior parte das pessoas pensa que a alma é uma espécie de radar feito para captar as necessidades do corpo e atendê-las, que ela existe para o corpo. Segundo esta concepção, o homem vive para fazer negócios bons a fim de comer. Então, a inteligência tem como função encontrar comida.

Ora, esse faro até cachorro ou um bicho pastando tem também. Para isso não é preciso possuir alma. Entretanto, a grande maioria das pessoas concebe as coisas assim. Formou-se e vai seguir tal carreira para quê? Ganhar dinheiro para poder comer, beber e dormir.

Então o homem não é senão um bicho mais complicado do que os demais e, enquanto tal, inferior aos outros animais. Porque se um boi, sem diplomas, encontra comida, o homem é apenas um bicho mais complicado do que o boi.

Nós vemos, então, como é absurdo admitir que o animal é mais do que o homem e a vida do animal mais perfeita do que a humana. O intelecto não pode ter como finalidade principal a manutenção do corpo. Contudo, se analisarmos o papel dado à alma no mundo contemporâneo, qual o interesse da maioria das pessoas pelos bens do espírito e pelas solicitações do corpo, notaremos uma desproporção arrasadora, simplesmente. As pessoas cuidam do corpo e a alma fica completamente de lado. É uma inversão de valores, por onde aquele que deveria ser rei é o servo.

Alegria do relacionamento entre almas com qualidades diversas

Pois bem, há um instinto na alma humana profundo, chamado instinto de sociabilidade, que faz com que os semelhantes se procurem. Este instinto também leva o homem a alegrar-se e a relacionar-se quando nota em alguém qualidades aparentemente opostas às dele, mas que o completam harmonicamente.

Imaginem Carlos Magno preparando os planos para uma invasão em terras de infiéis.

Sozinho na sua sala, caminhando de um lado para outro com passos firmes e cadenciados, sobre um chão de mármore ou de granito polido, está o Monarca de barba florida. O recinto, ainda com influência românica, possui arcadas que dão para um pátio interno onde há um pequeno chafariz sobre o qual pousa um pássaro que começa a saltitar. O Imperador interrompe seu caminhar, olha o passarinho e sorri amavelmente.

O passarinho é tão diferente dele! Entretanto Carlos Magno não olhou apenas para a ave, mas sentiu suas próprias vastidões interiores e compreendeu melhor a si mesmo.

O Imperador senta-se, manda vir um pouquinho de vinho e diz:

— Chame Alcuíno, meu ministro e conselheiro. Quero expor-lhe os planos de uma universidade e de uma batalha, porque as duas coisas eu resolvi agora.

O homem se completou.

Entra Alcuíno, monge famoso que organizou a renovação da cultura católica ocidental como ela se desenvolveu na Idade Média; foi o Carlos Magno da cultura. Podemos imaginá-lo como um homem venerável, de rosto comprido, fino, olhar que fita do fundo de arcadas oculares onde olhos pequenos e pretos dardejam, ou olhos azuis e inocentes sonham.

Alcuíno se inclina ante Carlos Magno, que faz um gesto e diz:

— Sentai-vos!

O sábio Monge pede licença para ficar ajoelhado, ao que o Monarca responde:

— Sois clérigo. Não é bom que um clérigo se ajoelhe diante de um leigo. Sentai-vos!

Alcuíno afirma:

— Por vossa ordem e em obediência a Deus, que deseja que o clero seja reverenciado, senhor, eu me sento.

Começa a conversa durante a qual Carlos Magno apresenta as metas gerais para uma universidade. Alcuíno ouve embevecido e pensa: “Que largueza de pensamento, que homem! Vejo todo um continente formando-se atrás da fronte desse Imperador. Que felicidade ter conhecido Carlos Magno!”

Dali a pouco o Monarca vai falando menos e o Monge toma a palavra. Enquanto a voz de Calos Magno lembra espadas e escudos que se entrechocam, a de Alcuíno remonta a sinos que tocam. Diz o douto conselheiro:

— Senhor, para realizar as vossas imperiais e cristianíssimas intenções, que julgo ter bem apreendido, tenho o intuito de vos propor tais matérias, e tal outra tem tal riqueza…

De repente é Carlos Magno quem está entrando pelo mundo da cultura e do saber, e pergunta algo a respeito de Aristóteles, Santo Agostinho, São Jerônimo. Depois quer saber alguma coisa sobre o Concilio de Niceia, tal pormenor concernente à virgindade da Mãe de Deus, e tal outro detalhe a propósito da união hipostática. Nesse momento, Carlos Magno está longe… Não pensa mais no passarinho, nem na batalha contra os germanos ou os árabes. Ele tem apenas diante de si o mundo da cultura e a alma de Alcuíno que se desdobra imensa diante dele, sabendo tudo, explicando tudo. Carlos Magno virou passarinho e saltita na cultura de Alcuíno, encantado!

É natural que isso tenha acontecido desse modo, porque assim é a alma humana. Carlos está diante de quem tem mais cultura do que ele. O passarinho o encantava por ser pequenino, e despertava na alma dele todas as afinidades harmonicamente opostas que o grande tem com o pequeno. Agora é o grande que tem alegria de sentir-se pequeno ao considerar alguém maior do que ele, não absolutamente falando, mas num ponto.

O grande Monarca tem a alegria de admirar e de crescer à medida que admira, saindo dessa conversa mais elevado de espírito e pensando: “Agora sei tal coisa e tal outra. Hoje não conquistei nenhuma província, mas fiquei conhecendo Santo Agostinho. Quando morrer não conduzirei comigo uma província, mas levarei para o Céu o que eu soube e admirei da ‘Águia de Hipona’. Que grande dia este em que conversei com o Monge Alcuíno!”

Ao admirar os que lhe são iguais o homem tende à sua plenitude

Imaginemos agora outra cena que historicamente não se deu, mas poderia ter-se dado: o encontro dos dois imperadores, do Oriente e do Ocidente, em Constantinopla.

Vendo a cidade maravilhosa na praia do Bósforo, parado num cais o Imperador do Oriente espera a chegada de Carlos Magno.

Chega a hora em que desce do navio uma passarela com um tapete sobre o qual Carlos Magno caminha. Ambos de coroa na cabeça se cumprimentam, com ar de um rei que saúda outro rei. Nesse aperto de mão de dois monarcas cristãos, Oriente e Ocidente, eles sentem a presença de Jesus Cristo e estreitam a amizade. Carlos Magno vê seu igual como seu irmão. Sua alma cresceu numa outra dimensão. De igual a igual, cada um deles é mais ele mesmo.

Houve interesse nisso? Não, mas houve vantagem. Essa alma tinha necessidade disso para crescer inteiramente. Todo ser vivo tende à sua plenitude, e Carlos Magno ganhou plenitude no que ele tinha de mais essencial nesses três episódios de sua vida. Ele ficou mais pleno, mais ele mesmo.

Voltando de Constantinopla, algum escudeiro do grande Carlos poderia dizer a alguém que não viu a cena: “Vós não sabeis o que é glória! Vós conheceis um imperador só – Carlos, o Grande – tratando com os que são inferiores a ele. Mas não vistes a glória de nosso Imperador quando ele tratou com um igual. Tinha-se a impressão de um arco-íris que ia de um ponto a outro! Aquilo é glória, quando se viu a soma dessas duas majestades altivas e cordiais entre si. Como é grande isso!”

Sem dúvida, houve vantagem para quem presenciou isso porque cresceu. Mas é preciso ter um espírito tal que se queira isso ainda que não houvesse vantagem; pela homenagem desinteressada e encantada em relação àquilo que é maior, igual ou menor em relação a nós.

Quando admiramos algo superior a nós, prestamos um ato de culto a Deus

Para o mundo contemporâneo esta posição é uma aberração, pois o princípio no qual se baseiam os pressupostos de quase todo mundo hoje em dia é: o que não diz respeito a mim, não me move.

Ora, o princípio que apresento é o contrário: movo-me para conhecer e admirar algo que não sou eu, mas um outro em relação ao qual me coloco numa posição de alegria porque ele é quem é, independente de pensar em mim.

Se isso parece absurdo para a mentalidade hodierna, existiu um ser mais inteligente do que todos os homens que houve, há e haverá até o fim do mundo, que também pensou do mesmo modo que a maioria das pessoas de hoje: Lúcifer.

Com efeito, é próprio à criatura, por não ser ela a fonte de seu próprio ser, viver para quem a fez. Logo, o centro de nosso ser está fora de nós, é o nosso Criador.

Imaginem que um escultor esculpisse uma estátua e, miraculosamente, desse-lhe a vida. E tão logo ela acabasse de ser esculpida, dissesse ao seu autor:

— Até logo, vou embora.

O escultor lhe passava um laço e diria:

— Sem-vergonha! Eu te fiz, tudo o que há em ti foi dado por mim, e vais embora? Vou te liquidar, não existirás mais.

Sendo o autor da estátua, o artista tem o direito de servir-se dela. Pois bem, se isso é assim do escultor com a estátua, quanto mais de Deus para conosco. Eu nada era quando Deus resolveu que existisse um Plinio. Ele criou a minha alma; devo, portanto, submeter-me a Ele.

De fato, quando admiramos algo superior a nós, estamos, no fundo, prestando um ato de culto a Deus. Admirar é a postura normal de nossa alma.

Os contrarrevolucionários vivem da admiração

Quando o homem está na postura normal ele sente bem-estar. Mas o bem-estar é um reflexo muito apreciável, porém colateral da ordem que está nele. Por exemplo, um auditório precisa ter cadeiras confortáveis para que os ouvintes se esqueçam do corpo e possam prestar atenção na conferência. Os acolchoados, os braços da cadeira postos a uma altura adequada, o apoio e a distensão que o corpo recebe evidentemente produzem um certo bem-estar. Entretanto, ninguém diria: “Eu vou agora ao auditório para sentar numa cadeira.” A pessoa vai para participar de uma reunião. A posição adequada produz, colateralmente, um bem-estar.

Assim também a própria felicidade que o entusiasmo produz é, ainda ela, secundária em relação a essa admiração desinteressada e cheia de amor que devemos ter para com Deus.

Santa Teresa de Jesus exprimiu isso de um modo magnífico, quando disse que queria amar a Deus de tal maneira que “ainda que não houvesse Céu, eu Vos amaria, e ainda que não houvesse Inferno, eu Vos temeria”. Quer dizer, “independente de tudo, por serdes Quem sois, eu Vos amo quanto posso e lamento não ter capacidade de adorar ainda mais.”

No “Gloria in excelsis Deo”, que se reza na Missa, há um momento em que se diz “Gratias agimus tibi propter magnam gloriam tuam”: nós vos damos graças, ó Deus, por vossa grande glória. Não é minha glória, mas a d’Ele.

Consequentemente, quando vemos que alguém não dá a Deus a glória devida, não apenas porque não O admira, mas inclusive blasfema contra Ele, nossa alma é atingida no seu cerne. Se tivermos uma admiração verdadeiramente desinteressada, é do próprio fundo de nossa alma que seremos solidários com a ordem reta das coisas e, portanto, com a homenagem que se deve a Deus. Por isso, ver alguém ser contrário a isso é mais do que se nos tivesse dito um desaforo, roubado de nós um objeto ou lançado contra nós uma calúnia. O que foi atingido vale, para nós, muito mais. Não por ser interesse nosso, mas porque o suprassumo de nós mesmos é aquilo que amamos sem interesse mesquinho.

Há, pois, um entrechoque de revolucionários que se negam a admirar e contrarrevolucionários que vivem da admiração. Entretanto por detrás dessa luta há outra que se trava no interior de cada um de nós entre Deus e o demônio, entre a Virgem e a serpente, de maneira que somos um campo de batalha.

Para atuarmos nesses combates, tanto o externo quanto o interno, a Divina Providência nos concede auxílios maravilhosos. Um deles é a graça, participação que o homem tem na própria vida de Deus. A graça é uma criatura, mas ela nos faz participar da vida do Criador e confere à alma forças que estão na linha da sabedoria, da energia, da sagacidade e de todo o esplendor divinos. E isso nós aplicamos na luta também. Não é, portanto, apenas a força natural.

Dentro de nosso campo de batalha interior os Anjos da Guarda são o auxílio poderoso

Outro auxílio poderoso são os nossos Anjos da Guarda. Embora sejam tão superiores a nós que constituam os nossos arquétipos, nessas batalhas eles estão para nós como os escudeiros em relação aos cavaleiros.

Por vezes, os Anjos da Guarda são representados naqueles quadrinhos encantadores, onde aparece um Anjo ajudando uma criança a não cair da bicicleta, por exemplo. É verdade, respeito enormemente, mas não é a função primordial do Anjo da Guarda. Sua principal missão é ajudar-nos a vencer a Revolução dentro e fora de nós, e sermos inteiramente contrarrevolucionários. Somos os combatentes, e ele nos dá conselhos e forças enquanto lutamos.

Quando somos fiéis à graça e à ação angélica, no meio dessa batalha há algo em nossa alma que entra como um coro, uma orquestra de guerra. Por outro lado, se pecamos começa a coaxar um sapo ou grunhir um porco. É o demônio que faz a sua casa naquele que caiu no pecado. E nós, só pelo fato de estarmos em pecado, já passamos a lutar em favor do demônio. Embora nada façamos, o nosso existir em estado de pecado nos inscreve no lado do adversário. Donde a necessidade de, o mais cedo possível, sair dessa situação e voltar ao estado magnífico e diáfano da graça, onde nos transpomos de um exército para outro, e de anjos malditos passamos a ser novamente Anjos benditos.

Quiçá algumas pessoas colocadas diante das verdades acima expostas terão suas almas divididas em duas zonas opostas. Uma, luminosa, clara, alegre, porque ouvir alguém falar daquilo que merece todo o entusiasmo, ou seja, de Deus, de Nossa Senhora, da Santa Igreja Católica torna a alma límpida, leve, satisfeita.

A outra zona é obscurecida por interesses mesquinhos: vontade de fazer carreira, de ganhar dinheiro, de aparecer, de ser importante. Isso deixa a alma escura, pesada, abatida, arfando e pensando: “Quando me virão o dinheiro e o prazer que eu quero?” Se vierem, essas pessoas farão o mesmo que realizam todos aqueles que possuem essas coisas: quando a mão está bem cheia, deixam cair no chão porque de nada servia aquilo tudo. Essa é a realidade.

Peçamos a Nossa Senhora a admiração desinteressada e inocente, ponto de partida invencível de todo o ódio necessariamente fulminante, esmagador e vitorioso contra a Revolução.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 27/10/1979)
Revista Dr Plinio 267 (Junho de 2020)

 

Flor e glória da Cristandade – I

Todo o brilho que circunda a palavra “cavaleiro” se refere a uma das noções fundamentais da Civilização Cristã. Embora pareça existir uma incompatibilidade completa entre o católico e a guerra, o exemplo dos Anjos nos ensina que a força exercida por amor a Deus torna-se sagrada.

 

Não há uma data específica para indicar o fim da Cavalaria, de maneira a se poder dizer: “Ela terminou em tal ocasião”, mas é certo que, assim como os grandes crepúsculos não têm momento adequado para se afirmar que se fez noite, também o “pôr do sol” da Cavalaria não se sabe bem quando se consumou.

Palavra que dignifica o homem a quem se refere

Entretanto, lá pelo século XVII já não se podia propriamente falar nesta instituição. Havia Ordens que já não tinham quase nada da Cavalaria antiga. Possuíam meras recordações, era um título, mas a Cavalaria propriamente dita tinha desaparecido.

Mais de trezentos anos depois, eu encontro jovens que, ao serem chamados de “cavaleiros”, sentem-se dignificados, mesmo sem conhecer tudo quanto a palavra “cavaleiro” significa.

Quando se quer elogiar alguém que teve um procedimento bonito, nobre, abnegado, corajoso, diz-se: “Tu procedeste como um cavalheiro!” Havendo entre dois homens educados uma altercação que se encerra de um modo distinto e elegante, afirma-se: “Terminou como uma contenda de cavalheiros!” Por outro lado, ao queixar-se contra quem lhe faltou com o respeito, uma senhora poderá usar esta fórmula: “O senhor não foi um cavalheiro!”

Cavaleiro – de onde deriva o termo “cavalheiro” – é, portanto, uma palavra que circula por toda parte, mas cujo sentido quase ninguém sabe definir com exatidão. O termo sugere a ideia de alguém que monta a cavalo. Entretanto, quando vemos, por exemplo, alguns soldados da Polícia Militar a cavalo fazendo a ronda do bairro, embora seja uma tarefa digna, honesta, própria a despertar a simpatia, podemos dizer que são cavaleiros? Eles poderão fazer parte de uma força de cavalaria da Polícia Militar, mas a Cavalaria é uma outra coisa.

O que vem a ser o cavaleiro? O que ficou colado nesta palavra de modo que, mesmo sem saber defini-la, todos reconhecem nela um certo brilho, uma certa luz que dignifica o homem a quem se refere? Vale a pena examinarmos isto para compreendermos uma das noções fundamentais da Civilização Cristã, mais ou menos tão perdida na mente do homem contemporâneo como desaparecida está a própria ideia de Civilização Cristã.

Há restos, aromas da Civilização Cristã no mundo de hoje, como num jarro de onde foi retirada uma rosa que ali esteve durante algum tempo: tira-se a flor, fica o perfume. Assim também, da Civilização Cristã no mundo de hoje há um resto de perfume, mas a rosa não está mais presente.

O tipo mais perfeito do cavaleiro é o cruzado

Ora, uma das palavras nas quais se sente o perfume da Civilização Cristã é “cavaleiro”. Ele é uma flor e uma glória da Cristandade. A tal ponto que o termo “cavaleiro” tem um nexo histórico e doutrinário muito merecido com a ideia de Cruzada. Quando se diz “fulano é um cruzado de tal ideal, ou de tal causa”, dá-se a entender que é um homem abnegado, heroico, corajoso, dedicado, que não conhece obstáculo, enfim, um grande homem.

Os cruzados não só são cavaleiros, mas o tipo mais perfeito do cavaleiro é o cruzado. Que aroma misterioso e delicioso impregna essas palavras de maneira a resistir até à poluição deste fim de era histórica em que estamos vivendo!

Devemos considerar que, ao falar de cavaleiro, referimo-nos a alguém que realizou a mais alta perfeição de um certo tipo de qualidades humanas. Um santo não é necessariamente um cavaleiro, mas um cavaleiro que leve as suas qualidades até o extremo torna-se santo. Mais ainda: um santo, colocado nas condições em que lutaram os cavaleiros, também ficaria um cavaleiro.

O santo é o homem que atingiu a sua perfeição, que foi chamado por Deus a um alto grau de virtude e correspondeu inteiramente, ou de modo exímio, a esse chamado.

O cavaleiro, por sua vez, corresponde a uma forma de perfeição de que deve ser capaz todo homem colocado nas condições de lutar. O verdadeiro católico, impelido pelas circunstâncias a combater, torna-se cavaleiro.

Logo, o cavaleiro é o católico em luta. É uma forma de excelência e de perfeição que se nota no católico quando as condições da vida, do embate entre o bem e o mal, o colocam no caso de batalhar. Aí estará o católico emitindo um particular brilho de sua alma. Esse brilho é o espírito da Cavalaria.

Entre os anjos reinava uma harmonia perfeitíssima

Para termos uma ideia exata da Cavalaria, reportemo-nos ao que poderíamos chamar a primeira manhã da Criação. Deus criou os anjos, puros espíritos; os homens, compostos de espírito e matéria, tendo um corpo perecível no qual estão presentes as naturezas animal, vegetal e mineral; os animais, os vegetais e os minerais. Esse é o quadro geral da Criação que, tomada no seu todo, teve a sua primeira manhã no momento em que Deus criou os anjos.

Podemos imaginar a criação dos anjos simultânea, de maneira a todos, desde o primeiro instante de existência, começarem a brilhar, conhecer, adorar a Deus e a cantar as glórias d’Ele.

Também imediatamente passam a se conhecerem uns aos outros e se relacionarem de um modo harmônico, em coros que cantam a glória de seu Criador. Entre eles reina uma harmonia perfeitíssima porque estão todos voltados para Deus.

Essa harmonia tem o esplendor da paz, que Santo Agostinho definiu tão magnificamente como sendo a tranquilidade da ordem. Portanto, não é a qualquer tranquilidade que se pode chamar de paz, mas àquela que resulta da ordem.

Há formas de desordem que dão a impressão de paz. Num charco, por exemplo, com água estagnada, no qual nada acontece, nada se move, há uma tranquilidade, mas não oriunda da ordem. Há qualquer coisa de propício à podridão, à degenerescência, à degradação, que prenuncia a desordem. Isso não é paz.

Entre os anjos, pelo contrário, por estarem todos ordenados em função da vontade e da glória divinas, havia a permuta harmoniosa de bons ofícios para juntos adorarem a Deus.

Quem introduzisse no Céu qualquer semente de desordem, um espírito mau que tentasse provocar uma intriga entre dois anjos, instigando o amor-próprio de um contra outro para produzir uma encrenca ali dentro, nós o chamaríamos de bandido! Porque ia perturbar a tranquilidade da ordem, o esplendor do Reino de Deus sobre todas aquelas criaturas.

Com maior razão ainda, se um puro espírito sacasse uma espada – para usar uma linguagem metafórica, pois um anjo não tem corpo – e começasse a agredir o outro, nós o consideraríamos demônio. Por que ele vai atingir e ferir o outro, pô-lo em desordem e provocar efervescência de ódio? Colocar o tumulto, as incertezas e as angústias das guerras onde deveria haver apenas a segurança esplêndida e diáfana de um futuro que nada perturbaria?

Quem fizesse isso praticaria uma ação muito má. Nela nós podemos ver o que há de substancialmente mau na violência, a qual, de si, considerada sem as circunstâncias que a expliquem, é um ato feio que macula com a sua própria feiura quem o pratica. O violento fica hediondo. Não há pior ultraje contra alguém do que dizer: “Tem cara de assassino.” É uma coisa horrorosa…

Dir-se-ia, pois, existir uma incompatibilidade completa entre o católico e a guerra, porque ele é membro do Corpo Místico de Cristo; nele está presente, pela graça, a própria vida de Deus, é um templo do Espírito Santo, foi remido pelo Sangue infinitamente precioso de Nosso Senhor Jesus Cristo, tendo por Co-Redentora Nossa Senhora, com suas lágrimas indizivelmente preciosas. O católico é um filho da ordem, da tranquilidade, é a sede da paz!

Como podemos imaginar um homem nessas condições que prepara para si uma arma com a intenção de verter o sangue alheio e, quando a arma está pronta, procura a quem matar? Ele deseja tanto matar que até expõe a sua vida para esse efeito, porque tem ódio, quer ver sangue derramado e gente morta pela destra dele. Esse é um católico, um templo do Espírito Santo, um membro d’Aquele que diz: “Aprendei de Mim que sou manso e humilde de coração…”?! O contraste não é o mais abrupto possível?

Um prélio magno travou-se nos Céus

Entretanto, quando Lúcifer se levantou contra Deus e arrastou com sua revolta uma terça parte dos espíritos celestes, provocando uma Revolução no Céu contra o Criador, houve um Anjo que soube se erguer e bradar: “Quis ut Deus? – Quem como Deus?” Foi São Miguel Arcanjo que, com esse brado, conclamou à luta dois terços dos espíritos celestes, realizando o que diz a Escritura: “Prœlium magnum factum est in cœlis.” Na mansão da paz e da tranquilidade se fez uma grande guerra, um prélio magno travou-se nos Céus e São Miguel com os seus Anjos jogaram no Inferno a Lúcifer e seus sequazes. Portanto, o resultado dessa batalha foi lançar os vencidos na mansão da desgraça incessante, total e inexpiável, sabendo que eles iriam ter esses tormentos por toda a eternidade. Os anjos de paz, que antes se amaram, cindiram-se e os dois terços capitaneados por São Miguel – eles, os pacíficos, os filhos da Luz – quiseram arrojar na mansão eterna das trevas e da morte satanás e seus anjos.

Usando sempre uma linguagem metafórica, imaginemos a cena. São Miguel se levanta indignado, esplendoroso, e brada com uma voz de trombeta que cobre, de ponta a ponta, as vastidões celestes: “Quis ut Deus?” De um lado, muitos Anjos se entusiasmam e aderem a ele, constituindo as gloriosas hostes celestes. Mas, do outro lado – onde talvez houvesse antes um esplendor maior, pois os partidários eram capitaneados pelo mais perfeito dos entes angélicos, aquele que trazia consigo a luz, outrora a alegria do reino celeste, espelhando a Deus para os outros anjos – encontra-se Lúcifer, medonho, rubro de ódio e de cólera. Todas as paixões indignas se manifestam nele; está cheio de inveja e de todos os outros pecados capitais, na medida em que esses podem estar em um anjo. O espírito revoltado encontra-se agora borbulhando de ódio contra aquele Deus a Quem ele olhava com amor.

A luz das hostes de São Miguel avança e a batalha começa! Como terá sido esse embate? Como podem puros espíritos, que não têm corpo, combater entre si?

O fato concreto é que houve três transformações a partir da revolta de Lúcifer. Primeira: ele e seus sequazes se tornaram execráveis e hediondos. Segunda: aqueles anjos que eram de paz, de cordura, se transmudaram nos maiores guerreiros que se possa imaginar. Terceira: a mansão da paz se transformou num terrível campo de batalha.

A força exercida contra os maus por amor a Deus se torna sagrada

A partir desse momento, a violência nos aparece sob outra cor. Se é verdade que, considerada na simplicidade de sua figura primeira, ela é hedionda, quando a vemos ter origem na oposição a um anjo que se tornou péssimo ao se revoltar, tentando ele mesmo a violência contra o Criador, declarando “non serviam – não servirei a Deus”, então o uso da violência passa a ter uma beleza especial.

Deus é supremo e absoluto, todos os direitos valem na medida em que O servem. A partir do momento em que esses anjos se revoltaram contra Ele, opondo-se a todo o direito, toda a ordem e toda a lei, perderam o direito de estar no Céu, e o único lugar proporcionado para eles era o Inferno. Resultado: tornava-se necessário enxotá-los para lá. A guerra surge, assim, como um santo e glorioso dever.

O emprego da força, que pareceria tão contrário à convivência entre os espíritos celestes, passa a ter um esplendor peculiar: é o amor a Deus enquanto recusando o mal e derrubando no Inferno quem é contra Ele.

Como nada pode tornar o espírito humano tão apreciável e venerável quanto o amor de Deus, assim também a força exercida por amor a Ele, chegando inclusive à agressão, quando esta é destinada à defesa da glória divina, se torna sagrada e resplandece com um brilho especial.

Daí vem a noção do homem completo. Se lhe foi dada a ocasião de atacar o mal e não o fez, ele pode não ter desenvolvido a sua força de alma como era necessário. Assim, entre dois homens muito virtuosos, um dos quais pouco lutou na vida, enquanto o outro, de ponta a ponta de sua existência, foi um guerreiro, qual aquele cuja personalidade podemos apreciar melhor? Evidentemente a daquele que, além de ter sido tudo o que o outro foi, ainda combateu.           v

(Continua no próximo número)

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 26/5/1984)
Revista Dr Plinio 266 (Maio de 2020)

 

Levaremos a luta até à vitória

Alguns meses antes de sua morte, ao narrar certos episódios de sua vida, Dr. Plinio afirma: “Ainda na minha infância, senti a Revolução em pé contra mim como uma hiena, e compreendi que a salvação de minha alma e o futuro de todo o mundo estavam arriscados se essa hiena não fosse derrubada; resolvi então combatê-la. Custasse o que custasse, com a proteção de Nossa Senhora, eu haveria de lutar contra ela e a Santíssima Virgem me daria a vitória”.

 

Quando eu era menino, entre sete e dez anos, havia no meu quarto, além de uma estampa com o Sagrado Coração de Jesus, um quadro bonito representando Nossa Senhora, não me lembro sob que invocação.

Dificuldade com a devoção a Nossa Senhora

Mas a minha devoção, por causa do exemplo de mamãe, ia toda para o Sagrado Coração de Jesus. Embora eu a visse rezar também para a Santíssima Virgem, por uma espécie de relacionamento especial que ela possuía para com o Divino Filho d’Ela, Nosso Senhor Jesus Cristo, mamãe me ensinava a rezar muito ao Sagrado Coração de Jesus. Ela falava menos de Nossa Senhora e do Imaculado Coração de Maria.

E formou-se em mim – menino, bobinho – um estado de espírito pelo qual eu tinha uma espécie de dificuldade com a devoção a Nossa Senhora. Compreendia, achava bonito, mas tinha uma espécie de objeção contra aquilo. Uma objeção de mau espírito, porque no fundo dizia o seguinte: “Reza-se demais para Nossa Senhora. Devia-se orar menos para Ela e rezar mais para Jesus Cristo”, o que me fazia orar pouco para Ela. É uma péssima disposição de espírito.

Eu não sabia que a Santíssima Virgem misericordiosamente me reservava um caminho especial nas vias d’Ela, de tal maneira que mais tarde – em virtude das circunstâncias que vou relatar daqui a pouco – a minha vida acabou sendo um ato de devoção contínua a Nossa Senhora e, por meio d’Ela, a Nosso Senhor Jesus Cristo.

Os fatos se passaram do modo mais inesperado possível. No Colégio São Luís, onde eu estudava, os padres distribuíam a cada aluno, todo mês, um boletim no qual constava uma nota em cada matéria lecionada. A primeira matéria mencionada, a muito justo título, era Religião e depois vinham as outras.

Em cada matéria havia dois quadradinhos especiais: um se referia à aplicação e outro ao comportamento. A nota de aplicação visava premiar o aluno que aprendia bem, ou censurar o que não fazia esforço para aprender, sendo relaxado e preguiçoso. A de comportamento considerava a conduta do aluno durante a aula: se conversava, dava risada do professor, atrapalhava por meio de provocações e brincadeiras os outros colegas.

Os alunos deveriam levar os boletins para os seus pais. Em geral a distribuição era feita nas sextas-feiras à tarde. Na segunda-feira, o aluno tinha que trazer de volta o boletim assinado pelo pai, e o colégio o arquivava.

Minha conduta na aula era boa e em geral as notas eram elevadas, até bem elevadas. Quanto à aplicação, havia uma diferença. Certas matérias me interessavam muito, então dessas eu era um aluno bem bom. Religião, História, Francês, Português eram matérias de que eu gostava e me aplicava. Mas em Geografia, Matemática, Geografia do Brasil e outras coisas dessas, eu recebia notas menos altas porque não estudava. Eu tinha birra dessas matérias, não gostava de estudá-las e concentrava o melhor do meu esforço naquelas que apreciava.

Mas mesmo nas matérias das quais eu não gostava as notas de aplicação eram suportáveis. Em comportamento, sendo um aluno muito calmo, tranquilo, disciplinado, graças a Deus eu tirava dez em todas as matérias, que era a mais alta nota.

O homem vale pelo seu caráter

Quando eu chegava em casa, Dona Lucilia estava à minha espera, porque ela já sabia que aquele era o dia da distribuição do boletim. Ela me perguntava:

— Filhão, você trouxe seu boletim?

Eu o tirava da minha pasta e entregava-lhe tranquilo porque já tinha visto as notas e sabia que tudo estava bom. Ela lia com atenção, depois em geral me beijava e fazia um comentário de uma matéria ou outra:

— Matemática está muito baixa. Veja se você levanta essa nota no mês que vem. Você não quer apreender Geografia do seu país? O que é isto?

Eu dava uma saída qualquer e percebia que ela não fazia uma questão fechada.

Ela às vezes me dizia:

— Eu fico especialmente contente por causa da nota dez de comportamento que você sempre tem. Você quer saber por quê?

Eu dizia naturalmente que queria, e ela me dava sempre a mesma explicação:

— Ninguém tem culpa de ser burro, tem culpa de ser ruim. Um aluno que tem nota baixa de comportamento não é burro, é ruim, não gosta da ordem, da disciplina, do esforço. Agora, um aluno que tem nota baixa de estudos significa que é burro, ele não tem culpa de não aprender aquela matéria, não dá para aquilo. Eu prefiro mil vezes ter um filho burro, mas bom, do que um filho ruim, mas inteligente, porque o homem vale pelo caráter. A inteligência é uma coisa de valor, mas secundária. Sem inteligência se vai para o Céu, sem caráter não.

Eu ouvia aquilo que me era dito com muito afeto e achava que ela tinha razão. Ela fazia como se não soubesse se eu era inteligente ou não. E acrescentava:

— Se você vier a dar um homem burro não tem culpa, está perdoado desde já, nem tenho o que perdoar. Mas se der um homem ruim será diferente; com sua mãe homem ruim não passa.

Uma nota baixa em comportamento

Certo dia, após a distribuição dos boletins, eu abri o meu e verifiquei que as notas estavam razoáveis. Entretanto, a de comportamento na matéria Geografia era péssima, seis, muito abaixo do que Dona Lucilia toleraria. Se uma nota de comportamento fosse nove, ela toleraria, mas com uma observação: que isso não se repita; mas seis ela não toleraria.

Olhei aquilo e fiquei pasmo. Pensei: “Eu não fiz nada na aula de Geografia, não tenho culpa nenhuma, isso é uma injustiça ou um engano de quem copiou essas notas. Mamãe agora vai ficar indignada e não sei o que vou fazer. Devo tirar essa nota do boletim”.

Aí veio a criancice, a imbecilidade. Cogitei: “Preciso passar uma água em cima dessa nota seis.” Depois eu refleti: “Mamãe verá que passei água e vai perguntar o que eu quis esconder.” Como estava chovendo muito, pensei: “Vou lá fora, abro o boletim, cai água da chuva em cima e depois direi a ela: ‘Mamãe, eu quis ler o boletim na chuva e pingou água na nota de Geografia, como em outras partes do boletim’; e assim tapeio a coisa”.

Fui para a chuva, mas houve algo incrível: chovia em torno da nota seis, porém nenhuma gota de água caía em cima do seis. Perdi a paciência, esperei cair uma gota grande de água e com um dedo molhei resolutamente a nota seis. Aí verifiquei que ficou uma porcaria, ela veria mesmo e eu teria que lhe dar explicações.

E como diz a Escritura “abyssus abyssum invocat” – quer dizer, um abismo atrai outro abismo, um erro atrai outro erro, uma má ação atrai outra má ação –, resolvi escrever dez em cima do seis com a minha letra. Ela estava farta de conhecer minha letra e veria que era o auge da infantilidade e do não saber fazer as coisas.

“Prefiro tudo na vida a ter um filho falsário”

Quando chego em casa, ela, com seu afeto habitual, indagou:

— Filhão, você tem seu boletim aí?

— Tenho.

— Deixe-me ver.

Entreguei-o fechado. Eu costumava entregá-lo aberto para ela.

Ela abriu e perguntou:

— O que é isto aqui?!

— Mamãe, caiu água.

— Não me venha com essa história. Aqui em cima você escreveu dez. O que tinha embaixo? Por que você apagou o que estava embaixo?

Eu disse:

— Mamãe… tinha seis.

— Ah?! O que você fez para seu professor de Geografia lhe desse seis?

— Não fiz nada, mamãe, mas saiu essa nota. Não querendo aborrecer a senhora, eu arranjei um jeito de pôr uma nota que a deixasse contente; mas sabia que tinha feito mal.

Mamãe ficou indignada e tirou logo uma conclusão cujo verdadeiro alcance eu não peguei na hora. Ela disse:

— Prefiro tudo na vida a ter um filho falsário.

Ela pronunciou a palavra “falsário” de tal maneira que eu senti, no modo de ela dizer, sem poder compreender bem, todo o mal que existe na falsificação.

No meio de casos publicados nos jornais e contados na família, eu já tinha ouvido falar de falsário, qualificado nas conversas, como por toda parte se qualifica, como um crime realmente dos mais nocivos, mais condenáveis e, nessas condições, como uma coisa que rebaixava muito o homem.

Naturalmente não se tratava de falsário de nota de colégio, eram falsários que falsificavam cheques de banco e coisas dessas, quer dizer, crimes de prender na cadeia, uma coisa muito mais séria, muito mais forte.

Mas, enfim, ela disse “falsário” e toda aquela censura do falsário caiu em cima de mim. E acrescentou:

— Você fique sabendo o seguinte: na segunda-feira seu pai irá ao Colégio São Luís, vai mostrar ao padre o que você fez e pedirá para verificar, nos assentamentos do colégio, qual é a sua verdadeira nota. Se foi uma nota errada que copiaram mal, você está perdoado; mas se de fato a nota real é seis, você não vai ficar mais um dia em São Paulo. Eu vou mandar você para o Colégio do Caraça.

Eu fiquei pasmo:

— Longe de casa, mamãe?

— Sim, senhor. Eu não quero ter falsário perto de mim.

Eu caí em vários abismos. Para mamãe não me querer mais perto dela, pode-se imaginar o que isso significava, era uma coisa horrorosa!

Ela, ao mesmo tempo, me disse que esse Caraça era uma espécie de penitenciária para crianças, que só meninos meio criminosos é que iam parar lá. Não correspondia à verdade, pois era um dos melhores colégios do Brasil. Mas naquele tempo as comunicações eram mais difíceis, as pessoas estavam menos informadas do que hoje e ela tinha esse conceito errado a respeito do Colégio do Caraça.

Ela me disse:

— Vou mandá-lo para lá e você vai ficar um ano sem me ver e sem que eu possa vê-lo. Não pense que vou visitá-lo, porque mãe de falsário… eu não quero saber disso.

Cada vez que ela dizia uma coisa dessas, que contrastava com o carinho requintadíssimo e dulcíssimo com que ela me tratava, eu me sentia mais achatado e mais esmagado pelo meu próprio delito: “Falsário, que coisa horrorosa!” Eu, sem saber bem o que isso significava, me sentia um falsário.

Paralelamente com isso eu fiz uma outra ação, a qual não tenho razão para contar aqui, que foi uma ação má. Quer dizer, infelizmente eu estava atravessando dias ruins. Mamãe não sabia dessa ação. Se ela viesse a saber, eu não sei onde iria parar.

Missa na Igreja Sagrado Coração de Jesus

Mamãe pediu a papai para vir falar com ela na minha presença. Explicou-lhe o acontecido e papai naturalmente também não gostou nada do que eu fizera. Combinaram que ele iria na segunda-feira – no primeiro dia útil, portanto – ao Colégio São Luís para perguntar o que havia.

Passou-se com isso a sexta-feira, o sábado – triste e aborrecido para mim. No domingo resolvi ir à Missa na Igreja do Coração de Jesus. Estava com pouco sono e acordei-me cedíssimo, quando costumava despertar tarde aos domingos. Levantei-me e fui sozinho à Missa, sem mamãe, nem papai, nem minha irmã, nem ninguém.

Quando cheguei à igreja, esperava encontrar junto à imagem do Sagrado Coração de Jesus um banco para me ajoelhar e assistir à Missa. Mas notei uma cena inteiramente diferente.

O Colégio do Coração de Jesus é colossal, toma as quatro faces de um quarteirão muito grande. Naquele tempo era um internato enorme, não sei quantos meninos cabiam ali. Eles estavam entrando na igreja a fim de assistirem à Missa, a qual era obrigatória para todos. Eles entravam em fila cantando e iam ocupando os lugares nos bancos.

Eu vi logo que quase todos os bancos estavam ocupados e que não haveria nenhum livre, pois os padres fariam sair do banco qualquer menino que não fosse do colégio para dar lugar aos alunos.

Senti-me rechaçado por todos os lados, por Deus e pelos homens: “Tudo me acontece mal, eu andei mal em dois pontos, sou um falsário, é uma coisa horrorosa, vou-me espremer neste canto da nave lateral – do lado direito de quem entra na igreja – e aqui vou ficar bem no fundo. Neste lugar a misericórdia de Deus ainda olha para um miserável falsário que aqui pode rezar durante a Missa.” Coloquei-me lá.

Os meninos começaram a cantar, o padre entrou, iniciou a celebração da Missa e as coisas tomaram seu caminho normal. Por causa das colunas, eu não conseguia ver o padre e acompanhar seus movimentos; levantava-me e ajoelhava seguindo o povo .

Uma imagem alvíssima de Nossa Senhora

Também não podia ver a imagem do Sagrado Coração de Jesus. A única imagem que eu via era a de Nossa Senhora, de mármore alvíssimo, branquíssimo. Maria Santíssima tinha o Menino Jesus num braço e no outro um cetro para indicar que Ela era Rainha porque Mãe do Homem-Deus. Nossa Senhora, portanto, mandava no mundo inteiro e tudo quanto Ela quisesse Deus faria; Ela participava de algum modo da onipotência d’Ele. O Criador A ama como a Mãe d’Ele. Podia imaginar como Deus A amava, imaginando quanto eu queria a minha mãe.

Pensei: “Se eu que sou finito e um trapo amo minha mãe tanto, tanto, tanto, imagine como Deus, que é infinito, amará a Mãe d’Ele.” Mas conjeturem também como é Nossa Senhora para que Deus A tenha escolhido por Mãe, resolvido encarnar-Se n’Ela, passado um estado de gestação em seu claustro bendito e depois, através d’Ela, ter nascido para salvar o mundo, é uma coisa extraordinária. “Ela deve ser formidável!”

Por um jogo natural de ideias veio-me à mente que se eu, um falsário, me dirigisse ao Sagrado Coração de Jesus não seria atendido, mas que se pedisse por meio d’Ela seria acolhido. Porque assim como eu fazia tudo quanto mamãe queria, também Ele faria tudo quanto a Mãe d’Ele desejava.

Ora, a Mãe de Deus teria – como eu já disse – a influência junto a Ele parecida com a que mamãe tinha sobre mim e, portanto, o que Ela pedisse Deus faria. Mas como era Mãe, Ela queria bem não como um pai quer um filho, mas à maneira que uma mãe quer um filho. Papai me queria bem de um certo modo, mas outra era a maneira de mamãe me querer bem. Deus era Pai, infinito, perfeito, mas Ela tinha mais pena de mim, mais misericórdia, era mais acessível.

Enquanto eu estava pensando assim e olhando para a imagem de Nossa Senhora, não se deu milagre nenhum, mas, sem que houvesse no rosto de mármore da imagem o menor movimento, alguma coisa se passou pelo que eu tinha impressão de que Ela me olhava cheia de bondade e com muita pena de mim.

Por um certo sorriso que os lábios d’Ela não definiram – os lábios não se moveram, a imagem é de pedra, não pode mover-se –, eu tinha a impressão de que Ela sorria. E sorria como quem me conhece: “É o Plinio, filho de Dona Lucilia e de Dr. João Paulo”, e Ela olhava para mim com uma misericórdia e uma bondade especiais.

Plinio: um menino de correção excepcional nas aulas

O fato produziu na minha alma uma verdadeira reviravolta. Compreendi, então, quem era Nossa Senhora e o papel d’Ela para com cada um de nós quando andamos mal, não só quando procedemos bem. Quando andamos bem, Ela é uma Mãe indizivelmente boa para com o filho bom. É uma efusão mútua de afetos e carinhos, enormemente maior quando desce d’Ela até nós do que quando sobe de nós até Ela. Mas em certo momento os dois afetos se encontram e é como se fosse um arco voltaico, um arco-íris, a caminho do Céu.

Então, sem ouvir nenhuma voz – como eu disse, não houve milagre nenhum –, alguma coisa me disse no interior da minha alma o seguinte: “Confie, Nossa Senhora rezará por você, tudo isso se resolverá e mamãe ficará bem com você de novo. Esse negócio vai passar porque Maria Santíssima pediu”.

Voltei para casa e encontrei Dona Lucilia tal e qual. E não podia deixar de ser, porque ela só ia tomar conhecimento da solução do caso do boletim no dia seguinte. Para mim o que contava era ela. Se Dona Lucilia estava contente comigo, o mundo estava contente; se ela não estava, o resto não valia nada.

Na segunda-feira, meu pai, que tinha ido ao Colégio São Luís, a horas tantas entrou em casa com uma cara calma, segura, tranquila. Olhei para ele – que nem percebeu que eu ali me encontrava – e percebi que estava preocupado com o chaveiro o qual não funcionava bem. Cogitei: “Se ele está pensando no chaveiro é porque não está preocupado comigo; tudo correu bem”.

Meu pai era de Pernambuco e os pernambucanos antigos tinham o hábito de chamar as esposas de senhora. Ele aproximou-se de Dona Lucilia e disse:

— Senhora, aqui está o boletim de vosso filho.

Mamãe o pegou logo e perguntou:

— O que houve?

Ele respondeu:

— O Padre Reitor, diretor do colégio com quem eu conversei, deu muita risada quando viu a borradela que o Plinio fez no boletim. Depois me disse que deveria ter havido um engano de cópia, porque o Plinio era em geral de uma boa educação e de uma correção excepcional nas aulas. Acontece que sempre é possível um menino fazer alguma coisa errada. E afirmou: “Se o padre deu essa nota, vou falar com ele para saber qual o motivo”.

Depois de algum tempo, o reitor voltou com o boletim na mão, no qual ele escrevera uma nota dizendo ter havido um engano da secretaria que copiou errado, que a nota que o padre dera ao comportamento de Plinio era dez.

Estava tudo resolvido e o céu azul…

Prestando atenção nas palavras da “Salve Rainha”

Enquanto eu estava na igreja, no domingo, orando a Nossa Senhora, não sabendo o que dizer para Ela, rezei uma Salve Rainha. Foi a primeira vez que prestei uma atenção séria nessa oração. O texto me pareceu lindíssimo – é mesmo uma verdadeira obra-prima – e convinha para minha situação. Aquelas palavras podiam-se adequar a um menino mal comportado e ameaçado de ir para uma espécie de penitenciária, como eu imaginava. Na aflição que eu estava elas convinham perfeitamente.

“Salve” em latim é uma saudação, como quem diz “bom-dia” ou “eu te saúdo”. Mas eu não sabia isso, pensei que “salve” queria dizer “salvai-me”. Dizendo “Salve Rainha” eu entendia: “Rainha, salvai-me desse apuro.”

Então eu pedia com um desejo enorme de ser atendido: “Mãe de misericórdia”. Eu pensava: “Está vendo? Mamãe é tão boa, eu a quero tão bem, mas Nossa Senhora é muito melhor do que ela.”

Isso é pura verdade. Nossa Senhora é melhor a perder de vista do que o mais santo dos homens e o primeiro dos Anjos. Nosso Senhor não fez criatura que fosse igual a Ela. Maria Santíssima é um escalão intermediário entre Deus e a Criação inteira. Há os homens, os Anjos, depois Nossa Senhora num ponto supremo e mais elevado que tudo, e infinitamente acima está Deus. Quer dizer, o que é Nossa Senhora nós nem temos uma ideia.

Ora, essa noção de que Ela era uma pessoa excelsa eu tinha, mas não de sua bondade e misericórdia.

Tudo isso fazia-me ter a ideia: “Vê como a Igreja trata a Virgem Santíssima. Diz que Ela é nossa vida, doçura e esperança. Que beleza! Então Nossa Senhora é nossa vida, essa criatura tão única que ninguém tem comparação com Ela. Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo, Esposa do Divino Espírito Santo, Filha do Padre Eterno, Ela é Mãe de Misericórdia. Mãe já indica a ideia de misericórdia. Mãe de misericórdia é uma mãe toda feita de misericórdia”.

Eu pensava: “De algum modo pode dizer-se isso de mamãe, mas quão menor é ela do que Nossa Senhora. Quão maior é Ela, mais perfeita, mais incomparável; ninguém é igual a Maria Santíssima. E como Ela tem pena de mim e sorri para mim. Ah, já sei! Com quem eu vou me arranjar na vida é Ela.”

E realmente em casa as coisas todas se consertaram. Depois, ao longo dos anos, eu às vezes brincava com Dona Lucilia sobre o Colégio do Caraça e o filho “falsário” dela. Ela sorria porque eu brincava com muito carinho, muito respeito com ela, e o fato se perdeu nos tempos. Mas uma coisa ficou: a devoção a Nossa Senhora.

Aplausos entusiásticos do público católico

Tudo isso se passou antes do período em que, ainda na minha infância, senti a Revolução em pé contra mim como um leão – ou, pior, como uma hiena – e compreendi que a salvação de minha alma e o futuro de todo o mundo estavam arriscados se essa hiena não fosse derrubada; resolvi então combatê-la. Custasse o que custasse, com a proteção de Nossa Senhora, eu haveria de lutar contra ela e a Santíssima Virgem me daria a vitória.

Minha vida foi transcorrendo, tive com a Revolução esse começo de luta no Colégio São Luís. Fiquei moço, a partir do Congresso da Mocidade Católica, em 1928, ingressei na Congregação Mariana de Santa Cecília. Mais tarde veio a fundação da Liga Eleitoral Católica e minha eleição como o deputado mais moço e mais votado do Brasil.

Precisamente quando eu estava nesse píncaro, exercendo uma liderança enorme sobre todo o movimento católico do País, as coisas chegaram a um tal ponto que, sendo ainda muito moço e convidado continuamente para fazer conferências, discursos por todos os recantos do Brasil, o público católico tomou um tal entusiasmo e uma tal preferência por mim, que fazia coisas que me deixavam pasmo.

Por exemplo, eu não era muito pontual e às vezes chegava atrasado até para a conferência que devia fazer. Mas o público era benévolo, e não só perdoava o meu atraso, mas até me recebia com manifestações de agrado e entusiasmo muito grandes. Quando eu entrava, às vezes vinha correndo do automóvel para o palco para compensar meu atraso. Pouco antes de chegar ao palco parava de correr e andava com passo normal. Quando eu entrava, o auditório inteiro se levantava para bater palmas.

Discurso em homenagem a São José de Anchieta

Entretanto, comecei a notar uma coisa que me encheu de pasmo. No próprio meio católico começaram a aparecer maledicências a meu respeito, como, por exemplo, que eu estava fazendo um número insuficiente de discursos na Constituinte, quando deveria falar mais; que eu tratava os deputados anticatólicos com uma dureza que chegava aos limites da brutalidade, e outras coisas assim.

Ora, o Cardeal Leme, Arcebispo do Rio de Janeiro, mandou um recado aos deputados católicos dizendo esperar que não fizéssemos discursos, de maneira a não comprometer a combinação feita por ele com todos os deputados da Constituinte, para aprovar tudo quanto a Igreja queria. Segundo ele, já estava todo o jogo pronto e não havia dúvida a esse respeito. Por causa disso ficássemos quietos.

Assim, eu não podia fazer outra coisa senão ficar quieto. Se fosse falar, cometeria uma irreverência contra a Igreja que mandava isso. Então, só discursava quando surgia uma ocasião boa na qual eu podia justificar ser indispensável falar.

Houve, por exemplo, um centenário de Anchieta e eu aleguei ser preciso um deputado católico falar, porque Anchieta era uma grande personalidade do mundo católico, e que eu, deputado por São Paulo, ex-aluno dos Jesuítas – Anchieta era jesuíta –, tinha o direito de falar. Dom Leme concordou e fiz um discurso.

Com voz tonitruante, redarguiu um deputado comunista

Em outra ocasião, estava falando na tribuna um deputado comunista chamado Zoroastro de Gouveia. Em certo momento ele deu a entender mais ou menos esta ideia: o católico não podia ser um bom patriota porque dependia do papa, o qual para os católicos é uma potência estrangeira e, portanto, todo o católico estava disposto a trair o Brasil em favor da Igreja.

Eu me levantei e, da primeira fileira que ficava a dois passos da tribuna, falei com uma voz verdadeiramente tonitruante:

— Senhor deputado, venho lavrar o meu protesto mais categórico e indignado contra o insulto infame que Vossa Excelência acaba de atirar em rosto dos católicos…

E tonitruei contra ele. A Câmara estava acabando o trabalho do dia, os deputados cochilavam e alguns cochichavam. Quando saiu aquele barulho todos se levantaram:

— O que é isso aí?

O Zoroastro de Gouveia ficou pasmo com aquilo tudo, sem saber como responder. Então me disse alguma coisa qualquer, eu mais uma vez protestei e ele saiu da tribuna.

Esse episódio deixou tal lembrança em quem o presenciou que, uns trinta anos depois, precisei ir à Câmara dos Deputados, em Brasília, para levar um protesto de proprietários rurais contra a Reforma Agrária que já naquele tempo se queria fazer. Ali indicaram que entregássemos o protesto ao secretário da Câmara para ele encaminhá-lo ao Governo.

Chegando lá, cumprimentamo-nos e entregamos-lhe aquele protesto. Ele começou a tomar notas, trabalhos de burocrata, e em certo momento fitou-me. Pensei: “Já estou vendo o que está na cabeça desse homem…” Ele parou o serviço e me perguntou:

— Diga-me uma coisa, o senhor já foi deputado?

— Já.

— Não foi o senhor que passou aquela descompostura no deputado Zoroastro de Gouveia?

Trinta anos depois o homem ainda estava lembrado da descompostura! Mas, apesar disso, a difamação circulava.

Uma freira procurou denegri-lo

Eu notava também – e isso me impressionava mais – que, da parte dos católicos e de alguns daqueles a quem tinha em conta de bons católicos, vinha uma indizível série de pequenas indiretas contra mim, na minha presença, que indicavam haver uma conspirata qualquer para me afastar, pôr-me de lado, e eu não sabia a razão.

Uma coisa característica foi isto: durante esse tempo, criou-se em São Paulo a Universidade Católica e fui nomeado professor de História da Civilização de duas faculdades dessa universidade. Certo dia, eu estava lecionando e uma freira veio me pedir licença, dizendo que estava ali presente uma compatriota dela, belga, a qual tinha ouvido falar muito das minhas aulas e queria assistir a uma delas.

Eu disse:

— Pois não, à vontade. Arranjem uma cadeira mais confortável para a freira poder assistir à aula, e eu tenho todo o gosto de lecionar diante dela.

Quando terminou a aula, pensei que ela estaria de pé na porta para me cumprimentar, porque seria o normal, uma vez que eu lhe dera licença de assistir à minha aula. Mas ela tinha sumido.

Algum tempo depois, encontrei a freira que fizera o pedido e perguntei:

— O que aquela freira belga achou da minha aula?

— Ah, ela fez um comentário muito elogioso.

Pareceu-me esquisito que ela não fizesse o comentário elogioso para mim, mas fosse fazê-lo para a outra. Pensei: “Aqui tem ronha…”

— Ah, sim, está bem. E o que ela comentou? – perguntei.

— Ela disse que o senhor é um professor tão claro que, segundo o parecer dela, está mal empregado numa universidade, e seria muito melhor que o senhor fosse utilizado numa escola para débeis mentais porque, sendo claro como o senhor é, até esses conseguiriam entendê-lo.

Ou seja, o senhor ficaria melhor empregado lecionando para uma escola de bobos. Ora, isso não é elogio, mas sim denegrir um professor, e de um modo muito esquisito, porque não é degradar por um defeito, mas por uma qualidade. Quer dizer, a qualidade é tão grande que até merece ser degradado.

Discussões vivíssimas com católicos de ideias revolucionárias

Comecei a notar também que, fazendo parte do Movimento Católico, começava a se formar uma ala de gente que professava uma doutrina inteiramente diferente da Doutrina tradicional da Igreja.

Essas pessoas achavam, por exemplo, que até então a Igreja tinha feito muito mal em proibir danças e a ida a lugares suspeitos, porque isso fazia com que os bons, separando-se dos maus, nunca tivessem oportunidade de convertê-los. Então o mundo ficava rachado em dois: os bons e os maus. O que os bons deviam fazer era misturar-se completamente com os maus e ir até aos lugares de perdição, porque ali, se tivessem comungado de manhã, eles levariam “o Cristo” – não diziam “Nosso Senhor Jesus Cristo”. “O Cristo” presente neles haveria de converter essas pessoas.

De maneira que, segundo essa concepção, tudo deveria mudar. Os católicos precisavam se modernizar, tornar-se gente muito capaz de coisas engraçadas, pilhérias, etc. As moças deveriam fazer concessões em matéria de trajes, ler revistas inteiramente mundanas.

Integrantes dessa corrente fizeram reuniões comigo e tivemos algumas discussões vivíssimas a esse respeito. Notei que a corrente estava imbuída de ideias da Revolução Francesa.

Certa noite, eu estava na sede do “Legionário”, semanário católico do qual era o diretor. O andar térreo do prédio era todo ocupado pelas dependências do jornal. No piso superior, havia um salão grande que tomava o andar inteiro e servia de sala de conferências ou de teatro. Eu estava embaixo, trabalhando com outros nos preparativos do próximo número do “Legionário”, e notei que essa ala nova estava fazendo uma festa no salão de cima. De onde me encontrava podia ouvir as músicas que cantavam e alguma coisa dos discursos que faziam. Era tudo ao revés do que somos e defendemos.

Houve um menino que, numa hora muito difícil, clamou a Nossa Senhora

Em certo momento, um deles desceu e me disse o seguinte:

— Plinio, eu vim falar com você uma coisa muito séria.

Pensei: “Como pode ser séria, se você não é sério?”

— Mas o que é? – perguntei.

— Você note a diferença entre os dois andares. Você aqui embaixo e os seus jovens do “Legionário” representam a Igreja antiga, séria, que reza, trabalha, luta contra o adversário. Nós, em cima, representamos a Igreja nova, que ri, dança, se diverte, vai para a praia, para a piscina, vai por toda parte levando “o Cristo”. Mas uma coisa eu queria avisar a você: está feita uma combinação de mudar completamente a Igreja, de fazer com que a Igreja antiga cesse de existir, e dentro da casca dessa Igreja antiga apareça uma Igreja nova que somos nós. Agora, qual é o seu futuro? Se você aderir à Igreja nova, temos muita força política e não há cargo político a que não elevemos você. Mas se você continuar nessa situação em que está, aos poucos a Igreja vai passando completamente para o outro lado, você vai ficar só e completamente esmagado, o seu futuro acabou. Você vai acabar por ser um desconhecido.

Olhei para ele, e disse:

— Fulano – não quero revelar o nome dele –, eu prefiro tudo a vender-me. E você saiba que ainda que eu deva ser o último dos homens, serei o último dos soldados da Igreja tradicional, mas ela nunca morrerá. Afirmar que serei o último dos soldados é um modo de dizer, porque depois de mim virão outros que pensarão como eu, mas a Igreja não morre.

— Bem, você foi avisado. Depois não se queixe…

— Eu só me queixaria se soubesse que Deus vai me abandonar na luta. Mas isso nunca acontecerá, porque tenho confiança n’Ele e em Nossa Senhora. Poderá suceder que eu seja derrotado; porém outros virão e vencerão, mas não abandono a minha posição.

Nunca mais nos falamos. Realmente, ele foi alçado aos mais altos graus. Eu, a esses graus não subi. Eu sou Plinio Corrêa de Oliveira.

Os anos escoaram e até aqui chegamos. Durante esse período, houve perseguições de todo tamanho contra minha Obra, estrondos publicitários aos quais temos respondido na ponta da lança continuamente. O fato concreto é que nunca ninguém conseguiu vencer-nos, crescemos cada vez mais e jamais perdemos a confiança. Isso porque houve um menino que, numa hora muito dura de sua existência, recebeu uma graça e clamou a Nossa Senhora, dizendo: “Salve, Rainha, Mãe de Misericórdia, vida, doçura, esperança nossa, salve!”

Rezando o Rosário e comungando todos os dias, confiando na Santíssima Virgem como Mãe e Rainha de Misericórdia, vida, doçura, esperança nossa, Medianeira universal de todas as graças junto a seu Divino Filho, Nosso Senhor Jesus Cristo, nós temos resistido e resistiremos; e com a ajuda d’Ela levaremos a luta até à vitória!             v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 28/2/1995)
Revista Dr Plinio 266 (Maio de 2020)

 

A arte de governar

Para bem governar é necessário discernir a ação da graça conjugada com os fatores naturais do povo e do lugar, favorecendo a prática da virtude e combatendo o mal de todos os modos.

 

Ao analisarmos o Brasil vemos que, ainda em nossos dias, ele tem na maior parte do seu território uma expansão demográfica desproporcionada com a área de habitação, ou seja, uma área imensa que a população tem certa dificuldade de preencher. De maneira que se estabelecem núcleos de população aqui, lá e acolá, espalhados de tal maneira que o intercâmbio em muitas partes do Brasil ainda é difícil.

Famílias de almas levadas à harmonia e afinidade

Essa dificuldade faz com que haja isolamentos e tendência a formar zonas com mentalidades e características distintas, constituindo um país com as variedades mais numerosas, entretanto com certa harmonia que a índole brasileira põe nas coisas, pela qual os Estados do Nordeste, por exemplo, constituem uma espécie de sociedade com talento e modo de encarar a vida peculiares, uma filosofia própria, em íntima conexão com o panorama, com as possibilidades do local, os recursos materiais que apresentam, mantendo uma coesão íntima.

Para mim, o Nordeste acaba no limite entre a Bahia e Minas Gerais. Dois Estados tão diferentes quanto possível, entretanto suas fronteiras não dão lugar a entrechoque. Pode ter havido arranhõezinhos, coceiras, mais nada. Por miscigenação, mas também pelo desejo de uma vida harmoniosa acima de tudo, arranja-se um jeito de aparecer um tipo humano abaianado na fronteira entre ambos os Estados, que é mineiro, mas no qual está presente a Bahia. E que tem, portanto, certos charmes, certo jeito, certos predicados da Bahia que são únicos.

Há uma espécie de permeação das fronteiras, do baiano amineirado e do mineiro abaianado que não se fundem inteiramente, mas tudo isso convive dentro de uma sobra de terras, e com uma grande vontade de não brigar. Não é apenas dizer que esses elementos intermediários evitam a briga. Mais ainda: essa briga nem se esboça nem é um desejo.

O baiano de Salvador já nem pensa em Minas, assim como o belo-horizontino nem cogita na Bahia. Porém, há de fato uma espécie de permeação que faz com que o espírito, a inteligência, o talento, a graça formem quase uma nação, mas sem vontade de ser uma nação, não quer separar-se, nem se preocupa em preservar-se; nasce como uma planta no campo, sem instinto de conservação, que se esparrama quanto pode e quando a ceifam ela não chora.

O Maranhão ainda pertence ao Nordeste, mas a meu ver o Pará é uma zona de encontro da Amazônia com o Nordeste.

Depois, abaixo de Minas, apesar de todas as diferenças, eu reputo que São Paulo e Rio formam culturalmente um só bloco, indiscutivelmente muito diferenciado, mas que de algum modo se prolonga até o Paraná, separado dos gaúchos por Santa Catarina, que constitui uma cortina com características próprias que tem e não tem muito prolongamento na zona alemã do Rio Grande do Sul.

Em todos esses Estados foram se formando famílias de almas, levadas a uma espécie de harmonia e de afinidade que tem sua relação com o que aconteceu no lado hispano da América do Sul.

Formação de regionalismos possantes na Europa

Enquanto a Espanha metropolitana é cheia de heterogeneidade, vemos que a “Espanha” sul-americana tem muito menos oposições entre país e país, do que, por exemplo, na zona norte da Espanha entre duas ou três faixas de populações existentes ali. Contudo, não há essa homogeneidade brasileira. Aqui somos irmãos, ali são primos muito achegados, mas primos.

Entretanto, de um lado e de outro dessa linha divisória entre hispano e luso houve o mesmo fenômeno, pois também Portugal é muito mais diferenciado dentro de si do que o Brasil. Já a Espanha é muitíssimo mais diferenciada em seu interior do que a América espanhola. Nesta, porém, veem-se também as mesmas sobras de espaço e a formação das mesmas “ilhas” ou “arquipélagos” de regionalismos que começaram a florescer e que teriam dado, cada qual, algo bem original, interessante, se não fossem certas circunstâncias que descreverei daqui a pouco.

Para compreendermos bem a energia desse fenômeno, que a meu ver fica no fundo de uma descrição do Brasil, antes de voltar a esta eu queria considerar um fenômeno análogo curioso.

As invasões dos bárbaros na Europa representaram qualquer coisa assim. O Império Romano era muito pouco numeroso para povoar as vastidões que conquistara. Entraram por cima os bárbaros e quebraram o Império Romano. Depois disso, cansaço geral, zonas vastas entre uns e outros povos e a formação de regionalismos possantes.

O absolutismo real quis acabar com os regionalismos

Mas não havia nenhuma força empenhada em abafar esses regionalismos, nada colaborava para estancá-los. Daí veio a Europa com suas demarcações, suas diferenças, suas riquezas. Mesmo assim, a partir da Revolução começou a trama para homogeneizar artificialmente a Europa.

Ninguém sabe o que teria sido o Velho Continente se não fosse o absolutismo real que, de um jeito ou de outro, tomou conta de todos os países europeus. Alguém objetará: “Na Alemanha, não.” Devagar… A Prússia foi um foco de absolutismo medonho nas próprias fronteiras, e a Casa d’Áustria, em seus próprios limites, constituiu Estados absolutistas sem regionalismos. De maneira que o mundo alemão era isso também: Baviera, Saxe, Württemberg assim fizeram nos seus âmbitos internos.

Os outros Estados não realizaram porque não podiam, e era o que havia de mais sadio na Alemanha, uma espécie de magma de quinhentos ou seiscentos pequenos príncipes soberanos, senhores de uma aldeia e metade da ponte que dava para a aldeia vizinha…, mas soberanos! Mandando delegações falar com o rei da França, discutir com o imperador, brigar com o rei da Prússia, etc., com peso.

Aquilo que houve de mais regional e sadio no continente europeu foi a Europa antes do Renascimento. Um pouco os Países Baixos, o antigo reino de Lotário, feito de cidades livres, feudos e pequenos reinos, e assim ficou até o fim, com um regionalismo muito marcado.

No período do Brasil–colônia trabalhou-se para a centralização

No Brasil, a formação de blocos isolados teria dado, “mutatis mutandis”, regionalismos contra os quais também houve o intuito de liquidar. Portugal fundou aqui as Capitanias, as quais deram em fracasso porque a nobreza a quem foram concedidas desejava viver em Lisboa. Já não era a nobreza feudal, mas a dos tempos modernos, do século XVI, que queria fazer navegações fabulosas, porém não se estabelecia nos lugares por onde navegava. Em geral, os nobres voltavam a Portugal, não pediam para serem vice-reis vitalícios e hereditários em algum lugar que eles descobrissem, nem o rei permitia. A tendência do monarca era de fazer daqueles Estados todos uma monarquia absoluta, unitária, com cada conquista portuguesa funcionando à maneira de província.

Tomemos, por exemplo, Goa, Damão, Diu, enclaves portugueses na Índia. Para a ótica portuguesa absolutista são províncias. O rei enviava um governador para Goa como mandava para Beira. Também em Moçambique e Angola foi assim. Dessa maneira o regionalismo não se desenvolve, porque enquanto não houver elites regionais não há regionalismo. E este sistema não era inteiramente impeditivo, mas criava largos obstáculos à formação de elites regionais.

O Brasil teve um governo geral, depois foi dividido em dois governos gerais, e mais tarde voltou a ter um único governo geral que, por fim, transformou-se em vice-reinado. Tudo isso mandado fazer sucessivamente por Portugal, a partir do Paço de Belém. As Capitanias foram lentamente absorvidas, enquanto o mesmo povo, em Lisboa, ia “comendo” os regionalismos dentro do próprio Portugal.

Então, no período do Brasil-colônia tivemos um primeiro trabalho para centralizar, ao invés de estimular os regionalismos que, apesar de tudo isso, de algum modo foram se formando a ponto de nos ter sido possível descrever as diferenças entre os diversos Estados brasileiros. Mas essas diferenças existiam à maneira de laivos que não tomaram a força necessária.

Analisemos, agora, como estavam esses laivos quando o Brasil foi declarado independente.

A nobreza da terra

Proclamado o Império, o próprio fato de o Brasil ser monarquia fez com que as partes mais conservadoras, as elites mais marcadas, nascidas do solo muito mais do que vindas de Portugal, iam formando a tal “nobreza da terra”, que se distinguia, mas não se separava da nobreza do reino. Esta era constituída pelos nobres vindos de Portugal, às vezes membros pobres das famílias da nobreza, que vinham para o Brasil e tinham foro nobiliárquico, com todos os privilégios dessa condição. A nobreza da terra não descendia dos nobres do reino, mas enobrecia pelo fato de, durante algum tempo, ter a direção de um desses blocos sociais. Esta, entretanto, olhava muito mais para o Rio de Janeiro, onde estava o trono imperial. E neste sentido a monarquia entrou como um fator de centralização.

Cito dois casos característicos: Pernambuco e Bahia. Cada qual constitui um polo e, se não fosse a monarquia, teriam levado uma vida muito mais centralizada em si mesmos e, portanto, mais regional, cultural e psicologicamente autônoma.

A existência de uma corte no Rio de Janeiro fazia com que todas essas elites mandassem seus melhores homens, suas melhores inteligências para luzir ali, e as damas mais elegantes para frequentarem a corte, considerando-se província e caipirada em comparação com o modelo que viam nascer na capital. Este foi um fator nocivo para a Contra-Revolução.

Sentido descentralizador das monarquias medievais

As monarquias medievais tinham um sentido descentralizador muito forte. Segundo a concepção daquela época, quando um rei possuía vários filhos era preciso dar um grande feudo para cada um, desmembrado das próprias terras do monarca. Assim, à medida que a dinastia ia mudando, o país se multiplicava em novos feudos, porque ficava feio um príncipe ser como é hoje, por exemplo, o Duque de York, que tem tanto a ver com York quanto qualquer inglês que esteja palmilhando uma rua de Londres. Quer dizer, um título meramente verbal, não existe na prática um Duque de York.

Na monarquia medieval, não. O nobre ia para um determinado lugar a fim de abrir ali um foco de vida, mais ou menos como na Igreja, até trinta ou quarenta anos atrás, quando se dividia uma diocese e se nomeava um bispo para a parte da que se tornara uma nova diocese, a qual passava a constituir novo foco de vida religiosa.

A partir da Revolução, todas as monarquias foram centralizadoras. A menos centralizadora foi a austríaca, mas assim mesmo muito centralizadora em comparação com as medievais.

É a regra da Revolução, visando por toda parte resultados como estes: na Europa as grandes cidades e as regiões homogeneizadas. Na América do Sul, cortar a formação das elites regionais e dos regionalismos, para esses irem morrendo aos poucos, com vistas a uma república universal.

O processo pelo qual todas as nações europeias sofreram uma espécie de evanescência das suas fronteiras internas e constituíram blocos coesos e anônimos, como quadradinhos de açúcar, levou ao Mercado Comum Europeu. É o desfecho.

Poder-se-ia levantar uma objeção: há no que estou dizendo uma concepção tão apaixonada e lírica do regionalismo, que se pergunta se isso não conduz, de algum modo, para a autogestão. Afinal de contas, qual seria a evolução bem feita da Idade Média?

Evidentemente, não é a transformação em corpúsculos inviáveis. Seria uma caricatura, onde o presidente da cooperativa faz o papel de marquês. Se assim fosse, estaria tudo estropiado.

A meu ver, se considerarmos os reis santos e direitos e estudarmos as tendências dos reinos deles, compreenderemos o que era o espírito católico que germinava ali, e como essa germinação foi truncada.

Sadio regionalismo

Afinal de contas, o que é o sadio regionalismo e a partir de que momento uma unidade se plurifica? Até que ponto essa plurificação é exagerada e deve voltar ao “unum”? Em última análise, qual é o futuro da regionalização? Ela conduz a quê?

Assim como a graça produz entre a personalidade de cada um de nós uma afinidade em função de uma vocação comum, e por mais que essas personalidades sejam afins, são e devem ser distintas, ela também age nas nações e regiões, determinando movimentos diversos que implicam na forma da sociedade estruturar-se, organizar-se e caminhar para a sua própria perfeição, o que, por sua vez, é o reflexo da vida espiritual da sociedade.

O feitio da santidade da nação determina a forma e o grau de plurificação, de maneira a estabelecer o equilíbrio entre as tendências centrípetas e centrífugas que, vistas não como antagônicas, mas complementares, constituem a harmonia.

Desse modo, sempre haveria a partir do regionalismo e do feudalismo uma linha de progresso que não seria centrífugo, nem uma traição à unidade, mas uma multiplicidade que fosse a plena frutificação da unidade, tornada mais forte, e um estilo de imbricamento que dependeria da forma de virtude, do matiz de vida espiritual e de santidade para que cada povo fosse chamado.

Com efeito, ponham a fidelidade plena à graça e o problema se resolve. Entretanto, não se soluciona apenas pela fidelidade à graça. É preciso haver uma arte de governar por onde quem governa perceba qual é o ponto de chegada, como se conjugam a graça e a natureza em determinado lugar, e como a graça está atuando ali, para discernir profeticamente, com clareza, os próximos passos. Por certo, um futuro que nem sempre se vê como será, mas para o qual a boa dinastia ou a boa sucessão de governos de elite tendem constantemente. Mais do que qualquer outra coisa, governar é ter essa ordem e esse equilíbrio em cena.

Então nós compreendemos que a arte de governar se faz estimulando o movimento uno da graça e da natureza no lugar governado, de maneira a estimular a prática das virtudes pela correspondência à graça que irriga a natureza, e fazendo com que aquilo caminhe por um dinamismo próprio. Isto é ser conservador e, ao mesmo tempo, promover o progresso, no melhor sentido da palavra.

Contudo, o governo comporta outra coisa: a arte de corrigir. Porque não se trata de uma federação de Anjos, mas de gente continuamente tendente a pecar, a errar. Portanto, a arte de governar deve entrar em luta contra o mal, percebê-lo, ver para onde ele caminha, esmagá-lo; e quando ele se tornou tão forte, por falta de virtude dos cidadãos, que não é possível expulsá-lo, conduzir contra ele uma luta na qual, se não se puder combatê-lo de frente, convive-se com ele debilitando-o, criando-lhe condições opostas, “politicando” contra ele, mas procurando liquidá-lo de todos os modos.

Desses dois elementos se faz o caminho histórico de um povo, e ele toma a fisionomia desejada pela Providência.

O Brasil ideal

Assim, quem esteja governando deve tender continuamente, na medida do possível, para um ponto ideal, e para isso precisa conhecer muito bem esse ponto, embora ele só se realize esporadicamente na História. Mas é bom que esse ponto ideal seja uma meta difusa na alma dos povos, com vistas a fazê-los tender de algum modo para isso. Em outros termos, essa ordem ideal, que existe habitualmente apenas de um modo incompleto e irregular, precisa ser conhecida para que os bons tendam para lá.

Há um plano de Deus que resulta de uma certa situação natural e de um certo “equipamento” sobrenatural. Esses dois fatores se encontrando têm um dinamismo próprio que caminha numa certa direção. O segredo é conhecer o mecanismo interno desse dinamismo e ajudá-lo estimulando, protegendo e corrigindo eventuais desvios, não o dinamismo em si, porque este é bom.

Por isso, ao tratar do Brasil deve-se pensar num Brasil ideal. Esse Brasil ideal não se faz lendo nas bibliotecas europeias, mas imaginando, nesses vários esboços de alma que o Brasil teve, como seria o sopro da graça e a perfeição do local, para depois tentar imaginar, com alguma probabilidade, o que poderia ser, nesse Brasil, a harmonia entre a unidade e a variedade, o que favorecer e o que combater, qual é o contra-Brasil atrelado ao Brasil, o “Brasil velho” acoplado ao “Brasil novo” – no sentido espiritual que dá São Paulo a respeito do homem velho e do homem novo (cf. Ef 4, 22-24) –, e como fazer o incremento do Brasil na ordem temporal como fruto da conjugação desta com a ordem espiritual.

Então, considerando assim esses vários Brasis, vai-se elaborando uma escola de pensar, de viver, de fazer o bem, de combater o mal, uma escola de rezar.    v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 19/6/1987)
Revista Dr Plinio 265 (Abril de 2020)

 

 

Errata: Na nota da página 31 do n. 264, no lugar de “Edmond Rostand (*1868 – †1918)” leia-se “Alexandre Dumas (*1802 – †1870)”.

 

Dique levantado contra a Revolução

No século XIV havia grande putrefação do clero, cuja consequência era a corrupção dos fiéis. Assim, toda a Idade Média entrava em deterioração moral, com uma explosão de orgulho e de sensualidade, a qual geraria depois os desvios intelectuais. Contra esses vícios lutou São Vicente Ferrer.

 

Devemos comentar uma ficha referente a São Vicente Ferrer. Sobre ele diz o Padre Rohrbacher(1):

Repreendia os vícios não só do povo, mas dos príncipes e prelados

Vicente Ferrer nasceu na Espanha, em 1357. Sua vocação foi anunciada a seus pais de forma miraculosa, antes de seu nascimento. Ao seu Batismo acorreu toda a cidade de Valência, sendo seus padrinhos os membros do Conselho Municipal. Entrou para a Ordem Dominicana aos dezoito anos, revelando logo rara inteligência e dotes para a pregação.

Em 1405, o Papa Bento XIII chamou São Vicente Ferrer a Gênova, onde este santo pregador recebeu do doge grandes demonstrações de respeito e consideração. Mas como lhe pedissem que usasse do crédito que tinha ante esse magistrado para que salvasse a vida de um homem de Valência, condenado à morte por seus crimes, demonstrou São Vicente tanto zelo pela justiça que, embora o criminoso fosse de seu país, julgou que não devia interceder por um homem que não merecia. Tudo que fez foi pedir que mudassem o gênero de seu suplício.

Vemos aqui a ideia oposta à que a “heresia branca”(2) quer inculcar sobre como deve ser necessariamente um Santo. Sem dúvida, é próprio a um Santo pedir que seja indultada uma pessoa ameaçada pela pena de morte. Mas isto desde que haja propósito, uma razão de ser. Não havendo, o Santo não o faz porque ele procede em tudo com conta, peso e medida e, sobretudo, sabe haver circunstâncias nas quais a pena de morte não só é indicada, mas não deve ser revogada.

É o contrário da noção que muitas pessoas têm de um Santo. Para essas, a pena de morte é intrinsecamente má e um Santo deve sempre pedir que não seja aplicada. Segundo essa mentalidade, quem for solidário com a execução da pena de morte passa por ser um indivíduo necessariamente de mau coração. Não é um “homem de boa vontade”, para usar a expressão tão cara e deturpada em nossos dias. Aqui temos uma colisão entre o procedimento de um Santo e as ideias da “heresia branca” a respeito de santidade que circulam por aí.

Repreendia São Vicente, com uma autoridade cheia de audácia, os vícios não só do povo, mas ainda dos príncipes e prelados. E não perdoava ninguém cuja conduta escandalosa era digna de reprovação. Entretanto, tinha certa moderação e cuidado para com os eclesiásticos, para salvar a honra de seu caráter, fazendo a reprimenda em particular. Fazia o mesmo com as religiosas que tinham dado margem para que falassem pouco lisonjeiramente de suas condutas.

Evidentemente, sendo possível repreender em particular é muito melhor. Porém, uma pessoa imbuída da mentalidade “heresia branca” objetaria: “Um Santo não repreende prelados, porque acha que todos eles são santos…”

Deve-se estudar para dar glória a Deus e santificar a própria alma

Conselhos de São Vicente aos que estudam: quereis estudar de maneira a vos ser útil? Que a devoção vos acompanhe em todos os vossos estudos e vosso fito seja alcançar a santificação, e não a simples habilidade.

Essa é uma recomendação muito importante. Quer estudar bem? Não deve fazê-lo simplesmente por estudar, porque este é um espírito superficial que não encontra nem aprende nada verdadeiramente. Deve-se estudar para conhecer, em última análise, Deus Nosso Senhor, com vista a Lhe dar glória e a santificar a própria alma.

Consultai mais a Deus do que aos livros e pedi-Lhe com humildade a graça de compreenderdes o que ledes.

Consultar mais a Deus do que aos livros significa rezar e considerar as coisas em função do Criador. Devemos, pois, pedir o auxílio divino e analisar tudo em relação a Ele. Este pensar, remoer e remexer as cogitações internamente, relacionando todas as coisas com o Onipotente, é mais importante do que ler e constitui uma das formas de oração, porque é elevar a mente a Deus.

O estudo fatiga o espírito e seca o coração: ide de quando em quando reanimá-lo um tanto aos pés de Jesus Cristo. Alguns momentos de repouso em suas chagas sacrossantas vos dão renovado vigor e novas luzes. Interrompei vosso trabalho com jaculatórias.

O que ele diz a respeito de jaculatórias de vez em quando, suspender o estudo para meditar nas chagas de Nosso Senhor é tão verdade que pode ser considerado com mais amplitude. Ao estudar, se é um estudo puramente técnico, devemos de vez em quando interrompê-lo para pensar em algo elevado, que nos conduza a Nossa Senhora, ainda que seja uma coisa terrena: algum belo lance da História da Igreja ou da Civilização Cristã; algum belo aspecto da arte católica, etc., para distender o espírito.

Isto, por sua vez, é o contrário do que se chama “mentalidade politécnica”. Entretanto, há também um modo “politécnico” de fazer jaculatórias. É o seguinte: “Vou fazer de dez em dez minutos uma jaculatória.” É incomparavelmente melhor do que não fazer, mas não é o modo ideal, porque a jaculatória deve corresponder a um anseio da alma. Quando a alma não sente esta necessidade, então se faz de dez em dez minutos, empregando o princípio de que “quem não tem cão, caça com gato”. Ainda assim é muito bom, porém o verdadeiro é sentir essa necessidade de alma, de vez em quando, e fazer jaculatórias.

Que a oração, enfim, preceda e termine vosso trabalho. A Ciência é um dom do Pai das luzes. Não a olheis, pois, como obra de vosso espírito e de vosso talento.

De fato, a maior parte das pessoas considera que o seu enriquecimento cultural é fruto do próprio espírito e talento. Ora, precisamente essas enganam-se de um modo cabal.

Em suas pregações falava contra o pecado, sobre o juízo de Deus, o Inferno

Vicente acompanhou o Cardeal Pedro de Luna a Avignon, sendo que algum tempo depois este foi eleito Papa sob o nome de Bento XIII, na época do grande cisma que dividia a Igreja. O novo Papa quis que Vicente fosse seu auxiliar, mas o Santo sabia não ser esta a sua missão. Assim, deu início à grande obra de evangelização como pregador. Percorreu a França, Espanha, Itália e Inglaterra; esta última por especial pedido do Rei Henrique IV. Os pecadores mais endurecidos não resistiam às suas palavras, assim como numerosos judeus, muçulmanos e cismáticos se convertiam.

A ignorância e a corrupção dos costumes, consequências comuns da guerra e do cisma, tornaram necessárias as missões de Vicente. Era preciso um apóstolo cuja voz terrível pudesse abalar as consciências a fim de arrancar os pecadores de suas desordens.

O Santo tratava comumente dos temas mais assustadores do Cristianismo, tais como o pecado, o juízo de Deus, o Inferno e a eternidade. Tinha, além disso, o dom de pronunciar seus discursos da maneira a mais patética. Não se contentando em ser veemente, ele falava ainda de uma maneira proporcionada à compreensão dos ouvintes. A santidade de sua vida dava nova força às suas palavras.

Sua fama chegou ao reino mouro de Granada, cujo soberano quis ouvi-lo. Entretanto, São Vicente começou a promover tantas conversões, que os ministros do rei, temerosos do que sucederia à crença muçulmana, pediram-lhe que afastasse dali o grande pregador.

Depois de uma existência toda consagrada a levar almas para Deus, pontilhada de milagres sem conta e pela luta contra o doloroso cisma de Avignon, que culminou pela condenação do antipapa Pedro de Luna e a aceitação completa de Martinho V, eleito pelo Concílio de Constança, São Vicente veio a falecer na Bretanha, em 1419, aos sessenta e dois anos de idade.

Depois dos Apóstolos, provavelmente foi o maior pregador popular

Poucas coisas são bonitas na vida dos Santos quanto situarmos a missão deles no panorama da luta entre a Revolução e a Contra-Revolução.

De acordo com esse panorama, na Europa do século XIV, a Cristandade começa exatamente a entrar em declínio. Era uma decadência eclesiástica terrível que se atestava pelo fato de haver papas exilados em Avignon, sob a férula dos reis da França, um cisma tremendo. Três “papas” que se combatiam reciprocamente, dos quais, naturalmente, um só era válido. Mas tal era a confusão na Cristandade que, ao lado de cada pseudo-papa ou do papa, havia Santos que os apoiavam.

Compreende-se, para isso ser possível, o que significava de putrefação do clero, a qual trazia como consequência a corrupção dos fiéis. Assim, era toda a Idade Média que entrava em putrefação, de caráter mais moral do que intelectual. Não se tratava tanto de uma grande heresia, mas de uma deterioração moral, uma explosão de orgulho e de sensualidade que começava, a qual deveria gerar depois os desvios intelectuais que são os erros da Revolução.

Então a Providência enviou, muito adequadamente para essa época, um Santo que foi grande em sua esfera própria como, por exemplo, o foi São Tomás de Aquino na sua. Porque, se podemos dizer que São Tomás de Aquino foi o Doutor comum, o filósofo dos filósofos, o teólogo dos teólogos, o mestre dos mestres, podemos afirmar que, como pregador popular, depois dos Apóstolos provavelmente ninguém excedeu a São Vicente Ferrer. Nem mesmo Santo Antônio Maria Claret, que no século XIX foi um pregador assombroso, teve de longe a expressão de São Vicente Ferrer.

Ele dizia de si mesmo que era o Anjo do Apocalipse, que tinha vindo para anunciar a derrocada da Civilização Cristã e o começo do fim do mundo. Com efeito, ele lutou enormemente para a moralização dos costumes, com vistas a sustar essa decadência moral.

O Santo oposto à tibieza

Nesse sentido essa ficha é muito sintomática porque fala de conversões de judeus, maometanos, hereges, mas as menciona como fatos colaterais, de uma importância menor dentro do conjunto da obra dele. Enquanto o grande acontecimento era o poder de sua pregação pela qual ele sacudia as consciências meio adormecidas, sendo assim, por excelência, o Santo oposto à tibieza, porque esse tipo de pregador que fala a respeito do Inferno, dos pecados, que tonitrua, pede o castigo do Céu, é exatamente o Santo chamado para falar, não às almas fervorosas, mas sobretudo às tíbias, e feito para sacudir aquelas que de outro modo não se podem convencer. Então se compreende o número colossal de conversões operadas por ele.

Contudo, por mais numerosas que tenham sido, essas conversões foram insuficientes. Delas não surgiu um movimento, uma corrente organizada para combater a Revolução que nascia. O resultado é que São Vicente Ferrer converteu muitas almas, mas não a Cristandade, não converteu a sociedade enquanto tal, pois ele não foi tão ouvido pelos homens de seu tempo quanto eles deveriam tê-lo escutado.

Então, São Vicente Ferrer foi o dique que a Providência levantou contra a Revolução, mas que a maldade dos homens destruiu. Entretanto, na abertura dessa torrente que começa a cair para o abismo, fica de pé a figura grandiosa dele, anunciando as catástrofes que provinham do fato de ele não ter sido ouvido, exatamente como a de um profeta do Antigo Testamento anunciando desgraças ao povo eleito porque não tinha dado atenção aos enviados de Deus.

Assim fica a imensa figura de São Vicente Ferrer pairando no firmamento da Igreja, num pórtico que é o fim da Idade Média e pode ser considerado o começo da Revolução.                v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 4/4/1966 e 4/4/1967)
Revista Dr Plinio 265 (Abril de 2020)

 

1) Cf. ROHRBACHER, René-François. Histoire Universelle de l’Église Catholique. Paris: Librairie Louis Vivès, 1901. v. X, p. 39-110.

2) Expressão metafórica criada por Dr. Plinio para designar a mentalidade sentimental que se manifesta na piedade, na cultura, na arte, etc. As pessoas por ela afetadas se tornam moles, medíocres, pouco propensas à fortaleza, assim como a tudo que signifique esplendor.

Considerações sobre o Brasil Império – II

Durante o extenso reinado de Dom Pedro II, o Brasil teve muitas décadas de paz e prosperou colossalmente. Governando a nação como um pai, o Imperador viajou pelo País inteiro, tornando-se íntimo de todos. Visitou a cidade de Pirassununga, onde os avós maternos de Dr. Plinio o receberam em casa. Vendo a menina Lucilia, o monarca afagou-a e chamou-a de “minha filha”.

 

O governo de Dom Pedro II foi um longo reinado patriarcal. Tanto mais patriarcal quanto mais as suas longas barbas iam ficando brancas. Aquela barba concorria bem para a popularidade dele. Por certo, nenhum publicitário lhe recomendaria raspá-la ou reduzi-la a um bigode faceiro. A ideia até desagrada. Aquela grande barba patriarcal tinha um sentido muito afim com o modo pelo qual os brasileiros gostam de ser governados.

Um dos monarcas mais cultos de seu tempo

Dom Pedro II tornou-se Imperador em 1830 e foi deposto em 1889. Portanto, foram quase sessenta anos de reinado. Foi de longe o homem que mais longamente governou o Brasil. Creio, aliás, que a essa sobrevivência da monarquia – um pouco como Moisés vogando num bercinho no Nilo, assim Dom Pedro II nas suas almofadas nos braços incertos de José Bonifácio – deveu-se não só a unidade do Brasil, mas o fato deste País não ter caído no regime dos “pronunciamentos” das repúblicas espanholas da América do Sul, nas quais, “por dá cá aquela palha”, eclodiam brigas – um tanto herdadas do temperamento “caliente” da madre pátria – logo puxadas a tiros. Depõem um presidente, colocam outro… lá vai aquela coisa.

Dado nosso feitio, nós, brasileiros, custamos a entrar na briga, mas para sair depois também não é fácil. Apaixonamo-nos pelas brigas e aquilo vai até onde for…

O Brasil teve praticamente – exagerando um pouco – cinquenta anos de paz. Houve alguns golpes de Estado e outros episódios análogos, mas que não tocaram na pessoa do monarca nem no poder central. Foram pequenos golpes regionais, coisas desse gênero. Dom Pedro II foi um símbolo de união e de paz no Brasil.

Ele parece ter compreendido isso perfeitamente, e desde o começo colocou-se numa posição assim. José Bonifácio despertou nele um ardente desejo de desenvolver-se intelectualmente. Para mim, não há dúvida de que ele foi um dos monarcas mais cultos de seu tempo. Não sei se ele era tão inteligente, pois não conheço um lance de grande inteligência dele. Mas era um homem que lia muitíssimo e tinha a ambição de ser conhecido no mundo inteiro como um grande intelectual. E foi. Se buscarmos na enciclopédia Larousse os “Pedros” do Brasil, encontraremos referências a Pedro II como sendo um sábio que se distinguiu entre os sábios. Correspondia-se com Victor Hugo e com outros grandes intelectuais daquele tempo. Quando ele ia à Europa, recebia visitas dessa gente e assim teve para si uma espécie de carreira intelectual ao lado da política. Essa carreira intelectual dava-lhe prestígio no Brasil, porque ter um imperador considerado sábio no mundo inteiro dava cotação, e a sua projeção internacional neste sentido era maior do que a de qualquer brasileiro. Ele pairava nas nuvens…

Patriarca da grande família chamada Brasil

De outro lado, pela Constituição brasileira, o seu papel era de não entrar em partido político e não tomar a defesa de nenhum, mantendo uma espécie de equilíbrio entre os partidos. E ele se atinha estritamente à Constituição. Enquanto seu pai era despótico e cheio de venetas, ele, de um temperamento bom, pachorrento, amável, muito cordial, cumpria a Constituição à risca.

Entretanto, Dom Pedro II encontrou uma saída para dominar a política: seu prestígio pessoal sobre os políticos era tão grande que, embora tenha exercido com sobriedade as atribuições de Imperador, as de conselheiro extraoficial dos políticos exerceu-as largamente. Inclusive, faziam-lhe a acusação de que mandava mais no Brasil por seu prestígio pessoal do que como monarca. Queriam ver nisso uma inversão da Constituição, mas ficava-lhe fácil argumentar: “Não. Qual foi o artigo que eu violei? Aconselhar-se comigo numa ação privada? Eles podem se aconselhar com quem quer que seja, só não podem aconselhar-se com o Imperador?”

Imaginem homens, vindos de qualquer ponto do Brasil, que vão exercer suas funções governamentais no Rio de Janeiro e encontram um monarca que está governando há cinquenta anos… Com uma memória prodigiosa, conhece tudo como se deu, como foi, como não foi, e sabe aconselhar para além de suas atribuições. De maneira que ele ajuda os ministros a acertarem. Não pediriam conselhos a esse homem?

Ademais, com o jeitão dele – de bom pai de família, papai de todos os ministros mais novos que chegavam, conselheiro de todo o mundo que queria dele um bom aviso, uma boa ponderação, uma boa sugestão, acima de todos os outros como imperador, como sábio, como homem que tinha no Brasil uma bela fortuna – ele estava quase invulnerável, por cima das nuvens e numa posição meio de patriarca desta grande família chamada Brasil, e meio de chefe de Estado. Um rei que governa como pai dá licenças e conselhos a todo o mundo.

Isso proporcionava uma grande concórdia nacional dentro das paixões regionais que havia: contendas entre partidos, saía porrete, falsificação de eleições…  Contudo nunca eram brigas profundas, mas superficiais. No fundo, reinava uma grande tranquilidade, perturbada apenas pela Guerra do Paraguai.

Nessa guerra, Dom Pedro II se empenhou de tal maneira que quando ela se iniciou, ele era ainda mocetão; quando acabou, as barbas dele tinham ficado brancas. Provavelmente, ele compreendia que se perdesse a guerra perdia o trono. Então, agarrou-se à vitória do Brasil com toda a força, foi lá, lutou, entrou na história, mandou o Conde d’Eu, genro dele, batalhar também, deu todo o apoio a Caxias. Participou intensamente da guerra até Solano Lopes ser derrubado. Um ano depois de ter vencido a guerra, mais ou menos, mandou um oficio ao parlamento pedindo, nos termos da Constituição, licença para se afastar do Brasil para descansar por causa da guerra.

O Brasil teve a segunda esquadra mercante do mundo

A viagem de um monarca naquele tempo, de navio, era lenta, levava mais ou menos um ano. Acrescentando que, com as economias que tinha feito, ele estava em condições de pagar todo o gasto da viagem e não precisava o Tesouro brasileiro entrar com um tostão.

Nesse período, o Brasil próspero e tranquilo estendeu muito suas fronteiras interiores, quer dizer, a parte do solo brasileiro cultivada cresceu muito. Não foi preciso fazer reforma agrária. Tirava do Estado, é claro. Ali não tem dono, os fazendeiros entravam, abriam fazenda, aquilo passava a pertencer a eles e estava acabado!

Assim, o Brasil passou a produzir grande quantidade de víveres, dos quais os principais eram o café e o fumo. Aliás, no brasão de armas do Brasil daquele tempo notam-se ramos de café e de fumo.

O Brasil precisou e teve ele próprio a sua esquadra mercante. Constituída de navios construídos com madeira das florestas brasileiras, chegou a ser a segunda do mundo. Explica-se: os mercados consumidores – os Estados Unidos, um pouco o Canadá e as várias nações da Europa – eram muito distantes. O Brasil com o litoral enorme precisava fazer navegação de cabotagem, porque as estradas internas eram muito raras; então ficava mais fácil realizar a comunicação por meio do mar. Sem muitos navios não era possível conseguir isso. O Brasil ficou com uma esquadra mercante colossal.

As finanças estavam prósperas

Qual era o estado das finanças? Nas notas do tempo do Império estava escrito o seguinte: “Mediante a apresentação desta cédula, encontrará Vossa Senhoria no Tesouro Nacional equivalente quantidade em ouro.” E era verdade. Bastava a pessoa chegar no Tesouro e dizer “Eu quero isto em ouro”, que eles davam.

Mas, como é muito mais fácil transportar papel do que ouro, acontecia que os comerciantes pagavam um tanto para receber em papel e não em ouro. É claro, porque como valia exatamente o mesmo tanto uma coisa quanto outra, para quem precisa ir, por exemplo, de São Paulo ao Rio de Janeiro carregando cem mil réis em ouro, tinha de levar um saco; enquanto que a mesma quantia em papel cabia numa bolsa. Resultado, pagava-se um acréscimo para receber o papel moeda que, por isso, valia ligeiramente mais do que o ouro, de tal maneira as finanças estavam prósperas. Era o ouro extraído das próprias minas do Brasil.

Havia inflação? Não propriamente. Tirava-se do chão o ouro e a prata, cunhava-se e distribuía-se. Hoje, aperta-se um botão, a máquina gira e saem as notas. Naquele tempo não era assim. As notas valiam, de fato, o correspondente em ouro e prata, e isso em qualquer mercado do mundo.

Com isso o Brasil prosperou colossalmente. Principalmente duas cidades, São Paulo e Rio de Janeiro, se tornaram centros animados de contato com o exterior.

Houve apenas uma zona do Brasil que decaiu: o Nordeste. Por que decaiu? Toda a sua economia girava em torno do plantio de cana-de-açúcar. Ora, os alemães inventaram um modo de fabricar açúcar com beterraba. Era um direito deles… Resultado: caiu vertiginosamente o preço do açúcar. E as famílias de plantadores de cana empobreceram muito. Eis a causa remota, e não única, de um certo atraso do Nordeste. É que a fonte de sua riqueza naquele tempo caiu de repente.

Fatores que corroíam o trono de Dom Pedro II

Durante esse tempo, Dom Pedro II viajou prodigiosamente pelo Brasil. Era um homem forte, muito robusto e fazia longas viagens pelo interior, às vezes no lombo de burro e de cavalo. Visitou o País inteiro e tomava notas. Ele tinha um famoso caderno preto, onde registrava todos os abusos que notava. Chegando ao Rio de Janeiro, ele mandava chamar os ministros e pedia interferência contra tal juiz que era ladrão, tal outro não sei o quê…  Esse caderno era misterioso, ninguém lia, só ele.

Nesse regime, esse homem conhecedor e conhecido do Brasil inteiro, palmo a palmo, tornou-se íntimo de todo o mundo. Isso ainda firmou mais a influência dele.

Contudo, alguns fatores corroíam seu trono. Quais eram esses fatores? Primeiro, o fato de que ele era o único monarca do continente americano. A monarquia parecia uma forma de governo velha, que não pegava em terras novas. A tentativa de instaurar uma monarquia no México, com o Imperador Maximiliano, deu numa tragédia em Querétaro. Foi uma coisa efêmera, não pegou, e constituiu para os olhos do espírito liberal daquele tempo mais uma prova da incapacidade de a monarquia germinar na América. Havia, pois, uma certa vergonha do Brasil estar fora de moda, sendo monarquia, porque a república era a forma de governo elegante do tempo. A França e a América do Norte eram repúblicas. A Inglaterra, apesar de não ser republicana, era a mais liberal das monarquias da Europa. De maneira que tudo isso fazia com que o Imperador parecesse uma excrescência que o curso dos tempos teria que eliminar.

Por outro lado, também concorreu muito para a queda da monarquia a atitude de Dom Pedro II na questão religiosa com Dom Vital, que não é o momento de tratar.

Outra circunstância foi a seguinte: o Imperador, ele próprio, extremamente liberal, proporcionou todas as facilidades possíveis para a república entrar. O Partido Republicano gozava de toda a liberdade.

Um caso ocorrido na minha família mostra bem isso. Minha avó tinha um irmão que fez concurso para a Faculdade de Direito e passou. Ele devia ser nomeado pelo Imperador a quem escreveu uma carta, dizendo: “Eu previno Vossa Majestade que sou republicano e que, como professor da Faculdade de Direito de São Paulo, trabalharei pela proclamação da república. Portanto, se disserem que eu, tendo sido nomeado por Vossa Majestade, fiz propaganda republicana, não julgueis que sou um traidor e que vos devo uma cátedra a qual conquistei pelo meu talento. Agora, decidi como quiserdes.”

Depois de alguns dias saía o decreto do Imperador nomeando o republicano como catedrático da Faculdade de Direto. Fatos como este há em quantidade no reinado dele. Ele corroía assim o seu próprio trono.

Visita a Pirassununga

A visita de Dom Pedro II a uma cidade do interior de São Paulo, Pirassununga, onde moravam Dona Lucilia e meus avós maternos, retrata bem o aspecto familiar do relacionamento do Imperador com o povo brasileiro.

Naturalmente, toda a cidadezinha estava avisada com muita antecedência da chegada do monarca. Então prepararam grandes festas e foram recebê-lo na estação de trem.

Havia em Pirassununga fazendas com pomares fertilíssimos, os quais produziam frutas em tal quantidade que estas caíam pelo chão e qualquer pessoa podia pegar, sem pedir licença; aquilo era aberto, porque dava para quem quisesse e sobrava toda espécie de frutas.

Ora, Dom Pedro II era louco por jabuticabas e existia ali uma fazenda cujo proprietário plantara um pomar só de jabuticabas. Então, para alegrar um pouco a visita, ao invés da eterna festa de escolinha, com meninas recitando discursinhos compostos pelo professor, resolveram que era mais interessante oferecer ao Imperador e à Imperatriz um lanche em casa de meu avô, seguido de uma visita a essa fazenda para ele chupar jabuticabas à vontade.

Durante todo esse tempo, o trem imperial ficava parado na estação de Pirassununga. Evidentemente, ninguém o movia nem tinha horário; quando o Imperador acabasse de comer jabuticabas, ele embarcava.

Chegando à cidadezinha, o monarca desembarcou ao som da banda de música municipal e foi levado para a casa de meu avô. Minha mãe me dizia que ela ainda se lembrava de minha avó ter ficado no vagão com a Imperatriz porque, sendo manca, andava com dificuldade e não ia descer. Ademais, parece que não se interessava tanto assim por jabuticabas…

O Imperador, afagando a menina Lucilia, chama-a de “minha filha”

Assim, Dona Teresa Cristina permaneceu no vagão conversando com as senhoras de Pirassununga, enquanto Dom Pedro II descia até a casa de meu avô e ali tomava contato com os principais políticos da cidade. Deu-se, então, uma cena tipicamente brasileira.

Enquanto eram servidos os alimentos, o monarca pegou minha mãe, que era uma menina de quatro ou cinco anos, a pôs em pé entre os joelhos dele, e durante a conversa ele brincava com ela chamando-a de “minha filha”. Para agradá-la, distraído e meio maquinalmente, passava a mão sobre os cabelos dela. Tudo isso correspondia a essa familiaridade das coisas brasileiras, por onde Dom Pedro II era o vovô do Brasil.

Mamãe contava que seus cabelos tinham sido bem arranjados por minha avó, que os deixara ultra-cacheados e ornados com uma fita a qual a pequena Lucilia achava linda. Ela viu o Imperador derrubar todo o belo “edifício” e ficava com uma vontade enorme de pedir-lhe para não fazer aquilo, pois estava estragando o penteado dela.

Mas, coisas do instinto de menina, ela olhava para o pai a fim de ver se podia fazer isso, e o pai, naturalmente, percebia qual era a reação da filha. E, enquanto falava com o Imperador, ele sorria e com o olhar como que dizendo: “Não se atreva! Porque é a mão imperial, e onde ela pousa não se corrige nada. Depois que ele for embora, arranje sua fita e seus cachos”. Não foi dito, mas o olhar exprimia isto.

Falava o tupi na perfeição

Creio ter sido nessa mesma ocasião, não tenho certeza, que se deu outro fato o qual mostra bem a familiaridade das visitas do Imperador. Neste caso, a meu ver, familiaridade até meio excessiva…

Dom Pedro II sabia falar um dos idiomas indígenas na perfeição, como quem fala um idioma contemporâneo. Um político do lugar, querendo colocar em má situação o chefe da oposição, adversário político, quando ia da estação para a casa, disse ao Imperador:

— Vossa Majestade sabe quem aqui está em condições de falar tupi com Vossa Majestade? É o Doutor Fulano. Ele fala tupi na perfeição. Dirija-se a ele nesse idioma, pois vai ficar muito contente.

Tendo-lhe sido apresentado o Doutor Fulano, Dom Pedro II começou a falar com ele em tupi. O homem não entendeu… Podia passar pela cabeça dele tudo no mundo, exceto que o Imperador lhe dirigisse a palavra em tupi.

Por fim, acabou dizendo:

— Eu não entendo o que Vossa Majestade está dizendo.

Então o monarca caiu em si, compreendeu que tinham feito uma jogada política para desprestigiar o homem e disse amavelmente:

— Ah! Tinham me dito que o senhor falava tupi, por isso lhe dirigi a palavra nesta língua…

E mudou de assunto, não revelou quem lhe dissera isso e a coisa passou.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 23/11/1985)

Revista Dr Plinio 253 (Abril de 2019)

 

Força, esplendor, sacralidade

Sendo fiel à graça do Batismo, o homem procura o aspecto mais elevado das coisas, desenvolvendo o senso do maravilhoso. A Revolução reprime esse senso e inocula nas pessoas o gosto pela técnica, o espírito prático, para se tornarem eficientes e prosperarem na vida, afirmando de modo claro ou implícito que toda beleza é inútil; dessa forma ela mutila as almas.

 

Um dos aspectos que a Revolução mais acentua é o que os mais modernos revolucionários chamam “desmitificação” ou “dessacralização”.

Para compreendermos bem o que isso significa, é necessário, antes de tudo, entender a noção que eles têm de mito ou de coisas sagradas. Para chegar até o fundo da noção, em duas palavras, eu diria o seguinte:

As coisas comuns refletem algo de uma ordem superior

Em sua peça “Chanteclair”, Rostand(1) faz o galo — figura principal do enredo — dirigir uma saudação ao Sol: “Glória a ti, Sol, sem o qual as coisas não seriam senão o que elas são”.

Lembro-me de que, durante anos, eu passava pela Rua da Consolação, a caminho do Colégio São Luís, e via numa mansarda um vidro sujo de uma janela aberta. A dona da casa não lavava a janela e o Sol batia sobre aquele vidro; era um verdadeiro esplendor! O Sol refulgia sobre a sujeira e fazia daquele vidro um espelho maravilhoso!  Eu sempre me divertia, pensando em quantas coisas queria dizer isso: o Sol iluminando a sujeira, refletindo-se nela e tirando dela um brilho especial.

Assim, vemos que as coisas, consideradas pelo homem com espírito filosófico e, sobretudo, com espírito de Fé verdadeiro, refletem algo de uma ordem superior. Elas têm uma analogia, uma semelhança com algo existente em uma esfera mais elevada.

A partir de um caco de vidro, elevando-se até a infinita perfeição de Deus

Por exemplo, um caco de vidro de janela na qual brilha o Sol tem uma analogia com o brilhante, embora este seja muito mais do que o caco de vidro. O brilhante, por sua vez, tem uma semelhança com alguma pedra maravilhosa que existiria no Paraíso terreno, em comparação com a qual o brilhante não seria senão um caco de vidro. Mas o brilhante do Paraíso terreno tem uma analogia com alguma pedra ou substância existente no Paraíso celeste, perto da qual aquele não é senão um caco de vidro.

E esta matéria preciosíssima do Paraíso celeste não é senão um caco de vidro — e até menos do que isso — em comparação com a inteligência do mais burro dos homens. O brilhante que rutila é símbolo da inteligência; quando alguém é muito inteligente, até se diz que tem uma inteligência brilhante. E o mais burro dos homens tem incomparavelmente mais luz em si do que um brilhante, pois nele há uma luz de outra natureza.

Mas esse homem pouco dotado é, por sua vez, uma imagem do homem inteligente; e este último é um símbolo do Anjo que, por sua vez, é uma imagem de Deus.

Podemos, assim, partindo do caco de vidro, por sucessivas ascensões, chegar até a perfeição infinita que é Deus Nosso Senhor.

O espírito bem formado, ao contemplar algo, procura sempre ver naquilo a imagem de alguma coisa mais alta, e dirigir seu espírito para uma consideração mais elevada, sendo insaciável de analogias dessas, até chegar a Deus Nosso Senhor. É por esta forma que nos utilizamos de todas as coisas criadas para subirmos até Deus.

O militar, o sacerdote, o professor

Isto que eu disse a respeito da ordem natural, pode-se afirmar, sobretudo, da ordem da graça, porque esta é mais do que o Sol: ela brilha, ilumina mais os homens do que o Sol ilumina todas as coisas na Terra. Mas a graça, por sua vez, é um dom sobrenatural criado, através do qual podemos ter uma ideia de como é o próprio Deus.

O resultado dessa tendência do espírito consiste em que todos os povos, com um mínimo de sanidade psicológica, procurem apresentar determinados aspectos da realidade de maneira a fazer com que eles levem a pensar na realidade superior.

Ao considerarmos um militar, nós gostaríamos de vê-lo revestido de um uniforme que nos fizesse pensar no esplendor da coragem — traço distintivo do militar — de tal maneira que, de “proche en proche”(2), acabássemos cogitando na coragem angélica e no vigor com que São Miguel Arcanjo expulsou do Céu os demônios. De onde, então, o gosto por um certo esplendor nos uniformes militares.

Também o sacerdote, sobretudo quando está no exercício de suas funções, devemos querer considerar nele a sacralidade de sua missão, e nesta sacralidade algo que nos faça pensar em Deus. Para isso, é preciso realçar a figura do padre, principalmente quando ele está celebrando, por meio de adornos que simbolizem a importância de sua missão.

Poderíamos dizer o mesmo de qualquer outra profissão, como, por exemplo, o professor. O normal seria que um professor lecionasse com beca ou toga para ressaltar o esplendor, a gravidade e a importância do ofício de docente. O traje material realça a ideia da missão, e esta nos leva a Deus, fonte de toda a verdade e Mestre de todos os professores.

Há, pois, uma tendência natural do espírito que não é ateu, em ver sempre algo de mais alto como que presente no mais baixo, e procurar realçar o que está mais baixo para conduzir o espírito até o mais elevado.

Isso que é uma tradição da civilização católica, um princípio transformado por ela e aplicado em inúmeras tradições vivas até em nossos dias, é exatamente o que o espírito moderno considera mito: ver em alguma coisa a presença de uma realidade superior.

O que para nós é uma série de elevações que nos conduzem até Deus, para o ateu é um conjunto de mitos que nos levam até a mentira, porque para eles Deus não existe e, não existindo, evidentemente é um mito ao qual essas coisas podem conduzir.

De onde, então, a tendência para o que eles chamam a “desmitificação”, isto é, tirar das coisas todos os seus adornos, privando-as de todas as formas de beleza para apresentá-las terra a terra, como elas são, para evitar a mitificação.

Casa d’Áustria: a mais ilustre e sacral das dinastias europeias

Vemos aqui um quadro que representa o Imperador Francisco José, recebendo o Kaiser Guilherme II com uma comitiva de príncipes alemães. O encontro se dá no castelo de Hofburg, em Viena, em 1908, e tem os seguintes antecedentes:

Francisco José celebrava, naquela ocasião, sessenta anos de reinado efetivo. Ele subiu ao trono muito cedo, e durante boa parte do reinado foi o chefe de todos os povos de língua alemã. O Sacro Império tinha sido abolido, mas fora substituído, por Napoleão, por uma organização chamada Confederação Germânica, e os imperadores da Áustria eram os presidentes hereditários da Confederação Germânica. Ele foi, portanto, presidente dessa Confederação.

Em 1878, a Prússia promoveu uma coligação de Estados germânicos contra Francisco José, expulsando-o da Confederação Germânica. Ele continuou sendo Imperador da Áustria-Hungria, enquanto os demais povos de língua germânica, com seus reis e príncipes, passaram a constituir um só império, sob a direção do Kaiser.

Francisco José, da mais antiga das dinastias alemãs, e de uma das mais antigas dinastias da Europa — certamente a mais ilustre e a mais sacral de todas elas era a Casa d’Áustria —, ficou expulso do mundo alemão e presidindo apenas um conglomerado de Estados de língua magiar e eslava, um pouquinho de língua italiana, que se chamava a monarquia austro-húngara.

Ele estava, portanto, num estado de ressentimento em relação ao mundo alemão. Como o Kaiser precisava do apoio dele, quando Francisco José fez sessenta anos de reinado Guilherme II foi visitá-lo, levando consigo uma comitiva de príncipes alemães.

Trata-se de uma cena altamente mitificada, no seguinte sentido: o esplendor do cerimonial militar e do cerimonial estatal é levado ao máximo da gala, da pompa para elevar o espírito a considerações que dizem respeito a Deus Nosso Senhor.

Luz e esplendor, compostura e respeito

Francisco José está sozinho, em frente de todos os outros príncipes alemães. O que tem o grande penacho é o Kaiser Guilherme II. Todos os outros são reis e príncipes de pequenos Estados alemães.

Na Alemanha havia três cidades livres com organização burguesa; não eram monarquias, mas repúblicas: Bremen, Hamburgo e Lubeck. No quadro está também o representante de uma cidade livre, não sei de qual delas.

A atenção é tomada por uma ideia de grande esplendor. Notem como tudo é luminoso. A sala tem uma luz natural, mas como que prateada, que se reflete nas paredes e incide no chão — dir-se-ia que o assoalho é uma pedra preciosa sobre a qual esses homens estão pisando —, no branco da mesa junto à qual está encostado Francisco José, no branco dos penachos dos capacetes dos vários príncipes aí presentes, refulge na borla dourada que um duque usa, cintila nos lustres, nos espelhos; há uma inundação de luz que brilha nas condecorações, nas dragonas… Por toda parte, o que se vê é luz e esplendor.

De outro lado, nota-se que as pessoas estão numa atitude de muita compostura e de muito respeito. Cada um desses homens sabe quem é, o que representa, respeita a si próprio e usa um uniforme por consideração para consigo mesmo e para com seu próprio cargo.

A ideia é de sublimar o quanto possível o poder público, o Estado, por respeito à dignidade da criatura humana que o Estado é chamado a governar.

O ar militar deles dá uma ideia de poder, de força, de tal maneira que se poderia dizer: força, esplendor, sacralidade são elementos muito presentes dentro desse quadro.

O Kaiser tem um papel na mão; é um discurso que está lendo ou acabou de ler, e Francisco José ouviu a saudação.

São duas escolas completamente diferentes. A Alemanha nova, militar, industrial, representada pelo Kaiser e pelos que o seguem; a Alemanha antiga, sacral, nobre, distinta, guerreira, é verdade, porém não principalmente guerreira, mas sim patriarcal, representada pelo Imperador da Áustria.

São duas figuras e duas ideias diversas: a Alemanha militarista, pré-nazista; o velho mundo germânico, sacral e católico.

Francisco José: simplicidade, seriedade e afabilidade

Francisco José está inteiramente só, o uniforme dele é simples, de apenas três cores: um jaquetão branco, uma calça vermelha com um galão dourado que vem de alto a baixo. Ele traz no ombro uma faixa, que é de uma condecoração e que pende em diagonal sobre o peito; nas mãos, ele porta um capacete com plumas de um verde claro e discreto.

Há uma certa simplicidade na atitude de Francisco José. Enquanto os outros estão empertigados, de pescoço alto para dar a ideia de que valem qualquer coisa, ele está numa naturalidade completa, mas, ao mesmo tempo, com uma distinção que o sobrepõe aos demais. A tal ponto que há uma espécie de vazio em torno dele, e ninguém chega perto. Sua fisionomia é a de um homem sumamente cônscio de não precisar de enfeites para ser ele mesmo. Ele tem atrás de si séculos de História, de glória; possui um direito que a força não violou e por causa disso recebe os seus visitantes, sério, afável, mas não risonho, pois em relação a eles ele tem uma queixa.

Para quem analisa o ambiente, há um valor simbólico especial nesse quadro. Muitos desses príncipes são antifranceses. A Áustria, pelo contrário, nos últimos períodos de sua monarquia era muito pró-franceses. Atrás está o símbolo do charme austríaco e da graça francesa: o quadro representando Maria Antonieta, Rainha da França, pintado por Madame Vigée-Lebrun. É um dos quadros mais famosos e graciosos representando Maria Antonieta.

Antítese entre dois mundos

Há uma antítese entre dois mundos: de um lado, com Guilherme II, o esplendor da força, do poder e da riqueza; de outro, por cima desse esplendor, brilhando sozinho, também o esplendor da força, do poder e da riqueza, mas considerado como um valor secundário diante da tradição, da sacralidade e da História; esse é Francisco José.

O jeito do Kaiser é o de um homem que confia no poder da riqueza e das tropas, e no fascínio pessoal de sua personalidade para levar a nação à guerra.

Francisco José não está nada arrogante, mas natural, e nem se perguntando se ele é um grande homem. Ele sabe ter um grande direito e, atrás de si, uma grande História. E esse direito é um direito sacral dos imperadores do Sacro Império, que refulge nele, não como uma luz que mora dentro dele, mas que vem de fora e o circunda. Esse é o imperador sacral.

Vemos no quadro um regente da Baviera. Como é diferente do Kaiser! Um homem velho, tranquilo, digno, olhando para Francisco José até com certo respeito, como quem diz: “Oh, que homem! Que saudades eu tenho desse Imperador!” Ele não está nem um pouco arrogante, porque está reconhecendo uma superioridade real.

Temos, assim, um aspecto maravilhoso da civilização cristã.

Não se veem mais cerimônias públicas com esse esplendor, nem de longe! Mesmo os homens dessa categoria vão se tornando cada vez mais raros. Quase nada mais é feito para lembrar algo de mais elevado, e menos ainda para conduzir a Deus. É a invasão da vulgaridade para substituir o maravilhoso de outros tempos.

Para ser capaz de fazer uma longa digressão como essa, é preciso ter um feitio de alma por onde se queira sempre o mais alto, e ser insaciável nesse ponto. O primeiro passo é o aproveitamento da graça batismal, da retidão — que o pecado original não tira inteiramente do homem —, por onde o espírito humano, nos seus primeiros movimentos, já visa o mais elevado.

Evidentemente, quem toma com naturalidade as coisas monstruosas de hoje em dia, embaça a alma para belezas dessas.

Certa vez alguém me explicava como decaiu seu senso do maravilhoso: foi pelo gosto enorme que tomou pelas coisas mecânicas, e pela ideia de que toda beleza é inútil; o que interessa é o prático, o funcional, o resto é fantasia. Conforme esse modo de pensar, sempre que a alma tem esses movimentos ascensionais, deve-se reprimir, porque impedem o desenvolvimento do espírito prático, ganhar a vida, prosperar, ser um homem eficiente.

Segundo esse erro, é preciso esmagar o “élan” da alma a fim de ser um homem inteiramente posto nas coisas que fazem a carreira de hoje em dia. Porque há, na aparência, uma incompatibilidade entre a eficácia e esse espírito, que se poderia chamar de meio poético. Então as pessoas calcam essa tendência e com isso se mutilam. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 27/5/1974)

Revista Dr Plinio 193 (Abril de 2014)

 

 

1) Edmond Eugène Alexis Rostand, poeta e dramaturgo francês (*1868 – †1918).

2) Do francês: de próximo em próximo, paulatinamente..

Cortesia filha da caridade

Um dos célebres quadros de Velásquez, pintor espanhol, representa a rendição de Breda, nos Países Baixos. Quando menino, ao entrar numa loja de estampas, deparei-me com uma gravura desta cena histórica, e logo me senti cativado. Depois de a contemplar por longo tempo, pensei: “Como gostaria de ter esse quadro, a fim de passar horas olhando-o e o admirando!”

É, de fato, uma tela magnífica, não apenas por sua riqueza pictórica a qual demonstra de sobejo o talento do mestre, como também pela bela expressão de valores morais que ela retrata.

Episódio superiormente imortalizado: o Marquês de Spinola, comandante das tropas de Felipe II, recebe das mãos de Justino de Nassau, defensor de Breda, as chaves da cidade, que capitula depois de uma resistência intrépida.

O general do Rei Católico está revestido de uma imponente armadura sobre a qual uma gola com rendas dá uma nota de amenidade, realçada ainda pela grande faixa própria ao comandante-chefe. Em sua mão esquerda nota-se o bastão do marechalato. Justino de Nassau se apresenta em um rico traje, e também usa gola e punhos de renda.

A cena se passa no campo, e num ambiente estritamente bélico, no qual figuram tropas de armas na mão. Tudo não obstante, o encontro tem uma nota de distinção e afabilidade que lembra uma cena de salão. Justino de Nassau, tendo sido derrotado, apresenta-se de chapéu na mão, e entrega as chaves curvando-se ligeiramente. Spinola, por respeito para com o valoroso vencido, está também com a cabeça descoberta. Atrás dele, os fidalgos de seu séquito o imitam.

Vê-se que o chefe vencedor, ao mesmo tempo que se inclina levemente, contém com o braço a reverência do gentil-homem flamengo, e o seu semblante é impregnado de simpatia e consideração. Percebe-se que ele felicita o adversário pelo brilho da resistência, amenizando assim cavalheirescamente o que o ato de rendição tem de amargo para o vencido.

Toda uma doutrina de cortesia, toda uma tradição de nobreza de alma se exprime nos pormenores discretos mas eloquentes deste quadro admirável. Elevação de alma, decorrente da fé, cortesia nascida da caridade, que faziam rutilar valores espirituais inestimáveis, num ato que em si mesmo é inevitavelmente rude e humilhante, como toda rendição(1).

E não será sem interesse considerar, ainda, que a faixa meio cor-de-rosa, meio lilás, ornando a couraça do general espanhol era uma lembrança da mortalha, pois os chefes militares daquela época partiam para o combate tendo em vista a possibilidade de morrerem, sacrificando a própria vida pela causa de sua pátria.

Então, esse homem que se apresenta para o momento no qual sua coragem e sua vitória serão reconhecidas, conserva cingido o símbolo de sua mortalha. Ele não estremece nem hesita, e se mantém numa posição ao mesmo tempo de triunfo e bondade que, a meu ver, não alcançaria sem uma particular ação da graça. Pois atitudes como essa só são possíveis dentro do âmbito sobrenatural que confere luz e esplendor à Civilização Cristã.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

1 ) Cf. Catolicismo, novembro de 1956.