A vitória da confiança – III

Enquanto incutia terror nos adversários, a Santíssima Virgem não Se mostrava aos defensores de seu Santuário, deixando-os num aparente abandono, pois queria deles um supremo ato de confiança.

 

Depois de peripécias, riscos internos e externos de toda ordem e tamanho, a guarnição heroica do Santuário de Czestochowa conseguiu resistir até um determinado momento em que os suecos, desanimados, se retiraram.

Pela calma, impavidez e confiança iremos desconcertar os adversários

Conforme o costume, os defensores continuaram as comemorações de Natal com cantos e cerimônias. As tropas suecas julgaram, entretanto, tratar-se da comemoração de alguma vitória e começaram a abandonar suas posições, desconcertadas.

Enquanto os suecos mantinham o cerco, os sitiados fizeram uma festa de Natal dentro do mosteiro. Com isso, os inimigos ficaram desconcertados – evidentemente por um milagre, pois eram muito bons guerreiros e não iriam se iludir tão facilmente assim – e começaram a abandonar suas posições.

Os oficiais, dando-se conta do que realmente se passava, concluíram, por seu turno, que os sitiados deviam estar muito bem providos em mantimentos e munições para se permitirem tais festas. Na realidade, as provisões estavam já no fim. Trinta e oito dias de sítio haviam transcorrido.

É muito bonito e significativo para vermos o valor da piedade e da confiança na Providência. Os defensores de Jasna Gora estavam perdidos, não tinham mais munições. A luta estava quase desesperada, mas eles confiavam. Fizeram, então, uma comemoração interna. Na hora de fazer a festa – que é a festa da confiança – os suecos perdem a confiança.

Vendo isso, os suecos concluíram: “Não, está tudo perdido. Nós estamos no nosso supremo “élan”, e agora essa gente começa a cantar e festejar o Natal! Eles têm munições em quantidade. Vamos embora!”

Se tivesse sido calculado pelos católicos, seria verdadeiramente um recurso de guerra psicológica. Os guerreiros mais terríveis da Europa naquele tempo foram desbaratados.

Evidentemente são dessas coisas dispostas pela Providência. Virão dias em nossas vidas em que vamos desconcertar os adversários pela nossa calma, impavidez e confiança. Eles vão pensar que nós temos recursos muito maiores do que realmente dispomos e irão embora.

Ó intransigência sagrada!

Na escuridão da noite, os canhões pesados foram retirados de suas posições. De madrugada, os comandantes de tão numeroso exército se retiraram, cada um para seu lado.

Miller se dirigiu para Piotrkoy; o Conde de Wrzeszczewicz partiu para Wielun; o General Sadowski, para Sieradz; o Príncipe saxão para Cracóvia.

Como pode ter acontecido que apenas setenta religiosos, absolutamente não combatentes, sentissem tanta força em si que, com cinco nobres e seus poucos criados, mais cento e sessenta soldados de infantaria, em sua maior parte simples camponeses, ousassem opor resistência a um exército tão numeroso, se o próprio Deus, tutelando esse lugar consagrado à glória de sua Mãe, não houvesse inspirado essa determinação aos religiosos?

Porquanto, embora algumas vezes perdessem a esperança, sempre que após a recitação das orações se reuniam no refeitório e cada qual era consultado; todos votavam unanimemente que preferiam antes tombar, sofrendo a mais terrível das mortes, do que permitir que o infame jugo sueco maculasse com seus pés o lugar consagrado à Virgem Puríssima.

Podemos imaginar o que seriam essas noites propriamente épicas? O dia terminou, vão à igreja rezar e depois para o refeitório comer uns restos de pão, enfim, o que deveria haver lá, com uma água qualquer. Nessa hora são comunicadas as notícias do dia. É o momento em que os fracos se sentem desanimados. Tal pessoa ficou ferida, tal perigo cresceu, tal outra coisa se agravou, notícias de catástrofe iminente.

O Pe. Kordecki, presidindo, pergunta:

— Então, o que havemos de fazer?

Todos, unânimes, respondem:

— Nós preferimos morrer a que pés protestantes pisem no santuário de Nossa Senhora!

É o falso ecumenismo liquidado, rejeitado. Ó intransigência sagrada, ó exemplo para nós!

E quando alguns dentre os nobres nos perguntavam se esperávamos os reforços turcos, ironicamente respondíamos que não confiávamos no auxílio dos homens, mas no poder e na proteção de Deus sobre esse santo lugar, e estávamos preparados para derramar o sangue pela honra de Deus, para guardar sem mancha a fidelidade a Deus, à pátria e ao rei.

Deus mesmo de tal modo dispôs essas coisas para que, entre os montes célebres pelos milagres, também se contasse esse Monte Claro da Polônia, defendido por uma mercê especial de Deus obtida pela Santíssima Virgem para que nenhum homem pudesse se gabar de havê-lo salvo ou ao menos repetir frases orgulhosas e jactanciosas: “Foram nossas mãos que realizaram isso!”

A Virgem Maria vai à tenda do inimigo e lhe incute terror

Agora vem o mais belo.

Segundo o testemunho dos suecos, é manifesto que Jasna Gora foi defendida milagrosamente e com sucesso, pois o senhor de Grodzicki, comandante da artilharia do Rei da Suécia, e outros revelaram que Miller relatava no acampamento que o único motivo que o levara a levantar o sítio de Jasna Gora foram as palavras e a face ameaçadora de uma nobre Senhora que apareceu diante dele, deixando-o perturbado.

Que bonito! Nossa Senhora não apareceu para os defensores, nem lhes contou que Ela estava intimidando os suecos. A Santíssima Virgem deixou os sitiados na escuridão completa, pois queria ter essa homenagem de confiança. Enquanto isso, Ela desbaratava os suecos.

Quantas vezes na nossa vida parecemos completamente bloqueados, perdidos, e Nossa Senhora não nos diz que vai nos ajudar. Mas Ela está derrotando o inimigo, e passamos impunemente. Maria Santíssima ama que tenhamos confiança n’Ela no momento em que parece nos abandonar. É na hora da aridez que Nossa Senhora gosta que confiemos n’Ela.

Quando formos tentados de insegurança, a virtude a ser praticada é a confiança contra toda verossimilhança: “Isso há de se solucionar porque está no caminho de Nossa Senhora, é arquitetônico, razoável, e porque Ela deixou, em meio à aridez, sobreviver em meu espírito a noção de alguns indícios contundentes. Por causa disso continuarei e perseverarei, dê no que der. A noite parece escura, o adversário mais poderoso, e os reveses mais evidentes e estrepitosos do que nunca. Pois bem, é preciso continuar a confiar!”

Santa Teresinha do Menino Jesus tinha um pensamento muito bonito a propósito do episódio em que os Apóstolos acordaram Nosso Senhor no Lago de Genesaré, enquanto Ele dormia na barca. Gritaram eles: “Senhor, salvai-nos porque perecemos!” Comenta Santa Teresinha que fizeram bem, mas teria sido mais bonito se eles não O tivessem acordado. E acrescentou: “Nosso Senhor gosta de dormir no fundo das almas que parecem afundar”.

Quer dizer, Ele gosta de dar a impressão de estar alheio ao perigo. Mas, durante o sono, Ele faz tanto ou mais do que se estivesse acordado. De maneira que os Apóstolos teriam feito melhor deixando-O dormir, porque os ventos e as tempestades se teriam aplacado da mesma maneira. A barca onde está o Filho de Deus não pode ir ao fundo.

Às vezes essa barca é nossa alma. Nós estamos num desconcerto único, não sabemos como as coisas vão se arranjar, enfrentamos o adversário como nos é dado no momento, e Deus parece dormir no fundo de nossa alma. Segundo Santa Teresinha do Menino Jesus, não nos importemos. Nosso Senhor dorme, mas seu Coração vigia e Ele nos socorrerá. No momento adequado isso acontece.

No cerco de Jasna Gora Nossa Senhora parecia dormir, mas vigiava. Não estava entre os d’Ela, mas no meio dos inimigos. Ela ia à tenda do Miller meter medo nele, e o poderoso general fugiu. Isso me parece supremamente arquitetônico e característico de nossa via. Portanto, deveria ser marcado em letras de ouro e de fogo em nossas almas.

Algo de celestial e divino brilhava em seu rosto

Daí espalhou-se entre os suecos a notícia de que Miller levantara o sítio por ter sido enganado por uma donzela a serviço dos monges. O que corria entre o povo, entretanto, é que o general fora advertido severamente por uma senhora que lhe aparecera, para que levantasse o cerco sob pena de fazer desaparecer completamente o seu exército.

Com tal descrição concordaram as cartas das freiras dominicanas de Piotrkow às irmãs que estavam em Jasna Gora, as quais contêm, entre outras, a seguinte referência:

Piotrkow era a cidade onde se encontravam os suecos. Portanto, essas irmãs estavam em contato com eles e escreveram às de Jasna Gora, dizendo o seguinte:

“Miller observou com grande atenção aqui em nossa igreja o quadro de Nossa Senhora de Czestochowa, e como o intérprete pedira que lhe fosse obsequiada uma cópia dessa imagem, nós lha demos e o próprio Miller pegou-a das mãos do intérprete.”

Um protestante pegar uma imagem de Nossa Senhora, naquele tempo era uma coisa que nunca se tinha visto!

“Daí tornou-se-nos claro que o general queria verificar se a visão que tivera à noite era parecida com a do quadro. As próprias religiosas de Piotrkow relataram posteriormente ao padre provincial, sob cuja jurisdição está também o convento de Czestochowa, que Miller, tendo tomado o quadro das mãos do intérprete, disse o seguinte: “Absolutamente não é parecida com aquela virgem que me apareceu, pois não é possível ver alguém comparável na Terra. Algo de celestial e divino, com o que me assustei desde logo, brilhava em seu rosto”.

Aparição de São Paulo, eremita

E continua a carta:

“Afirmavam os próprios suecos que alguns deles viram uma senhora sobre os muros, apontando os canhões e fornecendo com as suas próprias mãos as armas necessárias aos defensores.”

Vejam que beleza! A luta estava dura, alguns não tinham força para arrastar um canhão, outros já não possuíam coragem para dar um tiro, mas afinal conseguiam. Eles não sabiam de onde lhes tinha vindo a força para isso. Porém era Nossa Senhora, a quem eles não viam, que os ajudava. Entretanto, o inimigo via.

Então os adversários estavam nas trincheiras; e aos que escavavam a rocha, que era na base da montanha onde estava o convento, em direção aos muros, apareceu um venerável ancião que os aconselhou a deixarem o trabalho inútil, pois que mesmo em sete anos não o conseguiriam realizar. Amedrontados, pois, com essas aparições, desistiram de dar continuidade ao cerco.

E isso foi ouvido dos suecos pelo senhor Aleksy Sztrzalkowski, que o relatou aos monges, sob palavra de honra.

A Sra. Jaroszewska contou igualmente que vira a figura do venerável ancião, que a animava com a esperança de que Deus em breve manifestaria sua misericórdia e o inimigo levantaria o cerco de Jasna Gora. Nessa visão, um frade em hábito branco celebrava Missa junto a um altar situado num canto à direita do lado oriental da igreja. Não podemos considerar o ancião como outro senão São Paulo, primeiro eremita e nosso patriarca, em cuja honra está consagrado esse altar.

Os senhores da nobreza polonesa testemunharam que haviam ouvido os suecos contando como estes tinham visto um ancião ao lado de uma senhora, que aparecia sobre os muros e rebatia os projéteis suecos.

Nossa Senhora de Czestochowa, Rainha e Mãe da Polônia

Estamos vendo, portanto, os segredos da vitória de Jasna Gora, após a qual o Rei João Casimiro, que antes estava com a sua causa perdida, fez um ato de consagração a Nossa Senhora, começou a reconquista e sua situação mudou.

Reunidas as forças fiéis e para que a contraofensiva alcançasse o maior êxito, o Rei em companhia da nobreza e do povo, com a aprovação do Senado, proclamou solenemente Nossa Senhora de Czestochowa como Rainha e Mãe da Polônia.

Logo depois dessa consagração, os suecos começaram a perder o seu ímpeto e, derrotados batalha após batalha, tiveram que recuar para a Prússia, perdendo a maior parte de seus contingentes.

Poucos dias depois da chegada do Rei a Jasna Gora, onde se encontrava o Santuário de Czestochowa, apareceu, no lado sul, um triplo Sol e ao mesmo tempo viu-se uma dupla coroa solar, uma das quais deslocou-se pelo ar e envolveu a colina com o claustro.  A outra, muito mais voltada com o seu cimo para o sul, tocava o próprio disco solar.

Portanto, um milagre manifesto. O Sol se desdobra e aparecem duas coroas: uma delas tocando no Sol com o próprio cimo e a outra foi pousar sobre o Santuário de Jasna Gora.

Era belo contemplar esse fenômeno celeste, pois o considerávamos como simbolizando uma vitória e uma manifestação visível do aplacamento da ira divina. Assim como os trágicos sinais de há três anos no Sol poente prenunciavam a crueldade da guerra e o imenso derramamento de sangue, assim o brilho claro do Astro-Rei que volta e as coroas incomuns, a todos pareciam anunciar a palma da vitória da paz.

Nossa grande arma é a confiança cega na Mãe de Deus

Eu compreendo que alguém fique perplexo e faça o seguinte raciocínio: “Dr. Plinio fala aos borbotões e com essa facilidade a respeito da confiança. Ele mesmo terá passado por esses apuros, para falar assim com essa facilidade? Já sentiu a insegurança que sente a minha geração? Dr. Plinio pertence a uma geração que é um monólito, um rochedo, não se abala com nada. Para ele, confiar é fácil. Eu queria saber se ele, sendo da minha geração, confiaria também. Nele não existe uma confiança sobrenatural, mas um temperamento feliz, bem construído, otimista. Ele se reconhece dotado de alguns recursos e sabe que, na hora H, tira lá de dentro dos reservatórios dele um vitupério, uma agressão ou uma cilada e, no fim, tudo dá certo”.

Na verdade, as novas gerações se defendem da insegurança por um processo errado: a imprevidência. É muito próprio a elas não olhar muito para os perigos e o dia de amanhã, porque se forem prever sentem uma tal insegurança que preferem adotar a política do avestruz.

Pelo contrário, diante do perigo a minha geração prevê longamente, estando sempre de atalaia para o menor risco espiritual ou tático de apostolado, a fim de perceber e tomar as providências. De maneira que, quando o perigo se torna mais imediato, já se tem uma série de planos de ação postos para o caso dele se positivar.

Isso faz com que a pessoa não tome sustos, é bem verdade. Mas é bem verdade também que o número de perigos que se veem é muito maior, a quantidade de riscos contra os quais temos que exercer a prudência é terrível. Na luta em que nos encontramos, desde manhã até a noite, quase não fazemos outra coisa senão prever.

Resultado: à medida que vamos prevendo, notamos o quanto o homem é pequeno e como todas as previsões, embora necessárias, servem mais para descobrirmos o risco do que para o remediarmos. Devemos prever o perigo, mas ficamos às voltas com hipóteses tão numerosas, possibilidades de derrota tão acachapantes, que chegamos forçosamente a esta conclusão:

Deus deseja de mim isso, e quer realizar essa obra por meio de sua Mãe Santíssima. Mas essa vitória, se for alcançada, é d’Ela, não nossa. Porque não há um homem capaz de tocar a Contra-Revolução para a frente, nas dificuldades em que nos encontramos. É a interferência de Nossa Senhora que salva a situação, reconduz o barco, fazendo-o flutuar de novo.

Compreende-se, assim, como na posição de uma pessoa de minha geração é preciso ter confiança. Por vezes, quando os infortúnios se sucedem um ao outro e se tem a impressão de que nada mais vai para a frente, como é preciso, de fato, confiar no sobrenatural, dentro da aridez, sem nenhuma vontade de confiar, sem sentir nem um pouco que Nossa Senhora vai nos ajudar, tendo até a impressão de que Ela nos abandonou! Esses são os momentos de maior união com Ela, são as horas da confiança, em que se diz: “Minha Mãe, tenho a impressão de que está tudo perdido. Mas volto-me para Vós e Vos peço que me auxilieis. Eu nada mais posso fazer.”

Em nossas vidas, encontrar-nos-emos inúmeras vezes em situações assim. Devemos, pois, preparar as nossas almas para a ideia de resistir, e a nossa grande arma, o nosso grande meio de êxito é a confiança cega. É nessa virtude que devemos nos amparar.

Vimos como nesse convento, onde havia “quinta-coluna” e toda espécie de dificuldade, um punhado de heróis resolveu resistir até o fim. Esses heróis teriam sido estraçalhados, mas não sabiam que no alto das muralhas onde lutavam, Nossa Senhora combatia por eles. E até na própria tenda do adversário Ela entrava para incutir terror.

Como eu lamento não ser pintor para pintar o cerco de Jasna Gora, os heróis lutando e a Virgem Maria, como uma figura diáfana, cristalina, toda prateada, armando os canhões e fazendo disparar os tiros! Que esfacelamento para a “heresia branca”, que liquidação para os sentimentais, que lição para confiarmos contra toda a esperança! Maria Santíssima, invisível aos olhos dos combatentes e disparando canhões nos altos da muralha, mereceria bem ser chamada Nossa Senhora da Confiança.

Peçamos a Maria Santíssima que nos dê essa confiança n’Ela, e com isso venceremos obstáculos que nunca imaginaríamos vencer. Foi para isso que conduzi essa tão longa e bonita história de Nossa Senhora de Czestochowa.

 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraída de conferência de 5/9/1972)

Revista Dr Plinio 264 (Março de 2020)

Com uma simples palavra, Nossa Senhora pode nos santificar

Quem tenha algum desânimo, alguma tristeza ou alguma perplexidade na vida espiritual pode parafrasear o centurião que se dirigiu a Nosso Senhor, e pedir a Maria: “Senhora, eu não sou digno de ouvir a vossa voz, mas dizei uma só palavra e a minha alma será transmudada, de um momento para outro, se vós assim o quiserdes”.

Nossa Senhora pode, de um momento para outro, nos santificar, dando-nos um grau eminente de virtude. Nós devemos pedir a Ela que sua voz se faça ouvir no íntimo de nossas almas e nos santifique, concedendo-nos uma virtude que, às vezes, anos de lutas e de trabalhos não nos proporcionaram, pois uma palavra de Nossa Senhora pode nos conceder isto.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 2/7/1970)

Impressoes sobre a Semana Santa

Para Dr. Plinio, a principal época do ano era a Semana Santa. Não apenas pela recordação, em si, da tragédia do Homem-Deus, morto e sepultado, mas também pelo ambiente salutar e santificante que dela emanava.

Na Sexta-feira Santa, a cerimônia que mais me tocava era esta: a cruz exposta numa espécie de mesa, com Nosso Senhor morto, e o povo fiel que passava para oscular-lhe os pés. Desfilavam aquelas pessoas às centenas. Nas catedrais, esse cortejo para a veneração da cruz era encabeçado pelo bispo, e foi durante uma dessas celebrações litúrgicas que contemplei, pela primeira vez, a simbólica beleza do báculo.

Estávamos na Igreja de Santa Efigênia (pois a Catedral da Sé ainda se achava inacabada), quando o velho Arcebispo D. Duarte entrou para a cerimônia, revestido dos trajes próprios aos ritos da Paixão: batina amplíssima, de um roxo quase violeta, prolongando-se numa grande cauda, levada por um ou dois caudatários, em geral seminaristas. Ia sem mitra, com uma cobertura na cabeça lembrando em algo o barrete dos doges venezianos. Não sei a razão dessa peça no paramento episcopal, mas o adornava de modo muito adequado.

Com todos os fiéis quietos, tendo já deixado um espaço aberto no corredor central para o prelado passar, este vinha caminhando sem sapatos, deixando ver as meias violáceas. Estava descalço em sinal de penitência, e ia como bispo diocesano, o primeiro, pedir perdão pelos seus próprios pecados e pelos do povo.

Essa cena causava uma impressão de realidade — e o era — de que, diante do trono de Deus, naquela hora, comparecia com o bispo a diocese, e cada um dos que estávamos ali, na pessoa do Pastor,  pedia perdão por seus pecados, responsáveis pela morte de Nosso Senhor Jesus Cristo. A liturgia começava a entoar um cântico que exprimia e corroborava esse sentimento, enquanto Dom Duarte, com ar grave e recolhido, em grande estilo se aproximava do Senhor morto para Lhe oscular os pés. Em seguida, saía pela sacristia, e tinha início a longa procissão de fiéis.

Ao presenciar essa cena, eu me rejubilava: “Ah! Esta é a Igreja Católica!”

A cidade se tornava austera e séria

Outros lindos aspectos das celebrações da Paixão me encantavam igualmente. Por exemplo, a transladação do Santíssimo, que havia sido consagrado, para o chamado monumento ou sepulcro.

Então, o celebrante — que podia ou não ser o próprio bispo — envolvia o cibório com uma capa da cor de luto e o conduzia ao seu destino, precedido pelos toques das matracas: “plec-plec, plec-plec, plec-plec, plec-plec”… Quer dizer, não havia mais música nem alegria. Era tudo tristeza e tudo pranto, por causa de nossos pecados, porque o Filho de Deus morrera. O cortejo se dirigia a um altar lateral, mais afastado, para que o maior espaço a ser percorrido pelo povo conferisse certa pompa e extensão à cerimônia.

Descia-se uma urna, na qual depositavam o Santíssimo, trancavam-na à chave e esta era entregue ao pároco. Até o Sábado Santo não havia mais comunhão naquela igreja, porque o Senhor estava  morto. Era um luto pesado, uma tristeza profunda.

O povo se dispersava silencioso e recolhido. Caminhavam todos para suas casas, naquela época antiga, ainda usando trajes escuros. Os homens se vestiam de preto, e as senhoras portavam sinais  de luto, faixas ou véus negros, etc. As próprias crianças se apresentavam com algo de preto. E assim, pelas ruas tranquilas da cidade, as pessoas voltavam para suas residências. Iam fazer a sua   refeição de jejum e abstinência, mantendo-se na piedosa e compungida quietude daquele dia de dores.

A cidade tornava-se tão austera, tão séria, que se tinha quase a impressão de que, quando ela voltasse ao normal, já estaríamos vivendo no Reino de Maria. Ou seja, naquela época histórica  prevista por São Luís Grignion de Montfort e outros santos, durante a qual a Santíssima Virgem ser á a Rainha dos Corações e da sociedade.

As alegrias da Ressurreição

Terminada a Sexta-Feira Santa, os espíritos se voltavam para as esperanças e as alegrias da Páscoa.

Certa vez, quis ver a cidade de São Paulo no seu conjunto — eu tinha uns 20 anos — festejando a Ressurreição. E a Igreja, naquele tempo, o fazia no Sábado de Aleluia, ao meio-dia. Acompanhado de um amigo, subi então até o último andar da torre do santuário Coração de Jesus, onde ficamos à espera do festivo momento.

Quando chegou meio-dia em ponto, ouvimos o timbre do bonito carrilhão da igreja que começava a tocar.

Depois do silêncio sacral e sepulcral da Semana Santa, ecoavam os repiques dos sinos. E como não havia quase arranha-céus naquela época, o som se propagava, trazendo aos nossos ouvidos os tangeres dos sinos das mais variadas igrejas, a diferentes distâncias, bimbalhando festivamente junto com o sino fortíssimo do Coração de Jesus. Era um júbilo, um triunfo pascal com grandeza bíblica.

Logo a alegria da Páscoa começava a se espalhar sobre a cidade. Soltavam-se rojões, e a molecada ia pelas ruas levando o judas para ser enforcado em árvores, em postes, espancado até cair e, finalmente, queimado.

Já nas casas de família, as mães acendiam velas bentas diante das imagens de Nosso Senhor e de Nossa Senhora, para celebrá-los, e reuniam as crianças para rezar.

Enfim, tinha-se a impressão de que até a natureza se rejubilava quando, ao meio-dia do Sábado Santo, soavam os sinos da Ressurreição. O Apóstolo diz esta palavra, que tudo resume: “Absorta est mors in victoria”. A morte foi tragada pela vitória!

Plinio Corrêa de Oliveira

As Catedrais: Símbolos do Paraíso

As Catedrais podem ser analisadas sob diversos pontos de vista. Comentando o excerto de uma obra do historiador Marcel Aubert, Dr. Plinio aponta o prisma mais elevado pelo qual elas podem ser consideradas.

Gostaria de comentar uma breve ficha tirada de Marcel Aubert(1), a qual trata a respeito das catedrais como sendo um símbolo do Paraíso.

Para bem iniciar esta explanação, antes de tudo, é preciso não considerar as catedrais apenas como um recinto fechado, onde se pode, ao abrigo das intempéries, prestar culto a Deus. Além desta finalidade material, a qual é evidentemente indispensável, as catedrais devem ser consideradas acima de tudo como um símbolo e, portanto, uma imagem e antegozo do Paraíso. Eu as considero verdadeiras obras-primas de simbolismo, nas quais tudo tem uma reversibilidade.

Jerusalém: prefigura da Igreja

Assim diz o autor: A catedral é figura da Cidade de Deus, da Jerusalém celeste, imagem do Paraíso(2).

Um dos aspectos do significado simbólico das catedrais examinado pelo autor está contido no fato de estas serem a casa de Deus, à semelhança do Paraíso Celeste, no qual Deus aguarda os homens, enquanto os que lá já estão O contemplam.

O que devemos compreender por Jerusalém? Jerusalém é a cidade santa do Antigo Testamento, uma representação material do que viria a ser no futuro a Igreja Católica, Apostólica e Romana, o Reino de Deus na Terra.

O povo eleito do Antigo Testamento era uma prefigura dos católicos batizados. Sendo Jerusalém a capital do povo eleito no Antigo Testamento, ela prefigurava, portanto, a Igreja Católica. Portanto, à Igreja Católica cabe o título de Jerusalém terrestre. Se bem que tal título possa ser aplicado a toda ordem civil quando conforme aos ensinamentos divinos.

Por conseguinte, a denominação “Jerusalém celeste” é aplicada à cidade de Deus, que é o Paraíso.

Simbologia do edifício sagrado

Continua a ficha:
As paredes laterais são imagens do Antigo e do Novo Testamento.

Os pilares e as colunas são os profetas e os apóstolos que sustentam a abóbada, a qual, por sua vez, representa Cristo, a sua chave.

Quão poucos são os que, ao entrar numa igreja, têm presente a ideia de que suas paredes laterais representam o Antigo e o Novo Testamento!

Como seria bom se ao avistar uma igreja as pessoas considerassem esta magnífica realidade de que em suas paredes estão representados o Antigo e o Novo Testamento, bem como em suas colunas os Profetas e os Apóstolos, sobre as quais se apoia a abóbada, imagem de Nosso Senhor Jesus Cristo, a chave da Igreja.

O esplendor dos pórticos

As janelas translúcidas que nos separam da tempestade e derramam sobre nós a claridade, são os doutores da Igreja.

O portal é a entrada do Paraíso, embelezada pelas imagens em pedra, pelos baixos-relevos pintados e dourados e pelos suntuosos batentes de bronze.

As portas das catedrais são, portanto, uma imagem das portas do Céu. Elas são, geralmente, feitas de carvalho trabalhado, e ornadas de bronze lavrado a fim de que seu esplendor participe de alguma forma da beleza do Portal Celeste.

As imagens dispostas em torno da porta da catedral devem constituir uma recordação de que um dia as portas do Paraíso se abrirão para nós, e assim vamos penetrar na glória de Deus, gozando da companhia dos bem-aventurados. Ao penetrarmos no pórtico da Jerusalém Celeste seremos recebidos pelo harmonioso canto dos Anjos à semelhança dos Doutores talhados em pedra que nos recebem no pórtico da Catedral.

Luz que dá beleza a todas as coisas

A casa de Deus deve ser iluminada pelos raios do sol resplandecente da caridade como o próprio Paraíso, porque Deus é a Luz e a luz dá beleza às coisas. Assim também se deve aumentar a iluminação interior da catedral, abrindo janelas tão grandes quanto possíveis, dos vértices das grandes arcadas às próprias abóbadas.

Sendo Deus a Luz, convém à catedral ser iluminada, não pela claridade comum do dia, mas pela luz matizada que filtra pelos vitrais, os quais devem ser tão grandes quanto for possível. Por isso, consistiu o grande desafio da arquitetura gótica fazer com que as janelas fossem cada vez maiores, sem prejuízo à estabilidade do edifício. Daí chegou-se a realizar um edifício como a “Sainte Chapelle” de Paris, verdadeiro escrínio cujas paredes são todas de vitrais. O que nela há de pedra são algumas esguias colunas que sustentam o teto; quanto ao mais, é toda feita de luz. De tal modo que ao penetrar nela tem-se a impressão de estar numa caixa de cristal, na qual as cores e a luz brincam formando desenhos maravilhosos, fazendo lembrar a eterna luz do Paraíso.

Penetrando na igreja com esperança das alegrias celestes

Como eu gostaria que esta ficha fosse publicada, para aos poucos as pessoas adquirirem o hábito de se recordar destas maravilhas sempre que entrassem numa catedral.

Ao penetrar no edifício sagrado deveríamos ter a seguinte convicção: “Agora transponho este pórtico; um dia penetrarei pelas portas do Céu, onde poderei ver os Profetas e os Doutores, tais como aqui os vejo representados nessas imagens de pedra. Lá serei inundado pela luz de Deus, assim como agora me banha esta luz que penetra por todos os lados deste templo santo”.

O fato de entrar numa igreja deve aumentar em nós a alegria e a esperança do grande triunfo que teremos no Céu. Quanto mais nesta Terra nos sintamos opressos, perseguidos ou odiados, tanto mais devemos voltar nossos olhos ao Céu e ansiar por ele. Lá, todas as misérias deverão acabar, cedendo lugar à perfeita alegria. No Céu não apenas gozaremos de todas as alegrias possíveis, mas também teremos algo indispensável para a perfeita alegria: a noção de que ela nunca acabará.

Se considerarmos uma pessoa no Céu, radiante de felicidade, à qual alguém prevenisse de que ela corre o risco de, passados alguns milhares de anos, perder tal felicidade, tendo de voltar à Terra, essa pessoa passaria estes milhares de anos com uma sombra de infelicidade, porque no Céu — tão mais deleitável do que a Terra —, a simples ideia de deixá-lo macularia a felicidade que nele se goza. Pois, quanto maior é o bem que se tem, tanto maior é o desejo de conservá-lo. Portanto, é elemento essencial à alegria celeste que ela seja eterna.

Este gáudio eterno espera a todos quanto forem fiéis nesta vida. No Paraíso Celeste, ao lado dos bem-aventurados, estaremos imersos num mar de felicidade, constituído antes de tudo pela contemplação de Deus face a face.

Esta é a esperança que devemos ter ao entrarmos no recinto sagrado de uma catedral.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 4/3/1974)

1) Marcel Aubert (1884 – 1962), historiador francês. Entre suas principais obras destacam-se: La Cathédrale de Senlis e La Catedral de Notre-Dame de Paris.
2) Não possuímos a citação exata da ficha usada por Dr. Plinio nessa ocasião.

Esplendor do equilíbrio

Interpretando falsamente o princípio de que a virtude está no meio, muitas pessoas chegam a defender os erros mais crassos, contrários à Doutrina Católica.
Dr. Plinio elucida sapiencialmente esse tema, com base na razão e apresentando belíssimos exemplos.

São Francisco de Sales, grande Doutor da Igreja, chegou a identificar o equilíbrio com a virtude, dizendo que a virtude está no meio. Ora, o meio é exatamente o equilíbrio entre dois extremos, a considerar as coisas do ponto de vista geométrico. Assim, se a virtude está no meio, chegamos à conclusão de que a verdade se encontra no equilíbrio. Portanto, não há razão para julgar o equilíbrio como sendo algo insípido, estúpido; nele deve estar a verdadeira sabedoria.

Noção de equilíbrio

Contudo, é preciso ver bem o que nas conotações da palavra “equilíbrio”, na linguagem brasileira, entra de fundamentalmente sem sabor, fazendo com que uma coisa tão eminente como o equilíbrio possa dar uma impressão tão desagradável.

O equilíbrio, afinal, o que é? É uma excelência das coisas por onde elas — nos seus aspectos contrários — se compensam, se harmonizam, de maneira tal que se reúnem em torno de uma nota suprema, a qual abarca uma porção de notas colaterais. Poderíamos dizer, por exemplo, que um edifício, com uma torre no centro e duas alas iguais de uma amplitude harmônica com o tamanho da torre — ou seja, quanto mais alta a torre, mais largas as alas —, tem equilíbrio. Essa ideia de equilíbrio abrange uma grande variedade de aspectos, e nós começamos a entrever através disso, de um modo mais vivencial, quanto o equilíbrio é uma coisa boa.

Entretanto, no Brasil se chama homem equilibrado, não aquele que tem uma ideia ou princípio central, em torno do qual ele traça a circunferência de todos os aspectos possíveis, mas um simplório que não tem nenhuma ideia central; e sempre que é atormentado por dois extremos opostos, o equilibrado se coloca simplesmente no meio-termo, pensando que com isso resolveu as coisas.

Por exemplo, entre um comunista e um fascista, o equilibrado seria um burguês. Entre um indivíduo que quer o divórcio e outro que deseja o amor livre, o equilibrado quereria um divórcio muito evoluído; entre um homem que é favor da alopatia e outro da homeopatia, o equilibrado gostaria de uma mistura sem sentido entre essas duas coisas incompatíveis. E daí para a frente.

Pensamento seletivo, ordenativo, vigoroso

Então, o verdadeiro equilíbrio não é uma mistura ininteligente de coisas incongruentes, mas a força de um pensamento central, com o leque das consequências que em todos os sentidos dele se podem tirar.

Assim, toda beleza é necessariamente equilibrada. Mas há certas formas de pulcritude nas quais o que brilha à primeira vista não é o equilíbrio, mas é quase o desequilíbrio.

Tomem a Catedral de São Basílio, em Moscou, por exemplo, com aquelas torres pequenas — encimadas por cúpulas em forma de cebola — que sobem com uma espécie de ascensão frenética para o céu: a nota daquilo é de um misticismo que parece não dar lugar ao bom senso e à razão. Em substância dá, mas parece que não. É uma nobre e pseudo unilateralidade, no fundo da qual existe um equilíbrio.

Encontraremos, assim, várias formas de beleza. Mas a forma de beleza francesa — sobretudo nos áureos tempos da França, na Catedral de Notre-Dame, por exemplo — é o equilíbrio. Mas é um equilíbrio cheio de gosto, de sabor, de classe, de estilo — não o equilíbrio abobado entre duas opiniões das quais, tratando-se irenisticamente, se obtém o meio-termo “pro bono pacis”(1) —, porque é um pensamento seletivo, ordenativo, forte, vigoroso, que agrupa em torno de si os respectivos elementos, e faz disso propriamente uma maravilha.

O equilíbrio francês cheio de sabores

Temos um exemplo neste panorama que vemos aqui. Eu o considero de uma alta categoria. Onde está a beleza do quadro que contemplamos?

Analisem elemento por elemento. A grama é de um verde-esmeralda que nos nossos trópicos não se encontra. No meio da grama, a coisa mais comum do mundo: um caminho inteiramente reto. Bem no fundo, um castelo.

O que tem esse castelo propriamente de maravilhoso? Na fachada, não se vê uma estátua e quase nenhum ornato. Não se nota no castelo nada que deslumbre. Não é uma construção cara; custa preço alto apenas porque é grande, tem muito tijolo, material com que se faz qualquer casa. Entretanto, eu acho que seria um absurdo não reconhecer a isto a nota do equilíbrio, do maravilhoso. Mas qual é o maravilhoso? É o maravilhoso do equilíbrio, da coisa bem pensada, bem estudada, e feita com categoria: aqui está o esplendor do equilíbrio. E é o equilíbrio francês, cheio de toda espécie de sabores. Observem primeiramente o prédio, depois o resto.

A graça dominando a força

O prédio é composto de uma espécie de torreão central, que não é uma coisa “bojudona”, fazendo assim o papel de um tórax, de um abdômen, perto do qual o resto são duas asinhas. Pelo contrário: é uma coisa fininha, esguia, terminada, para acentuar a ideia do fino, por um teto pontudo. Mais ainda, de um lado e de outro há duas chaminés altas que realçam ainda mais a ideia do pontudo, porque elas terminam em ponta; e no alto uma espécie de campanariozinho — um mirantezinho, uma pequena cúpula — suportado por coluninhas. E essa ponta termina numa janela com uma ponta, tendo do lado duas pontas. Essa parte central do prédio é toda leve, esguia, fininha; mas está de tal maneira no centro, é tão bem pensada, que ela não faz o papel de raquítica, de nenhum modo, em relação aos dois extremos atarracadões e bojudos que se encontram num ponto e no outro.

O governo, a linha “rectrix” do prédio está bem no centro. É a graça dominando a força, Jacó reprimindo Esaú, as coisas pesadas coordenadas em torno da leve.

Não sei se percebem o alto pensamento, a afirmação da superioridade do espírito que há por detrás disso: é o triunfo da graça sobre a força, a faculdade ordenante da inteligência sobre as coisas da matéria.

Alta categoria

Entretanto este contraste entre a parte central e os dois extremos é equilibrado — porque todo contraste equilibrado deve possuir termos intermediários harmônicos — por dois corpos de edifícios iguais, nem tão esguios nem tão bojudos, mas que ficam entre uma coisa e outra, preparando a transição. As fachadas laterais são mais largas que a central, os cimos mais esparramados e não terminam em ponta, mas em cones truncados. No alto, há uma janela só no centro, e três janelas nas partes laterais.

Usa-se nas gerações mais novas uma expressão um pouco popular, mas que às vezes tem uma certa força de significado: “Que coisa bem craniada!” Porque é preciso ter crânio para fazer isso.

Esse castelo não foi feito por bobo, nem para bobo, porque é muito discreto. É como quem diz: “Se tu não me percebes, eu não te digo. Sou para quem tem quilate; diante de mim há mata-burro.” Ou então: “Se tu me julgas banal, eu te julgo trivial. Os eleitos, os seletos venham a mim. Eu sou feito para poucos.”

Vemos que tudo isso é de alta categoria, realizado por cabeça superiormente orientada.

O gênio francês

Nos extremos, observamos a coisa curiosa. Esses corpos de edifícios são atarracadões; não tanto atarracados porque possuem três janelas — porque os laterais também têm —, mas devido ao espaço maior entre as janelas, e, sobretudo, pelo teto pesadão e grandão, que constitui uma tampona. Mas o muito pesadão horrifica o gênio francês, e por causa disso, no meio do pesadão há algumas coisas que o equilibram.

Imaginem que pesadelo seria essa tampa grande se não houvesse essas janelinhas pequenas em cima, redondinhas! Como elas dão um sorriso que compensa a carranca dessa imensidade de ardósia do teto! Por detrás, as chaminezinhas e os campanariozinhos evitam que isto tome a aparência de um calcanhar achatando a ala do castelo. Apesar de tudo, isso é pesadão, a parte intermédia é meio leve, e o centro é levíssimo.

A altivez do castelo está no que ele tem de mais gracioso. É como quem diz: “Forte eu sou, mas, sobretudo, eu me prezo de ser inteligente. Em última análise, eu sou completo, porque tenho tudo. Tenho muita força, mas tanta inteligência que, em mim, a inteligência domina a força. Eu sou equilibrado”.

Isso é um equilíbrio de primeira categoria, é degustação, porque se degusta isso como um prato saboroso! Isso é turismo! Viajar pela Europa quer dizer ir percebendo essas coisas. Não basta ouvir o que um guia fala, mas é preciso ver o que o artista diz, o que o ambiente que inspirou esse artista tinha a sofreguidão de contemplar.

Vemos aqui uma aplicação da noção de equilíbrio. Quando São Francisco de Sales afirma que no meio está a virtude, pensem nesse torreãozinho e encontrarão a explicação. Não é um equilíbrio sensaborão, mas sim cheio de sal; é o gênio francês.

Esse gênio francês, muito discretamente, se faz sentir noutra coisa: é o quadro. O castelo é, talvez, um pouco discreto demais. Então, ele é realçado pela perspectiva: um grande parque. Ele é tão simples nas suas linhas e nos seus enfeites que, se houvesse canteiros com muitas flores e esguichos, ele ficava pobre; então, ele tem um simples, mas esplêndido tapete de esmeralda para lhe servir de apresentação, e arvoredos formando, um pouco longe dele, moldura. Dir-se-ia que ele sai de dentro de um mundo de delícias e de mistérios que essas árvores encobrem; ou a clareza e a lógica cercadas de imponderáveis. Outra forma de equilíbrio. Eu acho isso maravilhoso.

Perceber essas maravilhas é um dos prazeres da vida

Os caçadores! Notem a posição deles! Tenho a impressão de que é uma fotografia tirada espontaneamente, mas a pessoa que fotografou o fez tão bem, que se um encenador devesse colocar esses caçadores numa posição bonita, ele os poria assim. Querem uma coisa mais sem graça do que, por exemplo, todos andando na mesma linha? Estragaria o quadro. Ou um cavaleiro aqui, outro ali, outro lá, outro acolá, etc., seis manchas de vermelho, sem sentido… Aqui não. Há um misto de distância e proximidade, fantasia e ordem dentro da distribuição deles, que faz com que sejam deliciosos de ver.

Observem, por outro lado, o estilo. Os caçadores estão parados, tranquilos, de uma tranquilidade pronta para a ação. E a ideia da efervescência da caçada não é dada pelos homens, mas pela cachorrada: um ferver de cães famintos, dispostos para correr. E os caçadores sólidos, mas elegantes — porque são homens elegantes —, montados em cavalos que não têm nada de espetacular, mas espetacularmente proporcionados ao conjunto. Com toda a distância psíquica(2), os homens se preparam para uma caçada que vai ser feroz, por vales e por montes, tocando cornetas etc.; a “demarragem” é equilibrada.

Não é verdade que para degustar um dos prazeres da vida, que tornam a existência humana digna de ser cristãmente vivida, é preciso perceber essas coisas? Mas perceber com o rumo ao Céu.

Reflexo da Igreja Católica

Esses valores de espírito são assim porque essa civilização foi cristã. Porque há o precioso Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, a graça, o Batismo, a Igreja Católica dentro disso. Isso é, no fundo, um reflexo da Igreja Católica. Se não fossem as virtudes cristãs, isto não teria sido assim.

Então não é um puro gáudio dos olhos, nem da inteligência que se tira daí, mas acima disso é um gáudio superior do espírito, considerando uma ordem transcendente de coisas, onde existe um Deus pessoal, sobrenatural, que nós contemplaremos face a face, e no qual todas as formas desse equilíbrio se realizam de um modo tal que isto é uma imagem do Criador. Mas Deus é tão mais do que isto, que Ele até não é nem um pouco assim. Isto se encontra n’Ele de um modo insondável e incapaz de ser imaginado por qualquer criatura. Assim é a Terra como a bênção de Deus a fez, como a civilização cristã a modelou. Esta é a figura do Céu para o qual nós vamos.

Temos aqui um termo religioso para uma meditação sobre uma coisa profana.

Alguém me diria: “Dr. Plinio, falta um cruzeiro diante desse castelo para ele ter a nota cristã.” Eu responderia: Em todos os lugares onde se queira colocar um cruzeiro, eu exulto. Mas dizer que a coisa fica falha sem cruzeiro, não concordo. O espírito católico está aí até sem o cruzeiro. Esse castelo é católico em si; tal equilíbrio sem a graça não se consegue. É uma tradição constituída por homens que em certo momento receberam a graça e tiveram esses valores. Aqui está o equilíbrio católico.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 12/5/1969)

1) Do latim: para o bem da paz.
2) Expressão utilizada por Dr. Plinio para significar uma calma fundamental, temperante, que confere ao homem a capacidade de tomar distância dos acontecimentos que o cercam.

Instintos e amor ao maravilhoso

O homem possui instintos nos quais, devido ao pecado original, há algo de desordenado. Para se conseguir a ordenação natural dos instintos é necessária uma espécie de educação e propensão pelo maravilhoso. Essa é propriamente a via pela qual as almas caminham no amor de Deus.

 

Por ser um animal racional, o homem tem dois jogos de instintos: os do corpo e os da alma. Os instintos da alma são muito mais nobres do que os do corpo, embora estes exerçam uma influência sobre aqueles. Basta ver, por exemplo, o instinto de conservação, como ele existe no bicho e no homem.

Os instintos do corpo se conjugam com os da alma

Ao ter notícia de uma coisa que lhe é nociva, o bicho foge ou avança. Isso é muito menos nobre do que faz o homem que conhece por que aquilo é nocivo, e estuda o modo de avançar ou de recuar.

No homem, por causa de nossa natureza espiritual e animal, os instintos do corpo se conjugam com os da alma formando um movimento harmônico, mas composto de elementos diversos. Não é, portanto, como se fosse um só tipo de instinto.

Comecemos por estudar os instintos do corpo para depois analisar o efeito disso nos da alma. Em seguida, consideraremos a relação deles com a temperança e a intemperança.

Conosco passa-se um fenômeno que com os animais não se dá. Por não ter sido atingido pelo pecado original, o animal tem instintos sempre harmônicos. Não se conhece um animal – exceto se estiver louco – que proceda de um modo contrário aos seus instintos. Estes são sempre equilibrados e, quase se diria, mecânicos, enquanto que no homem os instintos são desequilibrados e difíceis.

Tomemos como exemplo, num homem, a tendência ao repouso. Esse instinto existe de maneira diferente nos diversos corpos humanos, de tal maneira a se poder dizer que em cada homem há uma determinada peculiaridade, por onde o modo de repousar nunca se repetiu nem se repetirá em nenhum outro homem, o que corresponde às apetências e, neste sentido, aos instintos de seu corpo, como também, por conexão, aos instintos da alma.

Conheci um indivíduo com uma natureza, por alguns aspectos, tão plácida que ele não se movia durante o sono a noite inteira. Ele me disse ter feito várias experiências de, antes de se deitar, à noite, pegar uma parte do lençol, formar um tufo e segurar na mão. Na manhã seguinte, quando ele acordava, o mesmo tufo estava intacto. Quem o conheceu notava isso muito presente em várias maneiras de ser dele. Enquanto ele dormia, era um instinto animal que estava imperando, exclusivamente. Mas algo disso correspondia à alma, por onde ele levava uma vida muito calma, tranquila, metódica, com modos e gestos pacatos. Vê-se que o corpo tem um certo jogo de instintos diferente, mas condicionado ao da alma.

Repressão ou estímulo a certas apetências

Em função disso, algumas coisas podem causar bem ao instinto do corpo porque o estimulam, e outras por lhe fazerem contrapeso servindo de corretivo. Por exemplo, é possível que um homem exageradamente fogoso, por instinto, seja propenso a frequentar ambientes com penumbras, a tomar muito sorvete, a vestir-se com colarinho bastante largo. Por outro lado, alguém muito indolente pode receber uma “chicotada” tomando determinado tipo de bebida. Assim, para um, o instinto pede a penumbra, para outro, o licor.

Entretanto é possível acontecer que, para corrigir uma carência ou estimular alguma apetência, o instinto induza a pessoa a um exagero, o qual pode levá-la à intemperança, ou já constitua, de si, uma ponta de intemperança.

Posso admitir, por exemplo, que uma pessoa muito débil, obrigada a enfrentar condições de vida difíceis, sinta-se muito estimulada tomando “Cointreau”. Ora, pode-se conceber que um homem, sentindo-se dignificado e mais varonil depois de ter tomado um gole de “Cointreau”, fique viciado nesse licor, a partir disso. Não se trata apenas do bêbado pelo gosto de beber, mas é por uma razão mais complexa, mais delicada: um bom movimento por onde ele procura completar-se no “Cointreau”. Esse bom movimento leva-o a exagerar a dose.

Temos assim, ao contrário do animal, instintos nos quais sempre alguma coisa é desordenada e pede uma repressão ou um estímulo. Por conseguinte, o recurso a determinados agentes para reprimir ou estimular determinadas apetências dá ao homem um deleite no uso desses agentes, que o gosto pode conduzi-lo ao exagero.

Sem dúvida, muitas vezes o indivíduo adquire um vício daquilo que sua natureza não precisa. Por exemplo, numa roda de meninos fica bem fumar, e ele é o único que não fuma. Então, começa a fumar. A partir desse momento, ele se habitua ao deleite proporcionado pelo cigarro, para o qual, até então, não tinha apetência. Trata-se, portanto, de uma pura degustação a que ele se habituou inutilmente por um ato de servidão ao ambiente onde estava. Nesse caso não notamos nada de nobre na origem desse vício.

Contudo, creio que em muitos casos, quando se fala do mero bêbado, talvez se pudesse afirmar a existência de algo razoável na origem da bebedeira; mas, por se ter destemperado e desfeito o elemento razoável, entrou o mal.

Há instintos mais atingidos pelo pecado original

Isso tem o seu efeito prático: se vemos que um homem caiu na intemperança por um motivo originariamente bom, é uma ajuda para ele explicar-lhe o que se passou. Não é, portanto, a pura descompostura: “Seu bêbado, seu cretino, seu nojento!”, mas sim um auxílio.

Qual a vantagem dessa ajuda para ele?

Como percebe que nem tudo quanto estão recriminando nele é mau, ele guarda uma espécie de reserva contra a descompostura que está levando, como quem diz: “Vocês não compreendem bem, mas isso é bom por um lado. Logo, não posso aceitar essa descompostura por inteiro.” E por não poder aceitá-la inteiramente, ele toma isso como pretexto para continuar no seu vício.

Quem o ajude, deve tirar-lhe o pretexto dizendo: “Por esse lado, isso seria bom; mas você se desviou e por isso chegou a tal ponto…”

Acontece que em nós, seres humanos, há um ou mais instintos especialmente atingidos pelo pecado original. À medida que o homem peca nesses instintos, vai desequilibrando todos os outros, por via de consequência.

O jogo temperamental do homem é como um móbile

Há uma espécie de ornato de origem chinesa, chamado móbile, que se pendura nos lustres, constituído de um sistema de pequenas alavancas e hastezinhas, feitas com material delicado imitando cristal. Esse adorno é calculado de tal maneira que um vento, batendo num pontinho qualquer desse sistema de alavancas, move todas as hastes e inicia-se uma “dança” sempre diferente da anterior.

O jogo temperamental de um homem é como um móbile. Se em algum ponto ele consentiu que fosse puxado, todas aquelas partes do móbile começam a se mexer. E, por um consentimento a um instinto desordenado, entra a ciranda de uma espécie de desequilíbrio total.

Dizer que, ao contrário, a experiência demonstra haver pessoas equilibradíssimas em certos pontos, mas desequilibradas em outros, não corresponde à realidade. Podem existir alguns pontos menos desequilibrados do que outros; mas, onde se instalou um desequilíbrio, o sistema corrosivo de todos os desequilíbrios começa a estalar. E, à maneira de uma infecção que se instala em um membro, mais cedo ou mais tarde, se não é debelada, acaba gangrenando todo o corpo.

O problema é ter a integridade, eu quase diria, a pureza de não consentir em nada. Porque num ponto onde se consinta num desequilíbrio, todo o mecanismo se altera. Então, começa uma batalha para conservar o equilíbrio aqui, lá, acolá. Seria mais ou menos como um homem puxando um móbile, e eu querendo segurar com a mão todas as outras partes para não se moverem. Não vai! Enquanto estiver um homem mexendo ali, não há mão que segure todas as outras hastes.

Então, ou o indivíduo está num estado em que exerce sobre os instintos uma vigilância completa, ou, mais cedo ou mais tarde, ele começa a rolar para intemperanças progressivas que podem tomar, e muitas vezes tomam, proporções assustadoras.

Equilíbrio implícito dos instintos

Diante dessa descrição a pessoa se sente mais ou menos desconcertada e diz: “Não seguro isso. É desejável segurar e é uma miséria que eu não o faça; reconheço ter culpa em não segurar, mas não me peçam isso porque é um trabalho tão heroico, hercúleo e constante, que não tenho forças.”

Ora, a alma fortemente habituada a considerar as belezas metafísicas, trans-esféricas(1), voltada fortemente para o Absoluto e o sobrenatural tem uma atitude – instintiva também – de oposição aos desequilíbrios. Isso oferece ao indivíduo a possibilidade de não fazer de cada repressão ao instinto uma caçada consciente, mas lhe dá uma atitude de equilíbrio implícito, que é o primeiro equilíbrio diante do primeiro desequilíbrio. Dou um exemplo:

Imagine um homem viajando a bordo de um navio que está balançando muito. Se ele tem seu jogo de instintos bem feito, mesmo estando em pé e conversando com alguém sobre uma notícia no jornal, é só o navio começar a se mover que seu corpo vai fazendo contrapeso sem ele estar pensando nisso.

Nessa situação, vindo um movimento mais forte, o qual lhe exija mais atenção, ele já está muito mais adiantado na repressão ao tombo do que um homem que só se dará conta da sacudida do navio quando quase tiver ido para o chão. Isso porque, neste segundo caso, a tendência dos instintos para o equilíbrio é muito frouxa, está habitualmente como uma trouxa de carga. Resultado: até se mobilizar, ele não aguenta.

Assim, o equilíbrio moral e o psicológico comportam essa posição. Um é o homem dotado de senso do maravilhoso, diante de quem tudo que o desequilibra instintivamente toma essa postura; e ele tem uma prevenção contra o desequilíbrio mais forte e sério, que é uma condição de vitória. Pelo contrário, o homem largado, não voltado para o maravilhoso, tem uma condição prévia de preguiça para se entregar e, portanto, resistirá mal à força do jogo dos instintos.

Outro elemento a considerar – uma coisa muito mais adquirida do que inata – é a boa educação. Ao se tornar instintiva, a boa educação leva o indivíduo a notar logo quando não está agradando e, espontaneamente, tomar uma posição acertada diante da pessoa com quem ele trata para agradá-la. Pelo contrário, quem não tem essa formação, vai desagradando, cometendo gafes, fazendo besteiras, e se lhe disserem:

– Preste atenção no que você disse!

Ele responde:

– Não consigo! Ou trato do tema de que estou falando, ou cuido de suas “bonequices”, do modo de pegar os talheres, etc. Tratar de uma coisa séria e, ao mesmo tempo, manusear com distinção e elegância uma xicarazinha de café ou cortar bem um bife, não faço. Não é possível.

Mas por quê? Porque o jogo dos instintos não foi bem afivelado. Em última análise, porque o gosto do maravilhoso, do transcendental, do absoluto não dominou a alma dele. Se dominar, tudo isso, por um movimento espontâneo, vai tomando posição.

Ordenação natural dos instintos e senso do maravilhoso

Nós deveríamos conhecer o jogo dos nossos próprios instintos a partir da posse habitual, do interesse maior, do gosto pelo maravilhoso.

Quando a alma se dá ao maravilhoso, o efeito próprio dele é fazer voltar a apetência de todos os instintos – que de algum modo se satisfazem no maravilhoso – para esse ponto maravilhoso. De maneira que só naquilo que os instintos têm de baixo é que são incompatíveis com o maravilhoso. Em tudo o mais não são.

Tomem, por exemplo, um menino com o senso do maravilhoso muito desenvolvido e que, tendo recebido objetos feitos de madrepérola, está brincando encantadíssimo. Se alguém quiser puxar com ele uma conversa muito banal sobre mecânica, isso não fará mal à sua alma porque ele está tão voltado para coisas mais altas que poderá ouvir aquela conversa por amabilidade, por afabilidade, e até pôr duas ou três perguntas sobre o assunto, mas seu coração não estará naquilo. Se lhe sugerirem renunciar a brincar com suas madrepérolas para assistir a uma corrida de automóveis, aquela torcida pela velocidade não lhe diz nada, porque ele prefere o gosto de ver as madrepérolas.

Isso porque, ao conhecer algo muito maravilhoso, somos levados a amar, por conexão, ou estar abertos para uma série de outras coisas maravilhosas que não conhecemos. É um universo. Essas maravilhas de tal maneira desdobram nossas apetências harmônica e ordenadamente, que a tendência para as coisas mais baixas decai muito.

É uma ordenação natural dos instintos, mas que vem do amor ao maravilhoso. Essa espécie de educação e propensão pelo maravilhoso, antes de tudo pelo maravilhoso moral, mas também pelo artístico e por todas as formas de maravilhoso, por assim dizer, chumbando o homem no maravilhoso, é propriamente a via pela qual as almas caminham no amor de Deus.                v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 9/4/1986)

Revista Dr Plinio 240 (Março de 2018)

 

1) Relativo a “transesfera”. Termo criado por Dr. Plinio para significar que, acima das realidades visíveis, existem as invisíveis. As primeiras constituem a esfera, ou seja, o universo material; e as invisíveis, a transesfera.

 

Considerações sobre o Brasil Império – I

O reinado de Dom Pedro I, príncipe romântico, impulsivo, tumultuoso e inconstante, inquietou e deslumbrou pacatos brasileiros, desorientou combativos portugueses, deixando um sulco na alma e na formação psicológica do Brasil

 

Ao fazer uma exposição sobre a História do Brasil, se eu fosse começar por mencionar as capitanias, os governadores, pondo num quadro-negro a lista deles todos, datas em que tomaram posse e deixaram seus cargos, a história das bandeiras, era muito pouco provável que despertasse a apetência de meus ouvintes.

O verdadeiro numa formação intelectual e, sobretudo, espiritual é alargar o campo do interesse, de maneira que os ouvintes tenham amplos horizontes. Não ficar tratando como especialista de um tema, por exemplo, de que doença morreu Fernão Dias Pais Leme. Não sou médico, nem contemporâneo dele, não me interessa saber do que ele faleceu, isso não é tema para mim. Mas alargar os horizontes, isto sim é formação.

Dois modos tipicamente brasileiros de interessar-se pela História

Nas anteriores reuniões sobre História do Brasil fui jogando no ar dados com alguma conexão entre si, mais ou menos como um piloto a bordo de um navio que, entrando num porto, vai atirando sondas para saber por onde sua embarcação deve rumar. Fui lançando sondas para ver quais eram os temas que interessavam mais. E acabei percebendo que um assunto que interessa muito ao feitio do nosso povo e, aliás, corresponde à mentalidade e ao ambiente brasileiro diz respeito à seguinte temática:

Cada chefe de Estado que passa é uma figura; ele governa e pode-se fazer a história do seu governo. O governo dele é o conjunto de atos de caráter político, diplomático, econômico, administrativo com os quais ele dirigiu o Estado brasileiro durante certo período, seja um monarca, seja um presidente da República, seja um ditador. Esta é uma faixa na qual se pode estudar a História de um povo.

Mas há outra faixa que me parece muito mais brasileira. Um chefe de Estado consegue ou não projetar a sua figura aos olhos do povo, de maneira a ser uma personalidade que marque por sua presença a vida psicológica, intelectual, afetiva do povo. Se ele consegue isto, o período de governo dele é uma era na História. E quando ele sai, o colorido da História muda.

Tem pouco a ver com a diplomacia, as finanças, a guerra e tudo mais. É a apresentação e a ação que toda pessoa exerce sobre outra quando estão juntas.

Tomem dois homens num gabinete dentário, por exemplo, esperando a hora de serem atendidos. Eles não se conhecem, olham-se vagamente e um não se interessa pelo outro, se rejeitam. Dir-se-á que não exerceram influência um sobre o outro. Não é verdade. Naquela mútua rejeição cada um afirmou alguma coisa de si que o outro recusa. E naquilo eles se acentuam em alguma coisa.

Todo contato humano exerce uma influência afirmativa ou negativa. Mesmo quando essa influência é neutra, ou seja, fecha o guichê, ainda aí há uma afirmação.

Dom Pedro I, um verdadeiro herói de romance

Um chefe de Estado tem sua presença muito mais realçada do que um particular. Então, pergunta-se: essa presença não exerce um efeito sobre toda a nação? Exerce. Qual foi o efeito pessoal de Dom Pedro I? E o de Dom Pedro II? Como eram eles? Como o Brasil os recebeu? Como foram os primeiros presidentes da República Velha? São temas de que se poderia eventualmente tratar. Parece-me que nesta faixa interessaria muito mais do que o estudo de finanças, por exemplo. Então, vamos expor um pouco sobre isso.

Dom Pedro I era um príncipe romântico por excelência. A Europa estava sob o signo do romantismo, do qual fazia parte uma sentimentalidade opulenta, ligada a um gosto pela aventura e a uma certa ponta de heroísmo pessoal. Sem isso não se era um verdadeiro herói de romance.

Modelado pela época, Dom Pedro I foi um verdadeiro herói de romance. Os heróis de romance têm muito de romance e pouco de herói. Eles não merecem ser chamados heróis, a não ser num certo sentido da palavra, porque aquilo não é heroísmo. Satisfazer seus impulsos não é heroísmo. Dirigi-los segundo a Lei de Deus, isso é o heroísmo!

Ele era um homem eminentemente impulsivo, e toda a sua vida, que poderia ter sido uma série de êxitos brilhantes, foi uma sucessão de fracassos. Porém, esses fracassos foram brilhantes, porque ele conduzia suas derrocadas com a virtuosidade de um herói de teatro. Essa teatralidade fez dele uma pessoa que inquietou os pacatos brasileiros, mas um pouco os deslumbrou. Agitou os portugueses de então – pouco pacatos e muito combativos –, mas os desorientou. Assim, ele marcou a fundo as duas nações.

Dom Pedro I era um homem, em certo sentido da palavra, brilhante. Muito vistoso, com muita vitalidade, tinha um todo verdadeiramente aristocrático que ele conduzia com ideias democráticas e acessos de absolutismo, dependendo da veneta dele. Ele era fundamentalmente “veneteiro”.

Uma “Commonwealth” luso-brasileira

O que teria sido o êxito de Dom Pedro I? Se considerarmos o assunto do ponto de vista meramente da ambição pessoal, na situação em que ele estava como homem ambicioso, o que poderia ter feito?

Ele declarou a independência do Brasil e o fato ficou consumado. A partir desse momento ele rachou os Estados do pai dele, que eram muito amplos e compreendiam: Angola, Moçambique, Guiné e outras possessões na Índia, o que constituía um império muito vasto. Mas a maior esmeralda ou rubi desse império caiu da coroa no momento em que o Brasil se separou de Portugal.

Com efeito, quando se separou, o Brasil deixou de ser colônia para se tornar reino unido a Portugal. O que vem a ser um reino unido?

Antigamente, os reis de Portugal recebiam este título: Rei de Portugal e dos Algarves. Algarves é a parte sul de Portugal, assim chamada por causa do sentido de uma palavra moura “algaribe”, que designava terras onde habitavam mouros. Como a dinastia portuguesa conquistou os Algarves para Portugal, o monarca ficou sendo Rei de Portugal e dos Algarves. O Algarve não ficou uma colônia, mas um reino bem menor do que Portugal, com suas leis, seus costumes próprios, como hoje em dia são a Inglaterra e a Escócia. A Escócia não é uma colônia da Inglaterra, é um reino irmão geminado com ela, o qual tem seus hábitos, estilos, sua autonomia, embora constitua um todo com a Inglaterra.

O Rei de Portugal, Dom João VI, tinha declarado o Brasil reino unido a Portugal. Esse reino foi separado por Dom Pedro I e declarado Império. Mas não estava dito que o imperador do novo Império não pudesse herdar a coroa de Portugal; nem que, separando uma monarquia da outra, Dom Pedro I não pudesse herdar a velha monarquia e reconduzir à união. A meu ver, se ele olhasse para sua ambição pessoal, a jogada inteligente dele seria levar as coisas de maneira a sossegar os brasileiros quanto à animosidade deles contra os portugueses. Assim, quando morresse Dom João VI, Dom Pedro I deveria tentar reunir os dois reinos.

Nessas circunstâncias, ele teria uma linda tarefa para executar que corresponde a um problema muito bonito a resolver. O mundo português do lado de lá do Atlântico tem o pequeno peso de uma economia metropolitana e de um território também pequenos, mas o peso enorme de uma História gloriosa, de uma longa tradição, de uma ligação afetiva muito grande com o Brasil, além do peso considerável de todo o império colonial que Portugal ainda possuía, e com o qual o Brasil perdeu o nexo quando se tornou independente. Não seria inteligente ter proposto aos brasileiros e aos portugueses uma “Common­wealth”, à maneira da Inglaterra, com todos esses Estados? Era evidente que o Brasil ficaria tão grande que, em certo momento, não seria mais governável a partir de Lisboa.

É como o Canadá e a Inglaterra. O Canadá não é governável a partir da Inglaterra. Os ingleses tiveram o bom senso de ir dando uma certa autonomia ao Canadá, para não pesar demais num cetro que acabaria se quebrando. Fizeram um regime um pouco parecido com a velha monarquia austro-húngara, em que os imperadores da Áustria eram reis da Hungria, da Checoslováquia, duques de tal e tal lugar na atual Iugoslávia. Tinham todas essas coroas e iam tocando essa política juntos.

Fracassos de Dom Pedro I

Os reis de Portugal tinham pensado em transferir a sede da monarquia portuguesa para o Pará e fazer uma monarquia amazônica, a pouca distância de Lisboa, portanto governável meio de Lisboa e meio do Pará e, através deste, exercer sua influência sobre todo o Brasil. A meu ver – se consultasse a ambição dele – Dom Pedro I deveria ter dirigido sua política no sentido de constituir uma monarquia bipolar: Pará-Lisboa. E quando os meios de comunicação fossem mais rápidos, passar o governo ao Rio de Janeiro. Mas esperar e deixar maturar a história. Ele não fez isso. Chegou ao Brasil, brigou com os brasileiros, foi para Portugal, abriu uma questão e brigou com os portugueses. Acabou morrendo prematuramente tuberculoso em Portugal, vítima da doença de que os heróis de romance achavam bonito morrer.

Como se deu isso? Ele declarou a independência, foi coroado e entronizado como Imperador do Brasil. Aliás, a coroa dele é bonita e está no Museu de Petrópolis.

Ele recebeu uma monarquia absoluta, como vigorava em Portugal. Entretanto, começou um movimento para transformá-la em monarquia parlamentar, com a convocação de um Parlamento e uma Constituição que limitasse os poderes dele.

O que fez Dom Pedro I? Disse que sim, mas com uma condição: a Constituição seria concedida por ele, que inauguraria o Parlamento. Mas quando ele quisesse fecharia o Parlamento e revogaria a Constituição.

Compreende-se que essa hipótese de nenhum modo agradaria os liberais, pois aquela era uma liberdade condicional. Na hora em que o Imperador franzisse a sobrancelha, cessaria a liberdade. Disseram-lhe, então, que não aceitavam, e saiu daí uma tensão medonha que acabou dando em sua partida para Portugal, porque ele não podia mais governar o Brasil.

Guerra entre absolutistas e liberais

Dom Pedro I embarcou num navio para Portugal com a sua segunda esposa, Dona Amélia de Leuchtenberg, e com a filha que ele tivera da Marquesa de Santos, a Duquesa de Goiás.

Chegando a Portugal, encontrou a seguinte situação: Dom Miguel, irmão mais novo de Dom Pedro I, tinha se candidatado ao trono português. Morreu Dom João VI, Dom Pedro I tornara-se Imperador do Brasil e se descolara de Portugal. Logo, argumentava Dom Miguel, uma vez que ele traíra a nação, separando dela uma parte, não tinha mais direito a ser Rei de Portugal. E afirmava: “O rei sou eu!” Dom Pedro I dizia o contrário: “Eu não renunciei, e agora que deixei o Brasil quero governar aqui em Portugal!”

A isso somava-se uma complicação de caráter ideológico: também os monarquistas portugueses estavam divididos pela mesma questão que dividira as opiniões no Brasil. Aliás, era a grande questão daquele tempo: saber se uma monarquia deveria ser absoluta, à maneira do “Ancien Régime”, ou parlamentar, como vigorou após a Revolução Francesa.

Os partidários de Dom Miguel eram monarquistas absolutistas, enquanto os de Dom Pedro I eram a favor da monarquia parlamentar. Ele que no Brasil tinha sustentado o princípio da monarquia absoluta, com o direito de fechar o Parlamento quando quisesse, em Portugal chefiou o parido liberal.

A guerra entre esses dois partidos dividiu Portugal a fundo. Quase todas as boas famílias de Portugal tiveram antepassados lutando ou do lado dos “miguelistas”, ou de Dom Pedro I, ou de sua filha, Dona Maria da Glória, a quem ele deixou os direitos quando morreu.

Morto Dom Pedro I, sua imagem apagou-se na recordação dos brasileiros como fato político, mas permaneceu como fato lendário-histórico. E ficou como a de um príncipe tumultuoso e inconstante.

Muito curiosamente veio parar em mãos de minha família uma espada pertencente aos partidários de Dona Maria da Glória, filha de Dom Pedro I. Era uma espada em forma ligeiramente curva à maneira das espadas turcas, em cuja copa estava esculpida em marfim uma cabeça de turco, com turbante e tudo. Na espada vinham gravados os dizeres: “Viva Dona Maria I”. Era, portanto, uma arma com a qual tinha combatido algum homem graduado, provavelmente nobre – a julgar pelo tipo da espada –, a serviço de Dona Maria I. Quer dizer, a favor da causa constitucionalista.

Infelizmente, quando se dividiram os bens de minha família, isso ficou com outro ramo e não sei que fim levou. Assim, não pude reter essa espada que era uma curiosidade.

Como o voo aloucado de uma arara

Apesar de tudo, há alguns lances brilhantes da vida de Dom Pedro I, como o casamento dele com a Princesa Leopoldina d’Áustria, a Proclamação da Independência do Brasil. Além disso, o fato de ele ser um homem cheio de repentes e aventuras, e o próprio caso da Marquesa de Santos, deu um certo colorido à sua vida – um colorido vivaz, mas nem sempre limpo… Trata-se de uma pessoa cuja biografia se compreende, por exemplo, que uma revista publique porque é uma coisa interessante.

No total, a recordação dos brasileiros é positiva. Vê-se, por exemplo, uma coisa curiosa em Brasília, a cidade moderna projetada por Oscar Niemeyer. Na sala do Presidente da República – que é um recinto inteiramente do estilo da cidade –, atrás da cadeira de despacho dele, colocaram um quadro representando Dom Pedro I como Imperador do Brasil, com todas as suas condecorações.

Pode-se bem compreender o que isto representa no sentir de toda a Nação. Não foi um homem qualquer, mas um chefe de Estado hábil que mandou pendurar o quadro lá, por saber que causava bom efeito em todos os visitantes do exterior e do interior que ali chegassem e encontrassem a recordação daquele homem, com aquele passado.

Imaginem uma arara que voasse de modo meio aloucado, ora quase caindo, ora subindo novamente, mas que durante seu voo nada bonito desse a oportunidade de se ver, em vários aspectos, suas lindas penas coloridas. Este foi o reinado de Dom Pedro I e o sulco que deixou na alma e na formação psicológica do Brasil.

“Meu Imperador e meu filho!”

Dom Pedro I tinha um ministro com quem conviveu numa amizade adversária e numa adversidade amiga: José Bonifácio de Andrada e Silva. Os três irmãos Andrada eram inteligentíssimos e tinham feito excelentes estudos em Coimbra. José Bonifácio viajou por vários países da Europa e se tornou amigo de muitos dos homens que haveriam de trabalhar depois na Revolução Francesa. Mas ele era caracteristicamente um aristocrata brasileiro.

Havia no Brasil duas espécies de aristocracia: uma era a aristocracia dos nobres de Portugal vindos para cá, nomeados pelo rei; outra, nascida da terra. Famílias que vieram para cá, não aristocráticas, que se constituíram aqui, tiveram larga descendência e uma longa série de gerações de proprietários rurais, exercendo seu domínio sobre extensões enormes.

Essas pessoas tomavam um ar, uma tradição e um jeito aristocráticos e descendiam, em geral, dos fundadores do lugar onde viviam. Eram reconhecidas pelas leis coloniais do Brasil como aristocratas, e não menos autênticos do que os portugueses. Era uma aristocracia nascida da terra. Isso se deu largamente no Brasil e de uma delas era José Bonifácio. Homem muito inteligente, cortês e representativo.

Com a partida de Dom Pedro I, os acontecimentos políticos no Brasil poderiam ter transcorrido de tal maneira que com ele fosse exilada para Portugal toda a sua descendência. Entretanto tal não se deu, e isso assegurou a unidade nacional. Porque o Brasil era grande demais para não se fragmentar, como ocorreu com as colônias espanholas quando ficaram independentes. A única coisa que podia torná-lo unido era um chefe de Estado não originário de nenhuma das Províncias brasileiras, mas que pairasse acima do Brasil como um símbolo.

Assim, mantiveram-se aqui os filhos de Dom Pedro I, órfãos de Dona Leopoldina e já então órfãos de pai também, porque este ia para longe, para outra vida com outra esposa. Eles ficavam sem nada… Dom Pedro I deixou como tutor de seus filhos o próprio José Bonifácio, como o mais capaz de educá-los, orientá-los.

Narra-se que, quando Dom Pedro I partiu para Portugal, José Bonifácio foi ao Palácio Imperial tomar contato com as crianças, e apresentaram-lhe, deitado numa almofada, o Imperador Pedro II. Ele tomou com ternura a almofada com o pequeno monarca e disse: “Meu Imperador e meu filho!” O que é uma exclamação muito brasileira…

A reverente compaixão nacional pousou sobre essas crianças órfãs e isoladas, a bem dizer pupilas do País inteiro, e por cuja salvaguarda, educação, saúde, casamento sentia-se responsável a Nação inteira também.

Desabrochava, assim, um vínculo filial e afetivo em torno da figura de Dom Pedro II, de todo o seu reinado e de sua família, constituindo uma espécie de relação familiar que vinha desse berço de onde renascia a monarquia. E fez com que Dom Pedro II, ao longo de sua vida, se tornasse pai e depois avô do Brasil.      v

(Continua no próximo número)

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 23/11/1985)

Revista Dr Plinio  252 (Março de 2019)

O belo e o prático

Na sociedade deve haver uma hierarquia harmônica e proporcionada, a qual se manifesta, entre outras coisas, nos meios de transporte, que precisam ser belos e práticos. As carruagens existentes no Museu Nacional dos Coches, em Portugal, são exemplos característicos dessa verdade.

Tendo sido exposta, de modo muito sumário, a doutrina sobre o prático e o belo, é o momento de comentarmos algumas carruagens(1) que se encontram no famoso Museu Nacional dos Coches, em Lisboa.

A parte nobre do corpo do homem deve aparecer mais que a inferior

Logo à primeira vista notamos como o chão dessa carruagem tem uma superfície menor do que a do teto; este se alarga, enquanto o chão é estreito. De maneira que se considerarmos como chão apenas a parte onde está a porta central, ele é minúsculo em comparação com o teto. A razão de ser disto é que, em tudo quanto o homem faz, há uma vantagem para ele em que a parte nobre de seu corpo apareça mais, e a parte inferior apareça muito menos.

Temos, assim, uma arquitetura que, para visar o belo, é altamente prática porque, a partir da parte baixa dos cristais até em cima, o que se vê do homem é a parte nobre, em que ele aparece como um busto. Imaginem que este carro não tivesse na parte de baixo o quadro pintado na porta, nem esses ornatos, mas tudo fosse vidro até embaixo. Perderia enormemente.

Porque ver pernas cruzadas, pés trançados que se agitam nervosamente, tudo isto é muito menos bonito do que ver os bustos elevados, a cabeça alta, do homem ou da dama, em atitude monumental, escultural.

Harmonia entre as diversas partes da carruagem

O carro tem duas partes bem diversas: uma é a que transporta, e outra a que é transportada. A parte que transporta são as rodas e a boleia onde senta o condutor. Atrás, entre as rodas grandes, há uma espécie de chãozinho para ficarem de pé os dois lacaios, de maneira que quando o carro para, imediatamente eles descem e vão correndo abrir as portas e pôr um banquinho embaixo — que já vem dentro do próprio carro —, para que o passageiro não seja obrigado a dar um pulo. Já pensaram como ficaria feio uma rainha idosa dando um pulo de lá para baixo?

Os lacaios, vestidos em geral de damascos, sedas, com chapéus de veludo com penas, já sabem fazer uma cortesia muito grande com a porta aberta; e, não havendo um fidalgo para dar a mão à senhora que desce, o lacaio lhe oferece o braço. Ela desce de um modo elegante, e sai.

Com o carro aberto pode-se olhar dentro e ver as sedas e os damascos nos assentos. Esta é a parte dos que são transportados.

Notem a diferença de construção das rodas da frente com as de trás. As rodas da frente são pequenas e mais robustas. As rodas de trás são mais leves, altas e elegantes. A razão disso está ligada ao equilíbrio e conforto dos passageiros. Desde a boleia até a cabine, de ambos os lados, há umas peças que suspendem e mantêm a carroceria alta, garantindo o equilíbrio entre a parte de trás e a da frente enquanto o carro sobe ou desce, de maneira que os passageiros não sejam jogados para frente ou para trás. Sem dúvida, fica muito elegante. É uma série de providências práticas que são muito belas.

O prático disfarçado pela beleza

Está posta uma situação digna de nota, em que o prático existe desde que se preste atenção, mas é preciso saber vê-lo, porque ele está de tal maneira disfarçado pela beleza, que quem observa não diz: “Oh, que sabedoria prática!”, mas exclama “Oh, que beleza!”

As molas mantêm a cabine numa posição tal que ela não se inclina demais e, sobretudo, não toma solavancos do solo, o que poderia tornar mais desagradável o trajeto.

Até mesmo a altura que vai do piso da carruagem ao calçamento está calculada para a perfeita comodidade das pessoas que se encontram no interior da cabine.

Em geral, cabem seis passageiros nesse carro, dispostos frente a frente nas poltronas. Encostado à porta, há o banquinho utilizado quando as pessoas descem. Estas, conforme o caso, farão o percurso em silêncio e numa atitude de grande solenidade, ou conversando amavelmente. O povo tem o direito de vê-las numa dessas atitudes, e faz parte do dever delas apresentar esta beleza, pois as instituições políticas devem ornar os povos. O mais belo ornato de um povo é a sua instituição política.

As carruagens e a hierarquia existente numa sociedade

Analisemos agora outro veículo que é, sem dúvida, inferior ao anterior. Entretanto, não se pode dizer que seja um carro feio. É um carro bonito. Ele é lindo?

Em comparação com as coisas de hoje, ele é lindo, mas se comparado com o primeiro carro, não; ele é apenas bonito.

Pergunto: Então é uma baixa de nível fazer um carro assim?

Não, porque toda sociedade, qualquer que seja a forma de governo, deve ter uma hierarquia. E é preciso que essa hierarquia seja harmônica; quer dizer, não haja um tombo entre o primeiro carro e depois apenas liteiras. Convém que essa hierarquia seja por degraus. Este não é um carro para rei, mas para príncipes.

Por causa disto, ele é distinto, mas notem que a presença do ouro nele é muito menos abundante: o teto dele é muito menos ornado e de uma cor comum. As formas das janelas são muito menos fantasiosas e mais retilíneas, mas a justaposição de vermelho e ouro é bonita. Esse carro tem tudo o que o outro possui, mas de modo menos excelente.

Essas carruagens são do museu dos coches da corte, mas se houvesse um museu dos coches da burguesia, outro dos coches do clero, etc., simplesmente pelos coches teríamos uma ideia da ordem hierárquica daquela sociedade.

Até as liteiras bem mais modestas, que mães de famílias da classe popular tinham para se fazer transportar, eram interessantes. É a hierarquia social em que cada elo ama o elo de cima, e se faz respeitar pelo elo de baixo. E constitui uma boa organização social.

Vale a pena, a esse respeito, ler os discursos famosos de Pio XII sobre a nobreza e o patriciado romanos, para se ter uma ideia do que se deve pensar a este respeito.

Ósculo entre o belo e o prático

Considerem um pouco o prédio do museu e notem como a sala dos coches é muito bem calculada. Vistas num conjunto, todas as coisas belas apresentam uma beleza maior do que a simples soma delas. E por isso é bonito ver os coches no seu conjunto. Então foi feito um salão bem alto, com uma grande galeria em cima, para que o conhecedor possa percorrer os vários lados e analisar os coches no seu conjunto.

Para guardar bonitos coches tudo foi bem preparado. Quadros a óleo, provavelmente do tempo, representando cenas que se passaram neste ou naquele coche. O teto todo pintado e trabalhado. Tem-se vontade de haver ali no fundo, onde há uma cortina, um órgão para serem tocadas músicas extraordinárias, celebrando o passado de Portugal.

Vamos terminar pelo lado “pedestre”: foi gasto muito com esses coches. Eu pergunto: Não é um elemento de grande valor para o prestígio atual de Portugal? Notem que é uma glória de Portugal. Em geral, as nações que foram colônias se revoltam contra as metrópoles, e rompem à mão armada. Portugal até hoje tem, em Angola e Moçambique, gente que está lutando para que essas nações voltem à união com Portugal. Eu lhes garanto que muitos angolanos, moçambicanos que visitaram esse museu, levando álbuns com visões de coisas destas para Angola e Moçambique, deram o sabor da cultura portuguesa, e concorreram para esta união de Portugal com os seus súditos. Nós, de origem portuguesa, nos alegramos em dizer isto aqui. Mais uma vez o belo e o prático se osculam, se encontram. Era preciso termos chegado a este século descabelado e sujo para que se imaginasse esse dissídio entre o belo e o prático.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 4/10/1986)

1) As fotografias que ilustram esta seção não são as mesmas comentadas por Dr. Plinio.

Profundamente católica

“Quem não viu Sevilha, não viu maravilha”, afirma o conhecido dito popular. E eu tive a oportunidade de comprová-lo pessoalmente.

A cidade é marcada pela presença do Hotel Alfonso XIII, numa linda praça pública, porém não é o seu edifício mais imponente. Antes dele, ergue-se a bela catedral com a famosa Torre da Giralda, reminiscência do estilo mourisco e de um esplendor extraordinário.

Igualmente célebre, levanta-se ali perto a Torre do Ouro, que desde menino me encantara, quando eu folheava as páginas da enciclopédia ilustrada Larousse e, no verbete “Sevilha”, o S inicial aparecia incrustado numa vinheta desse monumento. Uma torre octogonal, às margens do Rio Gualdaquivir, cuja vista me fez recordar aqueles entusiasmos infantis com os quais a admirava num evocativo desenho.

Entretanto, o que me cativou em Sevilha não foram apenas essas construções magníficas, mas também — e quiçá com maior intensidade — o perceber na cidade uma população sobremodo inteligente, de espírito muito variado, capaz de se mover em todas as direções à maneira do ágil espírito brasileiro. E, por isso mesmo, dados a conjugarem com facilidade aspectos e conceitos diversos, tirando deles uma síntese da qual resultava uma composição maior entre a Espanha católica e seu passado mozárabe. Sevilha é, de fato, profundamente católica.

Uma de suas belezas próprias colhe o visitante, de modo particular, quando se passeia pelo bairro velho da cidade, onde aspectos do passado ainda dominam, junto com uma forma de pobreza-riqueza pouco habitual para pessoas que habitam grandes centros urbanos.

Trata-se de um bairro constituído de casas no máximo com dois pavimentos e com ruas muito estreitas, cujo charme está precisamente no fato de não serem retilíneas. Entortam-se e caminham em ziguezagues não calculados, dão “vueltas y vuelteretas” as mais surpreendentes, inesperadas, e desembocam onde não se imagina. Nada possuem de comum com as largas e previsíveis avenidas cosmopolitas. As ruas sevilhanas serpeiam e, a todo momento, topa-se com uma esquina.

Por vezes aparece um cruzamento, e a ruazinha em que vamos dobra-se tanto que já não se sabe qual a nossa, qual a outra, não fossem as placas pitorescas que nos indicam a continuação do caminho desejado. Em tudo, até mesmo nas ruas, paira portanto um certo ar de reserva e de mistério que aumenta nossa admiração.

Curioso notar que, apesar de o espanhol ser tão expansivo, mormente o andaluz — Sevilha está na Andaluzia — a cidade não é nada ruidosa. As casas se conservam em discretos recolhimentos: batidas de sol, as janelas se acham semi-fechadas, veladas por cortinados leves, deixando o interior imerso numa suave penumbra. E a gente percebe, por detrás das venezianas e dos voiles, grandes olhos pretos, alertas, vivos, perspicazes, emoldurados por grossas e escuras sobrancelhas, que observam e acompanham o visitante em seus passos pela rua sinuosa. Como se quisessem avisar ao vizinho do lado ou da frente: “Lá vai o estrangeiro!”

Na verdade, a fachada da casa sevilhana não é a sua parte importante, como se a concebe na maioria das cidades contemporâneas. Ela é quase o fundo da moradia, pois a existência naquelas habitações transcorre, sobretudo, nos seus pátios internos, para os quais abrem-se as melhores salas, os quartos, as varandas, e é todo um eixo vital que cruza por eles. A ideia é de se subtrair às indiscrições dos turistas, dos que não são da família. Daí as janelas e portas voltadas para dentro, à maneira de um claustro.

Peculiaridades e encantos dessa Sevilha: quem não a viu, não viu maravilha…

 

Plinio Corrêa de Oliveira

 

ORAÇÃO A NOSSO SENHOR AGONIZANTE NA CRUZ

Era 10 de março 1988, quando Dr. Plinio, atendendo ao pedido de um jovem que terminara de fazer um  retiro, ditou esta esplêndida oração, plena de amor a Cristo padecente, humildade e filial confiança

Ó Senhor Bom Jesus! Do alto da Cruz deitais sobre mim o vosso olhar de misericórdia, parecendo desejar que, de meu lado, também eu levante os meus para Vos considerar!

Sim, para Vos considerar em vossa infinita perfeição, e no insondável abismo das dores que padeceis… por mim. Pois bem sei que todas essas dores, Senhor, Vós as sofreríeis só por mim ou por outro homem qualquer, se este fosse o único a depender de tais padecimentos para se salvar.

Vós me convidais a Vos fitar, Senhor! Mas Vós mesmo sabeis que não ouso fazê-lo. Não ouso pôr no vosso divino olhar os meus olhos pecadores, pois me é patente que não sou senão um  vermezinho e miserável pecador, como disse vosso grande e glorioso servidor São Luís Maria Grignion de Montfort. Entretanto, sei também, Senhor, que num extremo de misericórdia destes-me por Mãe vossa própria Mãe.

É ela a advogada que instituístes para pleitear minhas atenuantes ante o vosso tribunal, e para me obter a torrente de vossas misericórdias.

Assim, rogo-Vos, Senhor, por Maria Santíssima, Medianeira de todas as graças, favorável acolhida para as súplicas que passo a Vos apresentar.

Conheço, Senhor, quanto os horizontes de minha alma são de “teto baixo”. Isto é, quanto as cogitações para as quais me volto são meramente práticas, sumidas no concreto, de pouca elevação, todas restringidas ao âmbito natural e à vida terrena, cujos aspectos são precisamente os que mais me atraem. E procuro não olhar de frente o que existe de maravilhoso, de grandioso, de admirável, em suma, as criaturas terrenas que melhor refletem vossa supremacia e vossa glória.

Imploro-Vos, ó Bom Jesus, que limpeis de minha alma este, como tantos outros defeitos meus, tão indignos da condição para a qual me chamastes, a rogos de vossa Santíssima Mãe; tão indignos da condição de quem deve viver afastado de todas as coisas terrenas, cogitando destas apenas na medida que estejam ordenadas ao Céu, a fim de preparar neste mundo as condições para que os homens melhor se salvem e Vos deem a maior glória — “nunc et semper et per omnia sæcula sæculorum”. Fazei-me amar, reta e santamente, tudo quanto é grande, maravilhoso, régio e elevado. Dai-me a graça de ser totalmente inapetente das ninharias que até agora me atraem e de ser totalmente apetente das grandezas que me deixam enfastiado. Pois o fastio dessas grandezas, Senhor, acaba redundando em fastio de Vós. Quem é frio e resistente aos apelos que fazeis ao amor dos homens, através do que é santo e maravilhoso na terra, o é também em relação à vossa obra-prima, que é a graça. E o é, outrossim, em relação a todos os infinitos horizontes da fé, que devemos contemplar.

Não Vos peço apenas, Senhor, que esse defeito se atenue em mim, nem Vos suplico somente que dele me cureis. Imploro-Vos mais, muitíssimo mais: que eleveis minha alma ao amor de tudo quanto é grande na ordem sobrenatural e na ordem natural, e que eu a tudo ame com um amor que esteja no extremo oposto da indiferença que até agora me tem dominado.

Pela linfa preciosa que correu de vosso lado, pela Igreja que saiu de vosso flanco, pelo sofrimento de vossa Mãe aos pés da Cruz, peço-Vos, Senhor: perdoai-me todas as minhas infidelidades e fazei de mim o contrário do que sou. Amém.