Reflexões sobre o Santo Sudário

 

 

  Ao contemplar o Santo Sudáriovemos como, durante sua vida
terrena, naquele Corpo o pensamento
enunciado nos Evangelhos repercutia
na voz, aflorava na fronte, bailava
nos olhos, exprimia-se pelos lábios
e gestos. Assim, a imagem ali
estampada é a prova, não só da
existência, mas da Divindade de Nosso
Senhor Jesus Cristo. É o Homem-Deus!

Analisando o Santo Sudário, parece-me que mesmo tomando
em consideração estar a Sagrada Face um tanto alterada
pelos golpes recebidos – como, por exemplo, o nariz –, ela revela outras
excelências de Nosso Senhor.
É fato que na sua forma nativa, perfeita, a fisionomia de Nosso Senhor
se apresentaria de modo ainda mais excelente. Mas per accidens uma
certa excelência maior aparece devido às próprias deformações que ela
sofreu. Deve-se entender isso como uma espécie de preliminar da análise.

 

Abismo de maldade
que causa assombro

 

Chama a atenção ver como não só o nariz visivelmente recebeu uma pancada e ficou deformado, mas o queixo também caiu um tanto. A
distância entre o ponto mais alto da fronte e a parte mais baixa do queixo é um pouco maior do que seria normalmente.
Isto tem, a meu ver, um efeito
curioso: na harmonia perfeita e divina de Nosso Senhor, sua Face deveria dar uma dupla impressão de uma Pessoa muito entregue ao pensamento, mas nem um pouco tenso. O que é natural, pois o pensamento não Lhe custava o menor esforço. Ele pensava com a facilidade e a abundância próprias à excelência das suas duas naturezas unidas hipostaticamente
na Pessoa d’Ele. Por causa dessa alteração fisionômica provocada pelos golpes, Jesus parece um pouco afanoso no pensar.
E, por uma coincidência feliz, percebe-se também que o seu pensamento versa sobre a dor e a perseguição sofridas por Ele, e a injustiça ali cometida, e também a respeito de tudo quanto Lhe aconteceu, as mais atrozes ingratidões, aberrações que chegaram a um ponto inimaginável. Sendo Ele a vítima, medita sobre os criminosos e o crime, a respeito

do qual qualquer meditação tem como ponto de partida a sua própria
santidade e, portanto, a imensa gravidade do fato de que contra o Santo
dos Santos tenha sido feita a violência das violências.

Por causa do estiramento da Face tem-se certa impressão de ser-Lhe
meio penoso sondar até o fim, pela meditação e pela reflexão, esse abismo
de maldade, o qual não é próprio a Ele estar medindo, pois mais Lhe
compete permanecer com a atenção voltada para as perfeições excelsas
de Deus. E esse abismo de maldade causa uma espécie de assombro expresso
na fotografia do Santo Sudário. E, junto com esse assombro, uma
tomada de atitude em consequência, ou seja, Ele repele totalmente a
atitude das pessoas que fizeram isso e, embora não esteja no momento
emitindo um juízo de quem vai condenar, a condenação já está vindo
no horizonte, inapelável e tremenda.

 

Convicção de que a
Ressurreição virá

 

Notam-se a profundidade, a serenidade, a seriedade da reflexão e a firmeza da consequência da conclusão. O pensamento durante todo o tempo é de uma solidez inabalável, todas as suas impressões foram nítidas e definidas. Tudo quanto Ele viu, rejeitou, pensou ficou para todo o sempre.

Por detrás aparece a Divindade. Porque se percebe que Ele não tem apenas em vista o criminoso, mas a Santíssima Trindade. Noto isso em algo de aveludado, sereno, imperturbável, de sublimemente elevado pelo que Nosso Senhor não desce de corpo inteiro até esse poço de infâmia para sondá-lo, mas tem um padrão do alto do qual Ele mede tudo isso.

A unidade de Pessoa com duas naturezas, a divina e a humana, em União Hipostática é inatingível por tantas ofensas que nem de longe tocam a fímbria da majestade serena d’Ele, mantida de tal maneira por inteiro que um mosquito, voando do lado de fora de uma pirâmide, é menos extrínseco ao que está dentro dela do que todos esses pecados são extrínsecos à santidade, à majestade, à divindade de Nosso Senhor. Jesus está completamente de fora, como quem diz: “Eles cometeram esse pecado, mas a minha santidade, a de Deus Pai e do Espírito Santo não foram atingidas. Nós nos amamos na Trindade Santíssima de um amor ao qual esse ódio não afeta em nada. Há uma paz enorme, uma serenidade, uma dignidade que essa corja de nenhum modo atingiu.”

Por outro lado, imaginemos Nossa Senhora, doloridíssima, dirigindo algumas palavras a seu Divino Filho. Ele Lhe responderia com tal suavidade que se diria estar sendo carregado nos braços d’Ela. Sem dúvida, existia neste Varão a consciência de que ao pé da Cruz estava a Mãe d’Ele. A Santíssima Virgem é o Paraíso de Deus. Portanto, dentro de todo esse horror, Ele estava junto ao seu Paraíso e tinha com isso um gáudio. Isso excede a todas as cogitações humanas.

Uma parte dessa serenidade vem da noção da inatingibilidade. E aí a atitude diante da morte é a mais surpreendente
possível. Porque Ele está morto, mas há uma qualquer coisa parecida com a consciência ou convicção da Ressurreição
que virá. De tal maneira que, de algum lado, a condição d’Ele de morto parece dizer: “Está tudo encerrado!”
Mas de outro lado há algo que afirma: “Nada está encerrado!” Só de olhar isto deveria dar aos assassinos
d’Ele uma insegurança de saírem ganindo pela rua, sem ter o que dizer.

 

 

Batalha dos definitivos

 

O queixo de Nosso Senhor parece ter recebido um golpe em virtude do qual a distância entre a parte superior e a fissura dos lábios ficou mada por eles diante de Mim é definitiva!
A que Eu tomo diante deles é definitiva! A minha morte é definitiva! Definitiva será minha vitória! É a batalha dos definitivos. Nesse embate
só falta o último lance que compete apenas a Deus e, portanto, a Mim. Esse lance é a minha Ressurreição, e esta não depende nada dos homens,
mas inteiramente de Mim! E isto virá!”

Com a pancada recebida, o nariz se alongou e isso confirma a impressão de ter passado por várias peripécias. Através de seu traçado, tornado assim indeciso, há uma decisão no
fundo, mais ou menos como a do homem que passa por muitas provas e as vence, permanecendo inabalável, imutável.

O Divino Redentor passou por todas as vicissitudes da Paixão, e em todas elas a perfeição da atitude foi inteiramente a mesma. Através das várias peripécias estampadas no nariz,
se nota a indefectível continuidade d’Ele até o “Eli, Eli, lamma sabactani” 1. Essa fisionomia parece dizer a quem a contempla: “Tu passarás pelas mais assombrosas peripécias.
Sê firme, igual a ti mesmo, para seres igual a Mim até o fim! Os firmes vencerão, e não há bofetada nem golpe que os deforme. Para frente!”

Olhar que increpa todos
os pecados do mundo

Esse olhar de pálpebras fechadas eu não ouso comentar, pois logo que começasse a fazê-lo, senti-lo-ia fixar-se em mim e dizer:
“Tu ousas transpor para teu miserável vocabulário e o jogo das tuas impressões aquilo que é superior a qualquer cogitação? Eu estou
te olhando e tu pensas que alguma palavra é capaz de descrever esse olhar? A todo momento ele continua o mesmo e variado. Tu pensas seres
capaz de acompanhar essa variedade dentro da estabilidade perfeita?

Meu olhar te convida a penetrar no fundo de Mim mesmo, e quando começas a adentrar percebes que estás entrando no Sanctum Sanctorum2, dobras os joelhos, baixas a cabeça e te deixas envolver, não consegues erguer a tua fronte. Não fales do que não ousas ver!”

Sente-se que esse olhar increpa não apenas os pecados cometidos contra Nosso Senhor durante a Paixão, mas todos os pecados do mundo. Portanto, também tem a atenção posta nos nossos defeitos, embora não com uma recusa tão colossal; porém, enquanto defeito, Ele rejeita.

 

No Santo Sudário Nosso Senhor Jesus Cristo está nos ensinando por contraste. Há representações do Divino Redentor que nos fazem sentir uma certa afinidade com Ele, mas esta é a imagem do contraste por excelência. Diante dessa figura só tenho vontade de dizer a Nossa Senhora: “Minha Mãe, obtende que Ele me cure!”
A boca também traz a marca da Paixão, porque possui o sinal da dor, e ao fechar-se exprimiu algo da alma d’Ele que normalmente não se exprimiria. Não é propriamente uma boca de mistério, mas dá a entender: “Não falarei nada, e no meu silêncio está tudo dito, não me perguntes.” Não está na nossa medida ouvir o que Ele tem a dizer. Portanto, não O interroguemos, mas compreendamos por meio de seus lábios cerrados.

A Sagrada Face apresenta algo à maneira de uma contradição, porque o rosto do homem é o repositório da sua honra; entretanto, nessa Face Divina se encontra toda a honra como nunca houve, junto com todas as bofetadas e insultos que jamais foram descarregados contra alguém; tudo está acumulado ali. Calculem o que Nossa Senhora sofreu vendo isso! Simplesmente não há palavras!

Harmonia, equilíbrio
e beleza só possíveis
no Homem-Deus

Pode-se perguntar: a Paixão acrescentou algo a Ele? Poder-se-ia resumir a questão numa outra: a cicatriz acrescenta algo ao guerreiro? É claro! Nosso Senhor Se tornou cheio de cicatrizes. Quando nós, pelos rogos de Maria, O contemplarmos no Céu, veremos na Face d’Ele uma espécie de plenitude do que era em todas as idades da sua vida. Mais do que como era no Santo Sudário e na Cruz. Todas as suas cicatrizes estarão irradiando esplendores e aumentarão a beleza da Santa Face. Não temos ideia de como Ele será pulcro para nós olharmos.

A fronte tem uma proporção e está numa harmonia celestíssima com o restante do rosto, é a própria imagem da perfeição moral. O tamanho normal dela não aparece devido ao cabelo desalinhado, maltratado, desordenadamente posto pelo Sangue que escorre. Tudo isso causa uma sensação de que a testa desapareceu, como se diria de um castelo cuja parte mais alta pegou fogo.

Consideremos a estatura d’Ele. Percebe-se a extensão de ombro a ombro, a altura do pescoço e do tronco, o comprimento dos braços, formando uma proporção simplesmente monumental!

Em Nosso Senhor existe a conjunção de dois aspectos: a estabilidade e o movimento. Ele tem uma estabilidade perto da qual uma pirâmide do Egito é uma mexerica. E, de outro lado, possui uma facilidade de Se mover a qualquer momento, para um movimento dominador, natural, que afasta qualquer obstáculo para longe. Ele é o Rei rompu, brisé, anéanti – quebrado, despedaçado, aniquilado –, segundo a expressão de Bossuet, mas a essência d’Ele está completa. Ele domina plenamente. Olhando só esse equilíbrio já se compreende não se tratar de um mero homem. É o Homem-Deus.

Pode-se perceber nesse Corpo inerte o pensamento enunciado nos Evangelhos que repercute na voz, aflora na fronte, baila nos olhos, exprime- se pelos lábios e gestos. D’Ele saíram virtudes de toda espécie e cada uma delas era um hino de ordem e de elevação, algo que não podemos imaginar.

A meu ver é inteiramente óbvio que isso traz consigo a prova de que Ele existiu e era Homem-Deus. Só alguém de um valor igual ao d’Ele poderia conceber aquilo que ali se encontra.

 

A tal ponto que se eu não conhecesse Jesus e O visse passar pela rua, me ajoelharia e diria: “Meu Senhor e meu Deus!”

Em contrapartida, ao entrar em uma catedral gótica, no ambiente silencioso ou onde se tocasse uma música inteiramente adequada, causando- me a impressão de que todas as luzes e formas do recinto sagrado se corporificavam em sons; uma igreja toda florida de maneira a encher-se de perfumes odoriferíssimos, meu espírito desejoso de unum seria levado a perguntar: “Mas não haverá alguém que englobe e exprima melhor tudo isto?” Se nesse momento aparecesse Jesus, eu daria um brado: “Eis! Porém, Ele é muito mais belo do que tudo isso!” E, mais uma vez, exclamaria: “Meu Senhor e meu Deus!”

E ainda que, enquanto eu me desfizesse de veneração, gratidão e pedido de perdão, Ele me quisesse fazer um agrado, não era para mim o mais importante. O principal era querer a Ele: gratias agimus tibi propter magnam gloriam tuam3.

Pois bem, a Igreja Católica é o Corpo Místico de Nosso Senhor Jesus Cristo. Tudo quanto ela possui e ainda aparecerá dela no Reino de Maria é isso, com uma intensidade, uma fragrância da qual nós temos dificuldade de formar uma ideia. v
(Extraído de conferência de
9/2/1983)

 

 

 

1) “Meu Deus, meu Deus, por que Me
abandonaste?” (Mc 15, 34).
2) Do latim: Santo dos Santos.
3) Do latim: Nós vos agradecemos por
vossa imensa glória.
Gabriel K.

 

Cindindo a História de alto a baixo

Numa piedosa imagem de Nosso Senhor flagelado, chama muito a atenção a sublimidade do olhar, no qual transparece o sofrimento intenso do Divino Salvador, que medita com profundidade a respeito do significado transcendente, metafísico, sobrenatural de todas as dores pelas quais passa. O Redentor divide a História entre os que são d’Ele e os que são contra Ele.

 

Tenho a intenção de comentar uma imagem de Nosso Senhor Jesus Cristo flagelado. Dizer dessa imagem que é bonita é muito pouco, porque mais do que isso é profundamente impressionante, e de molde a despertar muita piedade. E é enquanto tal que desejo fazer dela objeto de nossas considerações.

Significado transcendente, metafísico, sobrenatural das dores

À primeira vista, quando me foram apresentadas fotos dessa imagem, fiquei chocado porque as feridas do Corpo sagrado de Nosso Senhor Jesus Cristo estão apresentadas com um tal realismo e de modo tão brutal, que o instinto de conservação do homem clama com aquilo, tem a tendência a fugir e achar que não é arte representar um horror daqueles de um modo tão horripilante.

Esse é um primeiro impulso que deve ser dominado porque é uma ingratidão. Tal será que, tendo Nosso Senhor Jesus Cristo sofrido tudo o que padeceu por nós, não queiramos sequer olhar para o Corpo chagado d’Ele porque isso pode nos desagradar. Como um primeiro impulso se compreende, pois é uma reação quase física. Porém, haveria ingratidão em consentir nesse impulso. Além de ingratidão é uma falta de respeito sem nome!

Compreende-se, então, que o escultor tenha chegado a esculpir de modo tão terrivelmente realista essa imagem, a qual pareceu-me ser uma escultura espanhola, com aquele realismo próprio das imagens sobre a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, e que deveria datar de fins do século XVIII, mais provavelmente do século XIX. Soube depois que ela se encontra no Canadá.

Consideremos, nas seguintes fotos, alguns aspectos dessa imagem.

Algumas coisas me agradam extraordinariamente nessa figura. A primeira delas que me chama mais a atenção é o olhar profundamente pensativo, meditativo. Tenho visto incontáveis crucifixos em que Nosso Senhor parece abismado – aliás, santamente – na consideração da sua própria dor, e onde o artista procura atrair a atenção para os sofrimentos do Divino Crucificado a fim de provocar compaixão. Nesses crucifixos o próprio olhar do Redentor, muito legitimamente, parece perguntar: “Pelo menos nesta dor, tu não tens pena de Mim?”

Porém, aqui eu interpreto o olhar de outra maneira. É bem verdade que a dor está presente. É o olhar de uma Pessoa que sofre intensamente, mas, por cima da dor, nota-se que há uma reflexão profunda, consternada de Quem pensa profundamente a respeito do que Lhe está acontecendo, do significado transcendente, metafísico, sobrenatural de todas as dores pelas quais Ele está passando, e que constitui propriamente uma meditação.

Nosso Senhor enquanto pedra de escândalo

É uma meditação sobre a sua própria Paixão, como Ele gostaria que nós fizéssemos e que, segundo interpreto olhando a Face sagrada, parte do mais alto ponto de consideração em que uma mente humana possa se colocar. Mas é, ao mesmo tempo, uma reflexão que vai até o mais concreto, palpável, miúdo, o mais distante da transcendência, e une tudo numa vista em comum, numa consideração global não só do que fazem contra Ele, mas também do que realizam por Ele.

De maneira que estão contemplados não apenas os homens vivos nessa ocasião, mas todos os que ao longo dos tempos meditariam esse passo da Paixão e seriam frios, indiferentes, cruéis, ou O adorariam transportados de amor e admiração na consideração da situação em que Ele está.

Tudo isso é considerado, o que me faz lembrar a palavra do Profeta Simeão sobre Ele: Pedra de escândalo que dividiria os homens para a perda e a salvação de muitos, a fim de que se revelassem as cogitações de muitos corações (cf. Lc 2, 34-35). Quer dizer, dividindo, cindindo a História de alto a baixo em dois: os que eram d’Ele e os que eram contra Ele, salvando-se uns e perdendo-se os outros. Parece-me que essas considerações altíssimas, e outras ainda, estão expressas nesse olhar, que pousa ao longe, num ponto indefinido.

Entretanto, há uma altaneria na posição d’Ele pela qual, por mais que esteja alquebrado, não está arqueado. Pelo contrário, o tronco sagrado está ereto numa posição que se poderia chamar de nobre. A própria cabeça não está caída de modo desairoso, nem erguida de maneira arrogante, mas posta com uma naturalidade digna sobre o pescoço, e elevada como um Homem que está entregue às suas mais altas cogitações.

Notem a posição lindíssima dos dois braços. Dir-se-ia tratar-se de um personagem num ato de muito protocolo, de muita etiqueta. Nas cortes, muitas vezes o modo correto de postar os braços diante de um rei ou de uma rainha é esse. Assim está Ele.

No Corpo ferido pela flagelação vemos partes da carne sagrada intumescidas, algumas foram batidas e outras arrancadas. Embora esteja cercado por gente que ria d’Ele, Jesus não olha para essas pessoas, mas as transcende. Ele está infinitamente acima de tudo isso, entregue aos seus pensamentos, à sua oração. De tal maneira que se poderia colocar, entre os muitos títulos que essa imagem mereceria, a frase: “Iesus autem orabat”, como também “Iesus autem tacebat”(1).

Três aspectos do divino olhar

Observem como o manto da irrisão, apesar de tudo, cai composto, com a parte direita meio voltada para trás, indicando por esses discretos indícios a beleza e a força moral que não O abandonaram nem mesmo nas situações mais terríveis.

Creio ser este semblante a última expressão do comovedor. É Cristo enquanto pensando, refletindo, orando durante a sua Paixão. Julgo discernir nesse olhar três aspectos. Primeiro, muita dor física que se exprime aí, seguida de muita angústia diante do sofrimento que vem. É Alguém que está em pleno tormento e sente o tormento que ainda vem. Portanto, encontra-Se no auge do horror, em que Ele ainda não sofreu tudo, e a morte que o libertará está longe. Ele já sofreu tanto que perdeu toda a força para resistir; entretanto, ainda tem que aguentar enormemente. Há, por isso, uma ansiedade, uma angústia. Mas que angústia doce, suave, sem agitação, confiante! “Isto tem uma saída. Meu Pai atenderá minha prece, e Eu chegarei até o fim. Isto tem um sentido.”

Por outro lado, vê-se a tristeza profunda, mas uma tristeza moral, como que divinamente decepcionado com aqueles que O abandonaram. Não parece que o Divino Mestre Se lembra, nessa hora, não dos miseráveis que O estão chicoteando, mas dos Apóstolos que O deixaram? Ele parece estar revendo cada Apóstolo, um por um: pensando em São Pedro, sobre quem Ele construiu a Igreja; em São João, o Apóstolo Virgem, que horas antes ainda deitara a cabeça sobre o peito d’Ele para fazer uma pergunta na intimidade; em São Bartolomeu, de quem Ele mesmo disse que era um verdadeiro israelita no qual não havia fraude e que, entretanto, O abandonou também… Ele está pensando em todos os outros. E lembrando-Se com horror do filho da perdição que O vendeu, Ele está cogitando em todos aqueles que O trairiam ao longo dos séculos.

Entretanto, Jesus está pensando também em algo que O angustia enormemente, mas é magnífico: Nossa Senhora e a dor que Ela está sofrendo.

Porém, por cima disso, parece-me ver os olhos do pensador que está meditando, fazendo a Filosofia e a Teologia daquele acontecimento central da História, que é a sua Paixão e Morte. E contemplando tudo isso Ele está orando. A meu ver é manifesto haver dentro disso uma magnífica oração.

Nosso Senhor sofreu tudo isso pelos rogos de Maria

Quando uma pessoa pensa, costuma frequentemente formar um vinco precisamente nesse lugar da fronte onde, na imagem, sobressai uma vergastada profunda. A meditação do verdadeiro homem de Deus é muitas vezes acompanhada de dor, de tristeza e de amargura, faz sangrar a alma, se não o corpo, que envelhece, encanece, se consome, mas se eleva e se santifica.

Considerem no Corpo divino a tumefação do braço esquerdo: nem tem o contorno comum de um braço, mas está todo ele bailando em torno dos ossos. E esses braços ainda vão carregar a Cruz, essas mãos ainda serão cravadas no madeiro, até que Ele morra. Esta é a imensidade de tormentos que O aguarda depois de ter sofrido tudo isso.

Ali vemos amarradas as mãos sagradas do Onipotente. É bonito que o escultor as tenha apresentado inteiramente descontraídas; não há contração nervosa, mas estão como as mãos de um rei prontas para serem osculadas. É o Rei da dor.

Por nós, que somos escravos da Santíssima Virgem, essa imagem deve ser considerada de dentro dos olhos de São Luís Grignion de Montfort. Devemos entender que se Nosso Senhor sofreu tudo isso foi pelos rogos de Maria; se esse Sangue é aplicável a nós, é pelos rogos de Nossa Senhora; se nossa presença não causa horror a Ele, mas, pelo contrário, é aceita com misericórdia, é pelos rogos de Maria.

É com Ela, por Ela e n’Ela que nós podemos nos apresentar a Nosso Senhor Jesus Cristo. Maria Santíssima é o caminho necessário, por vontade de Deus, para nos aproximarmos de seu Divino Filho e sermos, não digo dignos, mas pelo menos de algum modo proporcionados para olhar essa figura, e pedirmos por nós e pela Igreja.

Considerações sobre o escultor da imagem

Agora, uma palavra sobre o escultor. A meu ver, esse homem fez uma coisa extraordinária no seguinte sentido: muitas vezes vemos em uma obra de arte a expressão da alma do artista que a produziu. Essa é uma qualidade, pois indica o modo pelo qual a pessoa exprimiu o que aquele tema lhe produzia no espírito. Contudo, muito mais bonito é quando o artista de tal maneira se deixa identificar com o tema, que a expressão de alma dele não aparece, e sim somente o tema. Nessa escultura não se sente o artista, mas apenas Nosso Senhor Jesus Cristo.

O artista de tal maneira viveu, por assim dizer, a dor de Nosso Senhor que ele O representa e se apaga. Não se percebe qual era o estado de alma dele, a não ser na extrema inteligência, propriedade, finura e, sobretudo, na extrema piedade com que ele apresenta a matéria; de resto, ele está ausente. Isso, a meu ver, é o auge do mérito dentro da obra de arte.                v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 10/2/1976)
Revista Dr Plinio 265 (Abril de 2020)

 

1) Do latim: Jesus, porém, orava. Jesus, porém, calava.

 

“Tenho sede”

Imaginemos que um de nós estivesse acompanhando Nosso Senhor Jesus Cristo na sua Paixão, e Ele, a certa altura, pedisse um pouco de água. Levamos-Lhe um copo, o Divino Redentor bebe a água e, cheio de amor e dor, diz: “Mas, meu filho, tão pouco nesse copo?” E continua carregando a sede que por negligência não matamos. Não é verdade que isso nos marcaria até o fim da vida? Eu morreria inconsolável! Ora, isso é o que fazemos quando não Lhe damos o que Ele queria de nós.

Tomando em consideração que cada um de nós foi chamado a matar a sede do Redentor ao longo dessa Paixão atroz pela qual passa a Santa Igreja, e que essa sede nós mataríamos se oferecêssemos todo o esforço, todo o sacrifício que poderíamos fazer, quiçá se Ele nos aparecesse, diria: “Meu filho, tão pouca água nesse copo?”

Esta é uma reflexão muito apropriada para a Semana Santa. Ele tem poucos a quem pedir isto; pede a nós, e damos os copos negligentemente cheios, de qualquer água do caminho, ao invés de procurarmos uma fonte com água magnífica e levarmos uma jarra, para enchermos novamente o copo caso Ele queira beber mais.

Por exemplo: do que valem as nossas Comunhões, nosso Rosário? Se nos fossem pedidas contas, o que teríamos a dizer? E se não for suficiente? Se tal coisa que eu deveria ter dito com entusiasmo não o fiz?

Não pretendo acabrunhar ninguém com meditações muito pesadas, mas quando se aproxima a Semana Santa a ocasião é particularmente indicada para essas considerações. Aliás, a Igreja realiza cerimônias pungentes nesse período precisamente para tocar as nossas almas nesse sentido.

Por isso aconselharia o seguinte: na Sexta-Feira Santa, às três horas da tarde, considerar que Nosso Senhor está morrendo, e nesse momento, do alto da Cruz, Ele viu a vida inteira de cada um de nós e teve sede.

Quando Ele gemeu “sitio” – tenho sede –, sem dúvida padecia uma grande sede física, devido à enorme quantidade de sangue que vertera. Mas a principal era a sede de almas. Jesus teve, portanto, sede de incontáveis almas, dentre as quais estava a minha. Na medida em que correspondo ou não às graças que Ele conquistou para mim com sua Paixão, posso aumentar ou mitigar sua sede.

De maneira que cada um de nós tem o poder de atenuar o sofrimento d’Ele no alto da Cruz. Donde a importância de pensarmos: ao menos nesta hora eu vim me recolher, pôr-me diante do Santíssimo Sacramento, aos pés de uma imagem de Nossa Senhora e pedir que Ele toque minha alma, e dê vida a esses pensamentos.

Há uma canção muito piedosa a Nossa Senhora, que se costuma entoar durante a Via-Sacra, que diz em uma de suas estrofes: “Sancta Mater istud agas: Crucifixi fige plagas corde meo valide”– Santa Mãe, faze isto: fixa em meu coração, de modo efetivo, as chagas do Crucificado.

Pois bem, na Sexta-Feira Santa, às três horas da tarde, por exemplo, é o momento de dizer: “Santa Mãe, fixai as chagas do Crucificado no meu coração valide, ou seja, validamente, de fato”. E assim, não passarmos a Semana Santa com as futilidades da vida comum, mas mantermos firme no nosso espírito essa clave.

Melhor ainda seria se recitássemos os mistérios dolorosos do Rosário todos os dias nesse espírito e com esta ideia: “Em cada mistério atenuo as dores que Nosso Senhor Jesus Cristo sofreu naquele tempo.” Assim, estaremos dando-Lhe um copo d’água que Ele está nos pedindo.(*)

 

Plinio Corrêa de Oliveira

* Cf. Conferência de 7/4/1990.

 

Restava enfrentar a última batalha

No alto da Cruz, Nosso Senhor já havia passado pelos mais atrozes sofrimentos. Entretanto, Ele ainda padeceu a aridez, outras terríveis aflições e enfrentou a última batalha, antes de morrer. Sofreu para resgatar as almas que se encontravam no Limbo, os homens que estavam na Terra e todos os que existirão até o fim do mundo.

 

Eu gostaria de comentar alguns aspectos do crucifixo que se encontra na Igreja de São Francisco de Assis, em São João del Rei, Minas Gerais. Desejo, assim, chamar a atenção para uma das formas de dor que mais caustica o mundo contemporâneo. O homem hodierno está sofrendo? Está. Mas ele mais sofre da dor que ele percebe que caminha em direção a ele, do que da dor que está padecendo. A previsão da dor é, muitas vezes, pior do que a própria dor.

O lance final mais tremendo do que todos os outros

Esse crucifixo consegue, de um modo impressionante, tornar claras duas posições da alma de Nosso Senhor Jesus Cristo, Homem-Deus. Quer dizer, da sua humanidade ligada hipostaticamente à sua divindade, e colocada diante do tormento da dor que vai cair sobre Si, dominada por um pânico correspondente à reação de toda a natureza humana, mas que não cede e avança, que está resignada e, ao mesmo tempo, apavorada.

Notem como o olhar está fixo, aberto e até arregalado, e não presta atenção em nada a não ser no espectro de uma dor tremenda que Lhe vem por cima. Toda a Paixão está para trás, Ele já sofreu tudo e está crucificado. O que Nosso Senhor olha tão fixamente, com tanto pavor, tão desoladora e varonilmente de frente?

Para compreender bem isso, deitem a atenção na boca, meio entreaberta, prestes a pronunciar uma palavra que já não tem força para articular. Considerem as sobrancelhas arqueadas e muito acima das cavidades oculares. É a morte que vem… É o fim! Depois de tanto e tanto sofrimento, é aquele momento extremo de dor, no qual o Divino Redentor vai bradar: “Meu Deus, meu Deus, por que Me abandonaste?” (Mt 27, 46). E depois inclinará a cabeça e dirá: “Está tudo consumado” (Jo 19, 30). O oceano das dores foi bebido e está tudo feito.

Eis o lance final, trágico, mais tremendo do que todos os outros, aos quais se acrescenta um dilúvio de dores, à vista de cujo horror vemos Nosso Senhor Jesus Cristo estremecer e ainda enfrentar a última batalha.

Há um versículo que se refere profeticamente a Ele dizendo: “Ego autem sum vermis et non homo, opprobrium hominum et abiectio plebis. – Eu sou um verme e não um homem, o desprezo de todos os homens e o escárnio do povo” (Sl 22, 7). Ei-Lo no alto da Cruz, sofrendo tudo isso para resgatar as almas que se encontravam no Limbo, as que estavam na Terra e as de todos os homens até o fim do mundo.

O Salvador tem sede da alma de cada um de nós

É muito importante compreendermos que Nosso Senhor Jesus Cristo era o Profeta perfeito, porque profetizou e cumpriu a sua profecia. Os outros profetas previam o que Deus faria; Ele, sendo Deus, profetizou e realizou tudo quanto profetizara. Ora, esse Profeta previu no seu interior todos os pecados cometidos na humanidade até o fim do mundo. Por isso, nesse olhar há doçura, amor, e este amor se volta para cada um de nós. Inclusive àqueles dentre nós que estejamos mais longe d’Ele, por nossa culpa, nossa culpa, nossa máxima culpa… Nesse crucifixo o olhar é de quem diz: “Se for preciso sofrer tudo por esse, Eu sofro! Ainda que ele rejeite tudo isso, Eu ainda sofro mais para ver se, afinal, ele aceita”.

“Sitio – Tenho sede” (Jo 19, 28), disse Nosso Senhor no alto da Cruz. Quanto gostaríamos de dar água para Ele beber! Ora, Ele tinha sede de almas. O Salvador tem sede da alma de cada um de nós! Portanto, essa água nós podemos Lhe dar! É a nossa alma, o nosso interior, a nossa boa vontade, a nossa contrição.

Peçamos para nós, por meio de Nossa Senhora que está aos pés da Cruz, uma contrição profunda que emende as nossas almas e faça de nós uma razão de alegria para seu Divino Filho. Assim poderemos dizer: “No alto do Calvário, eu fui para Ele uma alegria e não uma dor”.

Penetrou pelos precipícios da morte porque quis nos salvar

Em outro ângulo pelo qual se contempla esse crucifixo, Nosso Senhor parece não tanto apavorado, mas derrotado. E a compaixão, ao menos em mim, se torna mais viva. O olhar d’Ele é igualmente fixo, aterrorizado, mas como quem entende não haver nada para fazer, pois Ele é o Cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo… A única coisa que resta é padecer a pancada atroz e injusta que Ele, inocente, sofrerá por nós, culpados, para podermos salvar as nossas almas. Devemos, pois, dizer do íntimo dos nossos corações aquela jaculatória recitada na Via Sacra e que sempre me impressionou muito, a qual rezo cada vez que passo diante do crucifixo presente em nossa Sede: “Adoramus te Christe et benedicimus tibi, quia per sanctam Crucem tuam redimisti mundum – Nós Te adoramos, ó Cristo, e Te bendizemos, porque pela tua santa Cruz, redimiste o mundo!”

Aí está o onipotente, o Homem-Deus. Há algumas horas perguntavam-Lhe se era Jesus, o Nazareno, e Ele respondeu: “Eu sou.” E tal é o poder d’Ele que todos caíram por terra (cf. Jo 18, 4-6). Nosso Senhor poderia pôr de cara no chão essa multidão que estava em torno d’Ele e que O vaiava. Se Ele quisesse, poderia fazer entrar para os antros mais profundos do Inferno, naquele mesmo instante, a corja de demônios que andavam pelos ares atiçando os homens contra Ele. Nosso Senhor poderia descer da Cruz e, por um império de sua própria vontade, recuperar-Se em toda a força da sua juventude, na plenitude de seus trinta e três anos, a idade perfeita do homem. Mas Ele não quis. E podendo afastar-Se da morte com uma facilidade suma, penetrou pelos precipícios dela, porque Ele quis nos salvar!

Sem dúvida, temos sacrifícios a fazer para salvar nossas almas. Entretanto, como são menores – a perder de vista! – do que o que Ele realizou por nós! Diante disso, não teremos coragem de fazer o sacrifício que nossa salvação exige de nós? Que vergonha é essa?! O tema é tão augusto que quase não comporta a brutalidade da palavra que vou usar: que indecência é essa?!

Imploremos ao Divino Crucificado que nos dê força a fim de fazermos todos os sacrifícios para a salvação e santificação de nossas almas, e trabalharmos pela causa d’Ele e de Nossa Senhora no mundo contemporâneo.

Tudo está toldado!

Vista por outro aspecto, a fisionomia de Nosso Senhor nesse crucifixo corresponde a uma situação para a qual não encontro no vocabulário português nenhuma palavra inteiramente adequada, como é o termo francês “détresse”. É uma aflição que estica ou contorce o homem de todos os modos, e para a qual não há remédio. Nosso Senhor Jesus Cristo parece olhar para o Padre Eterno, e não mais para os homens, e dizer: “Meu Pai, nem em Vós encontro compaixão!” Nessa hora, como que uma misteriosa cortina se interpôs entre a divindade e humanidade d’Ele. Esta encontrava-se na aridez, enquanto a sua divindade, no Céu, estava imersa na glória e na felicidade eternas, inseparáveis da natureza divina. Na sua humanidade, Jesus está olhando para o Céu, como quem diz: “Tudo está toldado, não há saída!”

Em quantas situações da vida nós temos a impressão de que tudo está toldado e não há saída! Nessas horas, saibamos rezar, pedir socorro por meio de Nossa Senhora, e certamente seremos atendidos pelo Céu.

Outra fotografia do mesmo crucifixo apresenta a pobre natureza humana colocada próxima à morte. “Mortis dolores circundederunt me – As dores da morte me cercaram” (Sl 114, 3). Elas vão, dentro em pouco, me devorar. E, Homem que sou, tenho horror da morte! Mas Eu a quero para salvar os homens!”

Tem-se a impressão de que toda forma de aflição O esgotou tanto, que Ele está como que entregue e olhando as suas próprias dores como algo que já se apoderou d’Ele inteiramente. De maneira que só Lhe falta dizer “consummatum est” e morrer. O cálice está bebido. Dir-se-ia que houve um sobressalto, mas há algo da aceitação do fato consumado, onde está presente a doçura das resignações últimas.

Notem o aspecto impressionante da bofetada criminosa dada no rosto, e a chaga que abriu na face divina.

Ó Senhor, pelo Sangue de Jesus e pelas lágrimas de Maria, tende pena de mim!

Esses são os comentários sugeridos por essa esplêndida sequência de fotografias do crucifixo da Igreja de São Francisco de Assis, em São João del Rei. São palavras que nos predispõem para os sentimentos de contrição que devemos ter durante a Semana Santa.

O segredo das almas quem o poderá desvendar? Dentre os que lerão esses comentários poderá haver almas muito desanimadas, talvez sem esperança de se reerguerem inteiramente. Argumentemos diante da justiça divina com os méritos de Jesus, nosso Redentor, e de Maria Santíssima, Co-Redentora, e digamos:

“Senhor, não sou digno de vossa misericórdia, mas a misericórdia de vosso Filho já se exerceu em meu favor. Ele já verteu seu Sangue, e eu estava na lista dos filhos por quem Ele morreu, pois sou homem, e Nosso Senhor quis morrer por todos os homens. Fui remido, e quando Nossa Senhora chorou, verteu lágrimas também por mim. Eu alego esse Sangue e essas lágrimas, e Vos digo, por meio de Maria Santíssima: Ó Senhor, pelo Sangue infinitamente precioso de Jesus e pelas lágrimas de Maria, a quem amastes tão especialmente, Senhor, tende pena de mim!”

É o que cada um de nós deve dizer na Semana Santa.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 3/4/1985)

Revista Dr Plinio 253 (Abril de 2019)

Corpo Místico de Cristo e comunhão dos santos

A História é profundamente marcada por dois acontecimentos supremos: o pecado original e a Redenção. Esta última abriu para os homens um tesouro de graças cujo aproveitamento influencia o desenrolar dos acontecimentos na Terra. Eis a matéria desenvolvida por Dr. Plinio, continuando seus comentários à Carta Apostólica “Annum Ingressi”, de Leão XIII.

 

Quando, do alto da cruz, Nosso Senhor Jesus Cristo proferiu o “consummatum est” (Jo 19,30) e entregou sua alma, foi resgatado o gênero humano. O homem, colocado pelo pecado na postura sem remédio de um devedor absolutamente insolvente, se reabilitou. Franqueado estava para ele o caminho da virtude, aberta a porta do Céu. Esse imenso triunfo foi uma vitória pessoal de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Estava, pois, anulada a vitória obtida pelo demônio no Paraíso terrestre.

Miríades de lutas individuais

Restava a cada homem fazer uso da graça de Deus, trilhar o caminho franqueado, transpor os umbrais da porta aberta; uma série de lutas pessoais, pelas quais cada qual se salva a si mesmo.

Na verdade, essas lutas se iniciaram antes de Cristo. Na previsão dos méritos do Redentor, a graça foi dispensada aos homens desde o primeiro momento depois da queda. Graça sempre suficiente, pouco abundante para os povos gentios, mais profusa para o povo eleito, que vivia à sombra da Sinagoga, prefigura da Igreja. Aqueles que venceram essa luta pessoal aguardaram no Limbo a salvação, entrando no Céu quando se efetuou a Redenção. Mas essa graça se tornou incomparavelmente mais torrencial, especialmente para os fiéis, depois da Redenção. As miríades de lutas individuais que tornam aproveitável para cada qual a vitória alcançada por Nosso Senhor Jesus Cristo, se efetuam com o recurso a três armas: a oração, pela qual o homem pede a graça de Deus; a resistência às tentações, pela qual corresponde à graça e cumpre a Lei; e a penitência, pela qual expia seus pecados.

A Redenção, a graça e o Corpo Místico de Cristo

Como Nosso Senhor Jesus Cristo, com os sofrimentos crudelíssimos e infinitamente meritórios de sua Paixão e morte, pagou pelos homens o preço do resgate, Deus abriu-lhes a porta do Céu, e franqueou-lhes os meios de lá chegar.

A graça é, pois, um dom comprado à Justiça Divina por nosso Redentor. Em rigor, todos os méritos de Jesus Cristo só a Ele pertencem, pois são fruto das dores que sofreu. Contudo, numa efusão de sua misericórdia, quis Ele oferecer esse tesouro infinito por nós.

Tornamo-nos, assim, coproprietários desse capital inestimável que são os méritos de Cristo.

Formou-se, desse modo, uma sociedade, composta por Jesus Cristo e por todos os homens que Ele salvou. Sociedade mística, pois seu capital é sobrenatural, e sobrenatural é o plano em que ela vive e produz seus efeitos.

Tal sociedade existe à maneira de um corpo, em que Jesus Cristo seria a cabeça. Com efeito, na medida em que cada membro da sociedade está unido a Jesus Cristo, d’Ele recebe a vida da graça, que é fruto de seus méritos. Se recusar a graça, rompe sua participação na sociedade e perde a vida sobrenatural.

Numa bela metáfora, São Paulo chama essa sociedade Corpo, e a Jesus Cristo chama de cabeça desse corpo. A Igreja tornou corrente a expressão “Corpus Christi Mysticum”.

Comunhão dos santos

Se bem que os méritos de Nosso Senhor Jesus Cristo sejam infinitos e, pois, suficientes para expiar inteiramente pelo gênero humano, quis Ele que uma parte do preço do resgate ficasse por pagar. E pagar pelos próprios homens.

Em outros termos, estamos todos reunidos. Mas a maior parte das graças que recebemos está na proporção de nossos méritos. A méritos abundantes correspondem graças copiosas, a méritos menores, uma menor afluência.

Note-se, entretanto, que esse princípio não tem uma aplicação meramente individual, de maneira a entender-se que a maior ou menor abundância de méritos de uma pessoa acarreta só para ela um acréscimo ou diminuição de graças.

De um lado, porque a humanidade constitui um só todo aos olhos da Justiça Divina. De outro, porque nossos méritos não são senão a frutificação da graça em nós. Ora, a graça é, por sua vez, fruto dos méritos de Nosso Senhor Jesus Cristo que a todos pertencem. Por isso, todo mérito que adquirimos representa não só um enriquecimento para nós, mas para a Igreja inteira. A contrario sensu, toda graça que míngua ou se extingue num homem empobrece toda a Igreja.

No fato de os méritos e deméritos de alguém projetarem efeitos sobre outros homens consiste o dogma da comunhão dos santos. O termo “santos” emprega-se aqui num sentido especial, referindo-se aos fiéis, e não aos santos canonizados.

O tesouro da Igreja

Os méritos infinitamente preciosos de Jesus Cristo, e nossos méritos, constituem pela comunhão dos santos o capital da sociedade sobrenatural que é o Corpo Místico. Esse capital é designado pelo nome de “tesouro da Igreja”.

Acrescer esse capital por ações meritórias constitui um meio de acrescer a efusão da graça em todo o mundo

— enriquecendo esse tesouro —, razão pela qual, na luta da Igreja contra seus adversários, é de primordial importância praticar de todos os modos tais ações.

Cada vez que alguém resiste a uma tentação, toma uma resolução virtuosa, faz uma oração, pratica um ato de penitência ou uma obra de misericórdia espiritual ou temporal, acresce o tesouro da Igreja.

Explicam-se por esta forma as Ordens contemplativas. Sem qualquer ação externa, elas vivem para acrescer com o contributo humano o tesouro da Igreja.

Aspecto sobrenatural e aspecto jurídico da Igreja

Posto isso, vemos que há na Igreja Católica, considerada enquanto sociedade de fiéis, dois aspectos indissociáveis. Um sobrenatural e invisível — a sociedade das almas na comunhão dos santos e no Corpo Místico. E outro visível e jurídico. Neste último, a Igreja é uma imensa monarquia com aspectos aristocráticos e democráticos.

Enquanto governada em todo o universo pelo Pontífice Romano, que tem jurisdição direta e plena sobre todos os Bispos e sobre cada fiel, é uma monarquia. Enquanto desse governo participam os Bispos sob a autoridade do Sumo Pontífice, mas com jurisdição própria e não delegada por este, a Igreja é aristocrática.

A situação da Diocese na Igreja Universal assemelha-se por muitos lados à do feudo na monarquia medieval. E as relações do Bispo com o Sumo Pontífice oferecem mais de um ponto de analogia com as que existiam entre o senhor feudal e seu suserano.

O traço democrático existe na Igreja na escolha dos Pontífices, Bispos e Sacerdotes, que não obedece, como no Antigo Testamento, a restrições de caráter familiar. Entre os hebreus, determinou Deus que os sacerdotes só pertencessem à tribo de Levi. Contudo, na Igreja o sacerdócio em todos os graus, inclusive o Papado, pode ser exercido por plebeus.

Reflexo na ação da Igreja

Em ambos os aspectos, sobrenatural e jurídico, a Igreja pode ser vista como um organismo de luta.

Por seus órgãos visíveis — o Romano Pontífice, seus Cardeais, as Congregações Romanas e outros órgãos que constituem a Santa Sé, os Patriarcas, Arquimandritas, Arcebispos, Bispos e Clero secular, Clero regular, religiosos não-sacerdotes e religiosas distribuídos em Ordens e Congregações, as Ordens Terceiras, as associações de fiéis — é ela um imenso organismo que luta proclamando a verdade, dirigindo as almas para

a virtude e distribuindo os sacramentos.

A força desses guerreiros, a eficácia de suas armas está toda na graça a qual, pela comunhão dos santos, se distribui por toda a terra.

Acima dessa imensa sociedade, e assistindo com suas preces a nossa luta, estão a Igreja padecente, a Igreja gloriosa e toda a Corte celeste, tendo no ápice, junto ao trono de Deus, a Rainha do Céu e da Terra, Maria Santíssima que é o “General dos Exércitos de Deus” (São Luís Grignion de Montfort, “Tratado”, cap. 1, nº 28).

Como já vimos antes, essa assistência celeste se realiza também com intervenções, visíveis ou não, nos acontecimentos da terra.

Assim, a Cidade de Deus é e será até a consumação dos séculos “ut castrorum acies ordinata” — “como um exército em ordem de batalha”.

Isto segundo uma visão estática. Pois, segundo uma visão dinâmica, a realidade se apresenta muito mais rica. Consideremo-la em um quadro histórico determinado: a grande crise religiosa triunfalmente superada pela Igreja no século XIII.

Atuação de homens providenciais

A sensualidade, sob todos os seus aspectos (depravação de costumes, gosto imoderado de prazeres), penetra a fundo na Cristandade e ameaça dominá-la. A Providência suscita, então, dois varões, São Francisco de Assis e São Domingos de Gusmão, e faz o Papa ver em sonho a Basílica de Latrão em risco de ruir, e sustentada pelos dois fundadores (a Basílica de São João de Latrão, e não a de São Pedro, é a catedral de Roma e do mundo, simbolizando a Igreja universal).

Cada qual age num meio diferente para a regeneração da Cristandade.

São Francisco ensina o desapego dos bens da terra; São Domingos combate as heresias. Em torno deles formam-se falanges de homens e mulheres, dispostos à imitar-lhes os exemplos e auxiliar-lhes os esforços. Surgem sucessivamente as Ordens primeiras, dos frades; as segundas, das freiras; e as terceiras, dos leigos. À voz dos fundadores e de outros apóstolos, as multidões se comovem, as heresias fenecem, o vício decai, a Fé e todas as virtudes voltam a seu primitivo esplendor.

No plano natural, o movimento franciscano se nos apresenta com os seguintes elementos:

1º) um homem de personalidade impressionante, que põe todos os seus recursos a serviço de um altíssimo ideal;

2º) devoções e virtudes que ele prega, as quais, se não são novas, ao menos são por ele apresentadas sob nova luz: a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, a pobreza evangélica, etc., nascendo assim a espiritualidade franciscana;

3º) auxiliares que ele forma e organiza solidamente nas três Ordens; 4º) ele se dirige ao povo, e o conquista.

Com pequenas adaptações, o esquema é o mesmo no plano sobrenatural: é Deus que suscita seus homens de eleição, que convida por sua graça outros homens a lhes servir de discípulos, que lhes dá vocação para a vida religiosa, que atrai para eles as multidões, que toca a alma das multidões quando eles falam, que enfim lhes dá o êxito.

Claro está que nada disto se realizou sem a cooperação do livre arbítrio de cada homem. Mas, enfim, os planos natural e sobrenatural se tocam e, mais do que isso, se interpenetram, do mesmo modo como a vida embebe todos os elementos materiais que formam uma planta.

Em termos filosóficos, no reino vegetal só pode haver vida se houver planta (não há vida vegetal em abstrato); de outro lado, a planta só existe na ordem da vida (uma planta desenhada num papel, por exemplo, não é verdadeiramente planta).

Assim também, na ordem sobrenatural a graça só eleva as criaturas que são puro espírito (anjos) ou dotadas de alma espiritual (homens); por sua vez, as criaturas só podem ser elevadas à vida sobrenatural pela graça.

E assim fatos tão pequenos na aparência — frades que pregam, conventos que se fundam, povo que reza — são ricos em profundo significado, e sua fecundidade resulta de uma ação na qual estão empenhados os mais altos desígnios de Deus, os tesouros mais ricos de sua sabedoria e de sua bondade.

Dessas ações tão modestas na aparência resultaram também os acontecimentos mais profundos da História da humanidade.

Plinio Corrêa de Oliveira

Quem responderá pela perdição dos inocentes?

O amor de Jesus Cristo para com todos os homens, sua predileção pelos inocentes e sua misericórdia para com os pecadores, explicam sua severidade contra os que maculam a inocência ou desviam a contrição dos arrependidos.

 

Fala-se muito freqüentemente, e com razão, do amor que o Divino Salvador votou às almas pecadoras, arrependidas ou não: a estas, perseguindo com santa e afetuosa perseverança, até conseguir delas uma real correspondência à graça; àquelas, franqueando de par em par, com divina generosidade, as portas de seu Coração. Entretanto, fala-se infelizmente muito menos do amor que Nosso  Senhor Jesus Cristo votou às almas inocentes, e dos extremos de zelo com que defendeu contra as seduções do mundo, e contra as investidas dos fautores de escândalos, as ovelhas fiéis que jamais se afastaram do redil do Bom Pastor.

Maldade dos que desviam os inocentes

Um dos episódios mais tocantes do Santo Evangelho é, sem dúvida, aquele em que o Divino Mestre, fazendo aproximar de si os pequeninos, os afagou meigamente e prometeu o Reino do Céu àqueles que lhes fossem semelhantes.

Mas o que eram estes pequeninos, a quem Nosso Senhor com tanta ternura amou, senão os representantes de todas as almas inocentes, de todas as idades, em todos os tempos e em todos os  lugares, que o Espírito Santo haveria de suscitar na Igreja de Deus? E a quem se dirige aquela tremenda ameaça, na qual jamais devemos pensar sem medo, de que seria melhor que os que  escandalizassem a algum destes pequeninos fossem atirados ao fundo do mar, senão aos que procurassem desviar do bom caminho as almas inocentes?

Cada alma inocente constitui como que uma província de eleição no Reino de Deus. Para salvar cada uma destas almas, Nosso Senhor Jesus Cristo se encarnou, padeceu e morreu na Cruz. E ainda que a Redenção fosse necessária para a salvação de uma só alma, Nosso Senhor teria sofrido generosamente tudo quanto sofreu, para operar efetivamente tal salvação.

Assim, pois, o valor de cada alma inocente é o próprio valor do Sangue infinitamente precioso de Nosso Senhor Jesus Cristo. E atirar ao abismo do pecado mortal uma alma inocente é desperdiçar  criminosamente os benefícios da Redenção. Por aí se compreende o opróbrio que pesa sobre aqueles que, por seu exemplo, por suas palavras por suas obras, por sua influência, arrastam para o pecado qualquer alma inocente, por mais ignorante e falha de dotes intelectuais que seja, uma vez que o valor da alma não se mede por sua cultura nem por sua inteligência, mas pelas  considerações que acima externamos.

O pecado dos que prejudicam as almas contritas

Não é muito menor a responsabilidade dos que fazem reincidir no pecado as almas penitentes. Para medir quanto desagrada a Deus que se procure afastar do bom caminho as almas sobre as quais Ele restaurou seu Reino, bastará que se tomem as parábolas mais tocantes do Santo Evangelho.

Que diria o pai do filho pródigo, aquele pai generoso e bom que acolheu com tais extremos de contentamento o filho contrito, se depois do festim em que se celebrou a volta do infiel, depois de  restabelecida a paz no lar e de reinstalada nele a alegria que sumira com a ausência do filho ingrato, que diria ele se depois de tudo isto um amigo pérfido dos maus tempos passasse pela casa paterna e, com solicitações infames, procurasse arrastá-lo novamente à vida má que levara?

Tomemos agora a parábola do Bom Pastor. O que  diria ele, que dá a vida por suas ovelhas, se, ao retornar do fundo do precipício aonde por mil perigos tinha ido salvar a ovelhinha extraviada, o lobo dele se acercasse para lha arrancar dos braços? Ele, que expusera sua vida para salvar a ovelhinha, não haveria de enfrentar animosamente o lobo, para a defender contra mais este risco?

Disse Nosso Senhor que Ele não veio destruir o arbusto partido, nem extinguir a mecha que ainda fumega. Pelo contrário, veio Ele reerguer o arbusto que enfermou, e reacender a mecha que ventos hostis extinguiram quase por completo.

Mas o que é um pecador contrito, que luta penosamente contra seus sentidos em revolta, senão um arbusto partido, que foi reerguido sobre sua base pelo Divino Jardineiro, e que, ainda fraco, se inclina fortemente sob a pressão da menor brisa? E que maior pecado haverá, do que partir de novo, e quiçá de modo irremediável, o arbusto que o próprio Deus carinhosamente consertou? O que é um pecador contrito, senão uma mecha fumegante que começa, lenta e penosamente, a se reacender? E o que haverá de mais desagradável a Deus, que não quer a morte do pecador mas sim que  ele se converta e viva, do que a ação cruel e ímpia dos que extinguem deliberadamente esta mecha, e matam na alma ainda convalescente os germes promissores de uma vida que começava a se reanimar?

Pela mesma razão em virtude da qual o Salvador amou o pecador contrito, é-Lhe sumamente odioso que alguém se esforce por arrastá-lo novamente à perdição. Um outro episódio do Evangelho
o demonstra de modo exuberante.

A indignação divina contra os ímpios

Todos conhecem suficientemente a cena célebre do Divino Salvador empunhando um zorrague, e enxotando do Templo de Jerusalém os mercadores que ali faziam um comércio inteiramente profano. Diz a Sagrada Teologia que cada alma é um templo do Divino Espírito Santo. Fazer uma alma cair em pecado é enxotar o Divino Espírito Santo do templo que Lhe foi conquistado pelo Precioso Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, é profanar este templo, é transformá-lo, de templo de Deus, não apenas em lugar profano, mas em templo de Satanás.

Assim, se Nosso Senhor fustigou com um implacável zorrague aqueles que profanavam o Templo de Jerusalém, construído com material precioso pela piedade dos judeus, com que extremos de  indignação não deve desejar que seja atirado para longe do pecador aquele que, seduzindo-o para o mal, profana um templo espiritual, cujo preço não foi o ouro nem qualquer material precioso, mas o próprio Sangue de Cristo?

A prova disto está nas frases cheias de censura que Nosso Senhor atirou aos fariseus. Para que deu Nosso Senhor a estas frases tal publicidade? Se Ele queria chamar a atenção dos fariseus para o  estado lastimável em que se encontravam suas almas, não o poderia ter feito de modo mais reservado? Se o fez publicamente, não se pode licitamente conjecturar que o tenha feito a fim de destruir energicamente o prestígio dos fariseus junto do povo, impedindo-lhes, assim, que fossem nocivos a este, e por assim dizer fustigando-os com o zorrague de sua palavra, para os enxotar para longe das almas que eles desejavam perverter?

“Não!” às misericórdias mal entendidas

Rei de todas as almas em geral, Jesus Cristo é implicitamente Rei de cada alma, e Ele governa cada alma com a solicitude, com o afeto, com a atenção com que a governaria se fosse a única alma sobre a qual se exercesse seu império.

Jesus Cristo, como Rei das almas, é o modelo de todos os reis. Rei de misericórdia e de amor, não exerce Ele seu reinado com outro intuito que não o de beneficiar a alma que é seu reino. Nenhum de nós deixaria de chamar traidor a um rei que não empregasse todos os recursos de seu talento, e todas as energias de seu poder, a fim de preservar de uma agressão injusta seu país. Será  porventura Nosso Senhor menos perfeito? Não haverá uma blasfêmia em imaginar que, tocado de um falso amor para com o agressor, Ele haveria de aconselhar a seus soldados, que somos nós,  que negligenciássemos a defesa de seu Reino?

Haveria ele de oferecer o inocente em holocausto ao pecador, dar impunidade ao pecador para devorar o inocente, com a esperança de assim conquistar para si o pecador?

É porque o “Legionário” jamais pôde admitir esse absurdo, que ele se levantou sempre contra as misericórdias mal entendidas, as paciências ingênuas e imprudentes, as “habilidades”  contemporizadoras e criminosas, que, com o intuito de consumar uma arriscada manobra apostólica, de resultados mais do que duvidosos, expõem à perdição as almas inocentes ou contritas, na  problemática esperança de atrair o fautor de heresias. E se ele se não deixar enternecer? Nem o amplexo supremo do Divino Mestre enterneceu o traidor “que melhor seria que não tivesse nascido”. Se não se enternecer o agressor, quem prestará contas a Deus pelas almas que ele tiver devorado, pelos arbustos que partir, pelas mechas que extinguir, pelos filhos que arrastar para longe da casa paterna, nos antros malditos onde ruge a impiedade e espuma a luxúria?

Para o pecador, mesmo não contrito, toda a misericórdia. Mas essa misericórdia não deve ser nem tão arriscada nem tão imprudente que chegue à suprema crueldade de expor à perdição as almas que foram resgatadas pelo Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 70 (Janeiro de 2004)

(Excertos do artigo do “Legionário”, de 27/10/1940. Título e subtítulos nossos.)

O sacrossanto olhar de Jesus

Para Dr. Plinio, o Evangelho era um tesouro de onde se tiram “coisas novas e antigas”. Com seu apurado discernimento, tecia ele considerações de uma profundidade emocionante a propósito de  vários aspectos e passagens desse texto sagrado. Por exemplo, sobre algo que o comovia entranhadamente: o olhar do Divino Mestre.

 

Em Jesus, o semblante, as expressões da face e até o timbre da voz não são senão comentários ao que mais O exprime, isto é, seu olhar. Este é sumamente ordenado e feito de gradualidades.

Quando fulgura, é como um sol. Quando não, mostra-se sempre de um certo modo, semelhante ao que representa o barítono para a música vocal: nem muito alto nem muito baixo.

Não é um olhar que sai de si para penetrar nos outros, a não ser raramente. Antes, convida a que se entre nele, para entabular elevados colóquios conosco. Olhar muito sereno, aveludado quase…  No fundo, porém, revelando uma sabedoria, retidão, firmeza e força que nos enchem ao mesmo tempo de encanto e de confiança.

A meu ver, todas as perfeições existentes na ordem do Universo  — a das estrelas como as de uma Gruta de Capri, ou as de qualquer outra maravilha — estão contidas no olhar de  Nosso Senhor Jesus Cristo,  e os estados de alma d’Ele correspondem a todas as belezas do mundo. Por isso, ao apreciarmos algum esplendor da criação, seria bastante proveitoso meditarmos na excelência do olhar d’Ele que se acha espelhada naquela grandeza criada.

Por exemplo, quando estou sozinho e contemplo o céu todo estrelado acima de mim, experimento a curiosa impressão de que sou visto, e de que aquele firmamento todo converge sobre mim. Esta é a sensação que se tem quando Nosso Senhor nos olha.

É todo um céu que se debruça sobre nós. Mas quando somos nós que nos pomos a fitá-Lo e colhemos o fundo de seu olhar, nos sentimos melhor do que ao sermos olhados por Ele. Pois ali, no conjunto dos olhares d’Ele, a ordem do Universo se reflete inteiramente, as regras da estética se resumem de modo perfeito, os princípios da lógica se articulam de maneira admirável. Numa palavra, o “pulchrum” e o significado interno de tudo quanto existe estão contidos no olhar de Nosso Senhor.

De sorte que, por exemplo, ao conversar com Lázaro, com Marta ou Maria Madalena, a fisionomia, a voz e o olhar de Jesus — sem indiscrição alguma — iam muito naturalmente mudando, e em sua expressão se podia compreender um número incontável de coisas.

 Olhar que acompanha a História

Por isso mesmo, considero o olhar de Nosso Senhor Jesus Cristo como se fosse quase outro Evangelho, e uma prodigiosa “leçon des choses”. De fato, Jesus é Rei do Universo e, portanto, Rei da História. Não o é apenas da história das nações, mas também da existência individual de cada um de nós. E os desígnios d’Ele vão se fixando e se traçando na medida em que a nossa trajetória neste mundo se desenvolve. Ele vai olhando para nós, e se pudéssemos vê-Lo em cada momento, teríamos o sentido daquilo que estamos vivendo a cada passo.

Imaginemos Nosso Senhor por ocasião da multiplicação dos pães, considerando o povo reunido em torno d’Ele: “Tenho piedade desta multidão” (Mt 15, 32). É concebível que Ele tenha proferido  essa frase com os olhos fechados? Não pode ser.

Se os olhos de Jesus não estivessem abertos enquanto Ele falava ou caminhava, teria atraído aquela multidão? Claro está que, se assim o quisesse, Nosso Senhor tocaria aquelas almas mesmo sem lhes dirigir o olhar. Porém, não procedeu dessa forma, e foi o olhar d’Ele que as atraiu.

Outra passagem do Evangelho na qual me parece que o divino olhar do Salvador se reveste de maior expressividade é o momento em que Jesus, flagelado e coroado de espinhos, foi apresentado ao ovo por Pilatos. Para mim, excetuando o instante em que Nosso Senhor fita o Apóstolo Pedro que acabara de negá-Lo, não há episódio do Evangelho onde o papel do olhar se manifesta tão evidente como no “Ecce Homo”. Tanto mais quanto, naquela circunstância, o Redentor não proferiu qualquer palavra, permanecendo num majestoso silêncio.

Cumpre ressaltar, aliás, o fato impressionante de que os algozes de Nosso Senhor, quando O esbofetearam durante a Paixão, não suportaram o divino olhar que os fitava. Para consumar as suas  atrocidades contra Jesus, tiveram de Lhe vendar os olhos…

 Devoção ao Sacrossanto olhar

Essas considerações nos fazem compreender bem que noite tremenda se fez para o mundo quando o olhar d’Ele se extinguiu! Noite na qual se teria vontade de pedir a Deus que nos levasse desta Terra. Pois uma vez que alguém se habituou ao convívio daquele olhar, tendo este se apagado, nenhum sentido restaria para se continuar a viver no mundo. Para fazer o quê? Turismo em alguma linda cidade européia? Visitar Paris, conhecer Viena? Como estas nos parecem pobres e insípidas, em comparação com a graça de ver aquele divino olhar! As maravilhosas jóias da casa d’Áustria, a extraordinária coroa do  Sacro-Império, nada seriam para o homem sobre quem pousaram os olhos misericordiosos do Salvador.

Muito embora a devoção ao Sagrado Coração de Jesus me fale tanto à alma, na realidade toca-me ainda mais a devoção ao olhar d’Ele. Talvez, pela razão mesma de ser o olhar a melhor expressão do coração. E esta seria, caso não o impugnasse a Teologia, a “devoção ao Sacrossanto  Olhar”…

A partir dessa ideia, poder-se-ia introduzir no “Anima Christi” outras  invocações como: olhar padecente, olhar misericordioso, olhar de divino Juiz… penetrai em mim e fazei-me entrar em vós.

Poder-se-ia, igualmente, compor uma “Ladainha dos olhares de Jesus”, a qual reluziria de uma beleza arrebatadora. Concluo, fazendo notar que, quando se analisa assim o Evangelho, encontram- se nele profundidades insuspeitadas. Suas páginas constituem um tesouro repleto de “nova et vetera” — coisas antigas e recentes.

Tudo quanto acima foi dito nos revelou algo imensamente valioso, mas é natural que se procurem também outras gemas preciosas nesse tesouro. As jóias que acabamos de admirar, a nós nos regalam, porque são as meditações que se acrescentam ao cântico antigo, em função de nossa vida, nossas batalhas e nossos sofrimentos nesta terra de exílio.

Plinio Corrêa de Oliveira

Considerações sobre a Sagrada Face

Algumas representações de Nosso Senhor existentes nas catacumbas não se parecem com Ele. Aos poucos, a piedade católica compôs a Face do Redentor e, quando encontraram o Santo Sudário,  conferiu impressionantemente. Na Sagrada Face, conforme se analise, estão insinuadas todas as formas possíveis de beleza da cruz.

 

Analisando a face humana, notamos que ela se compõe de duas linhas. Uma vertical e outra horizontal. Uma linha parte da fronte e desce à base do  queixo, de maneira que toda a horizontalidade das sobrancelhas, dos lábios e do queixo é percorrida sutilmente por uma verticalidade.

A face humana tem aspecto de cruz

Essa ideia de horizontalidade é acentuada pelas orelhas que têm no aspecto do homem uma importância que ninguém imagina! Mas é só um indivíduo não ter uma orelha que todo mundo nota. Se não tiver as duas orelhas, brame! Nenhum de nós olhou hoje para as orelhas dos outros, mas é só aparecer um sem orelha que se nota imediatamente, porque completa a fisionomia de modo imponderável, interessante, inesperado.

Trata se de saber qual é a altura ideal que na face humana deve ter a linha horizontal para completar a perpendicular, e dar esse aspecto de cruz que a face humana tem.

Poderíamos imaginar cruzes bonitas com a trave horizontal a diversas alturas. E esse mesmo princípio é enunciado de modo interessante pelo rosto humano, criando várias alturas do travamento da cruz. Podemos imaginar uma cruz bonita com o braço em cima, quase em forma de “T”; ou mais próximo do meio, contanto que não passe de certo ponto, pois deixaria de ser uma cruz na posição normal e passaria a ser cruz de São Pedro.

Depende de certa proporção entre o tamanho e a largura para indicar onde deve ficar a altura. A harmonia do rosto humano tem muita relação com isso. Esses indivíduos que interpretam os traços do rosto humano, etc., pensam que a harmonia consiste só em tomar esculturalmente cada traço e ver se é bonito. Mas isso dá a beleza, não o charme. O charme é dado, no fundo, por essa  proporção. E sempre que se encontra um rosto com certa expressão ou certo charme, deve-se procurar isso, porque no fundo encontra. É até um exercício interessante procurar o charme dentro  da fisionomia.

Vemos descrições de montanhas, de panoramas bonitos, e depois exclamações: “Como Deus foi sábio! Como foi bom ao criar isso! …” Eu concordo perfeitamente, mas por que não falam da face humana que vale muito mais do que qualquer montanha? A mais arrebentada das faces humanas contém mais elementos de beleza do que uma montanha linda. O homem é o rei da Criação, o resto é uma ralé em comparação com ele. Qualquer homem que quisesse saberia pôr em relevo algum cantinho de sua alma por onde ele tivesse mais dignidade do que o Himalaia, o qual, afinal, é uma imensa trouxa de terra e pedras.

Na Sagrada Face estão insinuadas todas as formas possíveis de beleza da cruz

Da Sagrada Face eu tenho a impressão de que é impossível desvendar qual é a proporção, porque tudo é calculado de tal maneira que dentro da discrição dela nada é enfeitado. Estão insinuadas todas as formas possíveis de beleza da cruz, conforme se analise.

Imaginem que nos dessem uma imagem da Sagrada Face na qual faltasse apenas traçar as sobrancelhas; e um de nós deveria fazer esse traço. Eu ficaria muitíssimo hesitante. Onde pôr as sobrancelhas ideais para a Sagrada Face? Quer dizer, um milímetro faz diferença. Como desenhar? Arqueadas? Retas? De que jeito?

Prestem atenção, elas estão presentes na Sagrada Face de maneira tão discreta, que nem nos lembramos do problema das sobrancelhas. Mas em todas há um mesmo tato que indica a mesma coisa e que guia por uma tradição de piedade e bom gosto os autores. E que indica uma forma.

Depois, a barba aumenta a linha perpendicular. Enquanto o cabelo caído e desdobrando-se pelos lados parece acrescer a linha horizontal. Então há possibilidades de horizontais dentro disso a perder de vista! É uma feeria de cruzes.

A Sagrada Face tem isso que também é insondável: vamos olhar nas catacumbas as representações de Nosso Senhor, e algumas não se parecem com Ele. Por exemplo, a pintura do Bom Pastor representa um pastor qualquer do campo romano com uma ovelha nas costas. É digno, estou longe de depreciar; mas não é a Face d’Ele. Depois, aos poucos, a piedade católica compôs a Face de Nosso Senhor e, quando encontraram o Santo Sudário, conferiu impressionantemente.

A Face d’Ele é tão perfeita que qualquer expressão da fisionomia que se queira comunicar-lhe – de tristeza, dor, majestade, bondade ou qualquer outra –, com um pequeno aceno fica  expressivíssima! São os opostos harmônicos. Não há face que seja mais expressiva e que menos precise mover-se para conter um mundo de expressões do que a d’Ele.

Mais ainda: as atitudes do Corpo divino importam pouco, porque a Sagrada Face absorve tanto a atenção que o resto fica quase como se fosse um busto.

Olha-se tanto para a Face que nem se deita bem a atenção sobre os pés divinos. Presta-se, isso sim, alguma atenção nas mãos.

Dimensões do universo e movimentos da alma humana

De posse desta noção, nós nos perguntamos o que fazer da ideia de São Tomás de Aquino segundo a qual o círculo é a mais perfeita figura, uma vez que é o efeito que volta à sua própria causa.

Então poderíamos nos perguntar se a cruz não é uma figura mais bonita. A cruz não é, propriamente, uma figura geométrica contínua, não é um triedro nem nada disso, são dois paus. Mas contém as duas dimensões do universo e os dois movimentos da alma humana.

A alma humana encontra um gosto específico em relacionar-se para cima e para baixo; e outro gosto especial em relacionar-se para o lado: transcendência e semelhança.

Ninguém pode viver sem essas duas disposições de alma. Por exemplo: alguém vive perpetuamente entre os inferiores e os superiores sem nunca encontrar um congênere, quando encontra faz uma festa!

Mas de uma vida só com um congênere dizemos: “Que tédio!” É de não poder suportar porque a alma humana pede, exatamente, esses dois movimentos. Então, deve haver – mas eu não tive tempo de refletir – no fundo da estética um princípio pelo qual se encontra também na natureza a presença da cruz como a coisa mais bonita que há.

Posto a forma esférica da Terra – agora a coisa é muito improvável, estou apresentando pontinhas de reflexão inacabada apenas pelo desejo de dar tudo –, poder-se-ia dizer que o meridiano e o eixo, projetados de certo modo, a sombra deles num plano daria uma cruz? Uma pergunta que se poderia fazer, mas é um pouco laboriosa.

Entretanto como se pode caracterizar isso numa Terra que é esférica? Por que isso não vale para qualquer ponto da esfera?

Disseram-me haver estudos demonstrando que o centro da Terra está no Santo Sepulcro. Isso me interessaria muito saber se houvesse dados a esse respeito, porque é uma coisa magnífica! Quando eu era pequeno, caçoavam nas aulas de Geografia do conceito da Idade Média, de que Jerusalém era o centro do mundo. E zombavam da ideia da esfera, dando a objeção que indiquei. E a objeção me deixava perplexo, naturalmente não saberia como responder, mas internamente pensava: “Demonstrem como quiserem, deve ser o centro, um dia isso aparecerá!”

De maneira que eu fico contente em saber e vai na linha das elucubrações que eu fazia a hipótese que estava lançando. Mas conhecer o critério segundo o qual isso é o centro me interessaria no mais alto grau. Serviria para uma série de outras elucubrações.

O dormir e o levantar-Se de Nosso Senhor

O perfil moral de Nosso Senhor, a meu ver, é inabarcável. Porque olhando para Ele – aliás também se dá de um modo curioso com Nossa Senhora, cuja verdadeira efígie, não conhecemos – temos a impressão de como a humanidade d’Ele, santíssima, resplandece de divindade. É natural. Jesus é tão pleno que em qualquer estado de alma em que esteja, temos a impressão de que Ele é aquilo e só aquilo.

Por exemplo, imaginando Nosso Senhor dormindo na barca, temos a impressão de um sono que não é o de bicho, desmaiado, mas é o repouso do equilíbrio perfeito da alma com o corpo. Não é, portanto, o sono do que ronca, gesticula, se move, sua, grita. Isso é uma coisa horrorosa!

Mas é um sono placidíssimo, em que a alma fica naquela distensão agradável, tranquila, porque o corpo inteiro não está se movendo e ela toda fica colocada sob a mão de Deus. E se tem a impressão de um repouso, de uma distensão e de uma união com o Padre Eterno e com o Divino Espírito Santo na inocência do sono, uma coisa que não se pode ter ideia! Então, tem-se vontade de dizer: “Olha, eu não creio que acordem a Ele nunca, porque de vê-Lo dormir eu vivo.

Eu tenho coragem para qualquer coisa, só de vê-Lo dormir!” Em certo momento os Anjos O acordam. Já pensaram o que é o despertar d’Ele? Sereno, tranquilo, abre os olhos… um caudal de compreensão de tudo, e começa a exercer, desde logo, um poder a respeito de todas as coisas, com a naturalidade com que um de nós move os braços. Ele Se levanta, “os ventos e os mares Lhe obedecem”(cf. Mc 4, 39). O erguer-Se de Nosso Senhor tem que ser mil vezes mais formoso do que o erguer-se do Sol. Não tem comparação!

Imaginem, por exemplo, de madrugada Ele se levantar e um Apóstolo, que acordou mais cedo, está na penumbra e se imagina não visto por Ele, começa a vê-Lo no momento em que Ele está, na aparência, inteiramente só, e aí começa a mover-Se, de repente Se levanta. E diante de nós aparece Ele, alto e majestoso. Nasceu o Sol! Se Sol se pusesse naquela hora, se Ele se levantasse no ocaso eu diria: “O Sol é uma bola inútil! Deixa de fazer esses seus sinais insignificantes porque você está reduzido a zero! O Sol nasceu aqui… vai ser dia porque Ele acordou! Não me venham com mais nada, o resto é lorota, está acabado!”

Estados de alma do Redentor

Vejamos agora os estados de alma. Na hora da compaixão temos a impressão de que Nosso Senhor é de tal  maneira compaixão, que Ele nem é capaz de outro sentimento a não ser este. Mas no momento da oração, tem-se a impressão que Ele se isola de tudo e fica em oração. E se alguém de longe O visse rezar poderia dizer: “A minha vida inteira não farei outra oração senão repetir a  d’Ele, porque depois que O vi rezar, não sei fazer outra coisa senão me lembrar daquilo e orar. O que são os meus Padres-Nossos, as minhas Ave-Marias em comparação com a oração feita por Ele?! Absolutamente nada!”

De repente é a ação. “Vamos ao mar da Galileia!” Pran!

Quer dizer, tudo isso tem uma tal grandeza que Nosso Senhor, em cada atitude da Alma, é como se Ele fosse aquilo! Ele é a Ação, o Sono, a  Compaixão, a Cólera, a Justiça. Aquela resposta aos fariseus: “Então dai a César o que é de César, a Deus o que é de Deus…” (cf. Mc 12, 17). Tem-se a impressão de que Ele ali é de uma argúcia tal que seus olhos resplandeceram de penetração.

Logo no primeiro brilho da argúcia, nos pomos de joelhos. Eu li que alguns autores espirituais censuraram uma atitude de São Pedro que, se forem todos, é censurável, mas se não for a totalidade  deles, estou do lado dos que admiram. Aquele dito de São Pedro para Jesus: “Afastai-Vos de mim, Senhor, porque eu não sou senão um miserável pecador!” (Lc 5, 8). Porque é tanta grandeza, tão  infinita, que não temos ideia; é muito além do que estamos afirmando! Tem-se vontade de dizer: “Eu me descomponho, me arraso, escorro como cera no chão diante de tanta grandeza. Senhor, afastai-Vos de mim porque sou um miserável pecador.

Mas não Vos afasteis demais porque sem Vos ver eu morro…”

Há em Nossa Senhora algo de parecido ao que existe em seu Divino Filho

De que maneira vemos isso em Nossa Senhora?

De modo muito bonito. Não sei se notaram que as invocações de Nossa Senhora são muito variadas, mas diversas delas se repetem. Por exemplo: Nossa Senhora Auxiliadora e Nossa Senhora do  Amparo são a mesma coisa. Nossa Senhora da Saúde e Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Nossa Senhora da Saúde é Ela enquanto socorre os doentes, portanto é uma especificação do gênero  Nosso Senhora do Perpétuo Socorro. Mas Nossa Senhora do Perpétuo Socorro é Auxiliadora e Amparo, pois está socorrendo! Mas cada uma das imagens próprias a uma dessas invocações traduz uma personalidade própria. De maneira que Nossa Senhora enquanto Genazzano, ou enquanto Auxiliadora, é como se fossem pessoas distintas, harmônicas, mas diferentes.

É que a piedade popular se dá conta de que havia n’Ela, em proporções criadas, algo do que existe de parecido no Divino Filho d’Ela. E que em cada invocação Ela é tão plenamente, que julgaríamos estar tratando com outra pessoa.

Na realidade eu creio que se víssemos simplesmente Nossa Senhora, nós não aguentaríamos. Se Ela fizesse conosco como Nosso Senhor fez no Tabor, nós não suportaríamos, tal o esplendor, a pujança.

Alguém dirá: “Mas no Tabor até os Apóstolos pediram para ficar.” É verdade, porque foi mostrado tudo com uma doçura muito grande e com os contrapesos necessários.  Porque, do contrário, não aguentavam.

Pois um homem não aguenta a aparição de um Anjo, se este não ajudar o homem. E Anjo da guarda é a hierarquia menos elevada de Anjo. Imaginem Deus!

Façam, então, o retrospecto. A Santíssima Virgem dando explicações ao Menino Jesus Imaginem Nossa Senhora brincando com o Filho, dirigindo sua adolescência. O Filho perguntando para Ela com toda a seriedade: “Como é isto?

Explique-Me…” E a Santíssima Virgem sabe que Ele é Deus e conhece infinitamente melhor do que Ela. Mas Ela sabe também que a divindade não comunica essa informação à humanidade d’Ele, porque quer que esta a receba dos lábios d’Ela. Imaginem Nossa Senhora falando…

Para um de nós isso é um impacto que não aguentaria. Se o Menino Jesus dissesse: “Que forma tem a Terra?” Diríamos: “Hã! é, como é, isto é, ou seja… ahhh!…” E daí para fora, não saía a explicação. Depois começava a olhar para Ele e ficava intimidado.

“Sendo Ele tão infinitamente superior, o que vai achar da bobagem que vou dizer? Nem tenho coragem de me apresentar a Ele!”

Nossa Senhora, com toda a tranquilidade, diz: “Meu Filho…”, e dá a explicação angélica. Ele ainda faz duas ou três perguntas e Ela quase desmaia de encanto diante da sabedoria das indagações. Depois Ele agradece e vai brincar…

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 28/5/1980)

O Sibarita, o herói e o Mártir do Gólgota

A presentamos aqui a segunda parte da exposição em que Dr. Plinio considera estas duas posturas de alma: a do gozador da vida, a quem aborrecem o dever e o sacrifício, e a do herói que galga suas montanhas interiores, a exemplo do Divino Mestre vencendo o Monte Calvário

 

A verdade é como um píncaro a ser conquistado. O autêntico alpinista não é o que sobe montanhas, mas aquele que, pelo esforço do pensamento, chega às altas verdades. É aquele que gosta de parar e dizer: sejamos lógicos, sejamos homens de Fé! As verdades da Fé e os princípios da moral católica me traçam  o caminho do dever. Ora, tal procedimento para o qual me convida um irmão,  m amigo de escola ou um anúncio de televisão, conduz-me para algo contrário à Fé e à razão. Estes me convidam para o bem e me mostram o dever. Sinto-me dividido entre duas leis: a da  impressão e a da razão.

Pela lei da razão, alinhei os raciocínios e conclui o que precisa ser feito. Os regimentos dos raciocínios foram conquistando terreno em minha cabeça e em certo momento cobriram o campo de  batalha: “Está resolvido, seguirei o bom caminho. Por mais que doa, por mais difícil que seja, ainda que tenha a impressão de me estraçalhar, seguirei a reta via”.

Quem procede assim, é um verdadeiro herói. Este é um católico no sentido pleno da palavra: o católico apostólico romano, seguidor de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Exemplo divino: a Paixão do  Redentor

Sim, o Divino Mestre nos deu sublime exemplo dessa atitude de alma, na cena da Paixão que, por certas razões psicológicas profundas, empolga-me mais que a própria morte na Cruz: é quando Ele se dirige ao Horto das Oliveiras e se põe a rezar, pensando no que Lhe estava reservado.

Diz o Evangelho: “Et coepit pavere et taedere” — Ele começou a sentir pavor, tristeza e abatimento. E Jesus, Profeta, viu tudo o que ia se passar com Ele, ponto por ponto: “Meu Deus, como isto  custa! Não bastará? Esta mão, é preciso que seja perfurada por um prego? É necessário que outros cravos perfurem meus pés e Eu fique suspenso, dilacerado, esgotado de forças, com o sangue  correndo às torrentes de todo o meu corpo, transformado numa chaga, de modo a se cumprir o que disse Isaías: sou um verme, não um homem, o desprezo dos homens e a gargalhada do povo?  Mas, meu Padre Eterno quer que Eu sofra tudo isso para resgatar os pecados da humanidade, redimir o pecado original de Adão e Eva, dos quais Eu descendo pelas entranhas puríssimas de Maria  Virgem. Embora inocente, desejo expiar por eles, como o Cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo”.

Pois bem, se quisesse, Ele poderia escapar daquelas dores, voltar para Nazaré, ser acolhido por Nossa Senhora e, numa tarde suave, contemplar o pôr-de-sol, conversando com Aquela cuja  perfeição era insondável e podia encantá-Lo pela vida inteira.

Contudo, a atitude d’Ele foi outra: “Não, não quero nem devo fugir da Cruz, porque sou Homem-Deus, a segunda Pessoa da Santíssima Trindade, encarnei-me para salvar o gênero humano.

Chegou a hora, e o sacrifício — razão de ser de Eu ter as naturezas humana e divina — está posto diante de Mim. Agora tenho que realizá-lo. É lógico e virtuoso que o faça. O raciocínio, baseado nas verdades sobrenaturais que conheço, me impõe: é preciso consumar esse holocausto!”

De todos os seus poros o sangue começa a brotar. A ciência moderna explica que a perspectiva de dores e sofrimentos atrozes pode provocar no organismo essa transpiração de sangue. E foi o que se passou com Jesus: sem ninguém ter tocado n’Ele, a previsão dos tormentos Lhe arrancou o primeiro sangue.

Ele sente em si a incapacidade de sua natureza humana e suplica: “Meu Pai, meu Pai, se é possível afaste de Mim esse cálice, mas — é a vitória da lógica—faça-se em Mim a vossa vontade e não a  minha”. É como se Ele dissesse: “Eu não sei como prosseguir, não tenho forças para a enormidade da Cruz que devo carregar, porém uma coisa não farei: é pô-la de lado. Cumprirei a vontade de  meu Pai!”

E o Padre Eterno poderia ter dito: “Meu Filho, contento-me com seu oferecimento, e O dispenso da Paixão!” Não o fez. Mandou um anjo para consolá-Lo, sem remover o sofrimento do caminho  d’Ele!

Jesus se sentiu fortificado. E compreendeu na sua natureza humana — na divina Ele o sabia desde todo o sempre — que não havia volta atrás. Não se nota n’Ele a menor hesitação. A lógica O faz amar o Padre Eterno sobre todas as coisas. E assim, Aquele que não era apenas o mais alto dos homens, mas o Homem-Deus, subiu o mais alto dos montes, o Gólgota. Sem dúvida o Himalaia supera em altitude o Calvário, mas como este é mais elevado que aquele! Nosso Senhor Jesus Cristo, carregando sua Cruz ao pináculo da montanha do Gólgota, fez incomparavelmente mais do  que subir o Himalaia a pé!

A grande montanha a galgar está dentro de nós

À luz desse heroísmo divino nos faz bem contemplar o Santo Sudário de Turim. Este é a perene fixação do ato de vontade eterno: “Eu farei e não abrirei mão do meu dever!” Reduzido a cadáver, com as mãos inertes  uma sobre a outra, com os olhos fechados e os lábios silenciosos… Mas, como esses olhos fechados vêem e como esses lábios silenciosos falam! Quanta coisa Ele diz no Sudário! Em primeiro lugar, aquela deliberação: “Sacrificar-me-ei!”

Foi o amor à verdade e ao bem que levaram Nosso Senhor Jesus Cristo até essa culminância. E é isto que devemos ter em linha de conta, quando comparamos o sibarita com o homem que galga as montanhas.

Vencer os montes, que linda proeza! Mas o pobre do alpinista pode ter levado uma boa quantidade de rum e naquela mesma noite se embriagou no meio da neve. Sim, um homem é capaz de ser  valente para galgar montanhas, mas não ter a coragem de ser um marido fiel, nem de — face a uma opção em sua vida — raciocinar com a firmeza e a clareza com que o faz o católico quando se põe na escola de Nosso Senhor Jesus Cristo.

No dia seguinte esse alpinista desce, é festejado pelos de sua aldeia natal… Tudo muito bonito. Mas… naquele dia ele diz uma calúnia, faz um negócio desonesto ou mente com vileza. O que é esse homem? É um pigmeu, um anão que escalou uma montanha. O grande cume a galgar, o extraordinário alpinismo a empreender está dentro de nós. A beleza de nossa vida consiste em termos no  nosso interior imensas montanhas magnificamente nevadas, dos flancos das quais pendem abismos terríveis, e devemos ser os alpinistas de nós mesmos. Ao sermos criados, Deus teve um  desígnio para cada um de nós, com vistas a que alcançássemos tal grau de virtude e ocupássemos no Céu um determinado trono. O verdadeiro alpinismo é galgar de virtude em virtude até conquistarmos esse trono, e aí cantar as glórias de Deus por toda a eternidade!

Para chegar a isso, cumpre fazer o desagradável contra nós mesmos.

Se certo sacrifício necessário me repugna, penso em Deus que me criou, em Nosso Senhor Jesus Cristo que me remiu, em Nossa Senhora cujas entranhas virginais, por obra do Espírito Santo, geraram Nosso Senhor; penso na Santa Igreja Católica e em tudo que me diz: “Meu filho, cumpre o seu dever!”

Ao contrário do demônio, que sempre nos toma o que nos havia prometido, Deus costuma nos dar muito mais do que sacrificamos por Ele. Daí a promessa do Evangelho: quem oferece alguma  coisa a Deus — ou seja, cumpre os mandamentos — recebe o cêntuplo nesta Terra e depois a vida eterna.

“Queremos o sacrifício, o triunfo e a glória!”

Mas, os caminhos que levam aos cumes das montanhas são sinuosos. E quem quer atingir o píncaro, às vezes tem de descer. Nós estamos agora nesse entusiasmo e nessa alegria, sentindo a dignidade de quem é capaz de se sacrificar. Porém, esse não é um estado de espírito constante em nossa vida. Não raro, a alegria e o entusiasmo se desfazem, dando lugar a uma bruma em nossa alma.

Há dias em que não temos vontade de cumprir o dever, em que não temos ímpeto de alma para voar, e nos sentimos moles como sibaritas, embora tenhamos levado uma existência de sacrifício.

Deus permite essa situação. Ele retira de nós os auxílios sobrenaturais pelos quais a vida fiel parece tão alegre, e nos vemos abandonados, tristes e sem força. São as horas em que o coração d’Ele está mais perto do nosso e em que Ele nos diz: “Meu filho, chegou o momento da aridez e da dor, para provar se é capaz de ser fiel agora como o foi na alegria. Tudo lhe parece enfadonho, você tem tentação de pensar continuamente noutra coisa, está fascinado por algo que não presta, e não lhe sai da cabeça. Estou lhe deixando longe do prazer que teve, porque desejo que você se dê inteiro.

Há de chegar um momento interior em que me dirá: ‘Meu Pai, meu Pai, por que me abandonastes?’. Mas tenha a convicção de que, depois da hora mais negra, semelhante à de uma morte, virá a  ressurreição das alegrias de outrora, mais esplêndidas e maiores do que antes. Portanto, meu filho, passe esse vau!”

E nós podemos nos voltar para a Santíssima Virgem e Lhe suplicar: “Maria, Mãe de misericórdia, eu não tenho coragem para dizer sim. Como Ele, no Horto das Oliveiras, também disse: ‘Meu Pai,  se for possível afaste esse cálice’, dizei a vosso Filho por mim: ‘Se for possível, afaste dele esse cálice’. Se não, minha Mãe, alcançai-me graças, dai-me forças e eu atravessarei a prova. No fim do  túnel tenebroso em que estou, ó Maria, verei brilhar a vossa luz!”

Isto é ser o contrário do sibarita. E a vida a que fomos chamados, graças a Deus, é essa. Se ela não tivesse esses perigos, aplicar-se-ia a nós a expressão de um poeta francês: “Quem vence sem  perigo, triunfa sem glória”. Quando morre um católico em estado de graça, há uma glória reservada para ele no Céu, porque, se faleceu como justo, ele ganhou uma guerra. E o mérito de a ter vencido é tanto maior quanto mais sacrifícios, riscos e perigos teve de enfrentar nessa conquista.

Nós queremos o triunfo e a glória, o sacrifício e o perigo.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (extraído de conferência)

 

Uma luz brilhou para nós

Em dezembro de 1953, a propósito do Santo Natal, Dr. Plinio tecia considerações muito aplicáveis aos nossos dias(1).

“Lux in tenebris lucet”(2). Com estas palavras o discípulo amado anunciou para seu tempo e para os séculos vindouros o grande acontecimento que celebramos neste mês. Fórmula sintética que exprime o conteúdo inexaurivelmente rico do grande fato: havia trevas por toda a parte, e na obscuridade delas se acendeu a Luz. Por isso a Santa Igreja afirma com estas palavras proféticas de Isaías o seu júbilo, na noite do Natal: “Hoje surgiu a luz para a mundo: o Senhor nasceu para nós. Ele será chamado Admirável, Deus, Príncipe da Paz, Pai do século futuro, e o seu reino não terá fim.”(3)

Qual é a razão destas metáforas? Por que luz? Por que trevas?

Os comentadores são unânimes em afirmar que as trevas que cobriam a Terra quando o Salvador nasceu eram a idolatria dos gentios, o ceticismo dos filósofos, a cegueira dos judeus, a dureza dos ricos, a rebeldia e o ócio dos pobres, a crueldade dos soberanos, a ganância dos homens de negócio, a injustiça das leis, a conformação defeituosa do Estado e da sociedade. Foi na mais profunda escuridão dessas trevas que Jesus Cristo apareceu como uma luz.

Qual a missão da luz? Evidentemente, dissipar as trevas. De fato, aos poucos, foram elas cedendo. E, na ordem das realidades visíveis, a vitória da luz consistiu na instauração da civilização cristã que, embora com as falhas inerentes ao que é humano, foi o autêntico Reino de Cristo na Terra.

Não é o caso de fazermos aqui o histórico do crepúsculo da Cristandade ocidental. Basta lembrar que, do século de São Tomás e São Luís IX, deslizamos para esta nossa era de laicismo e de ateísmo militante.

O quadro que traçamos do mundo antigo poderia aplicar-se facilmente ao de hoje, em cujas trevas do erro e do pecado os homens são retidos, em essência, por três fatores: o demônio com suas tentações, o mundo com suas seduções e a carne com seu aguilhão.

De fato, entregue às volúpias da carne, o ser humano tende a atirar-se com todo o peso de sua miséria às delícias do mundo; e sua alma cheia de tanto lodo está preparada para receber a ação do demônio. Cada um desses fatores abre, pois, o campo para o outro. E por isso, instaurado numa alma o jugo do demônio, ela se torna mais escrava do mundo e da carne.

A capitulação diante de qualquer deles, por mais incipiente que seja, dá imediato vigor aos outros. A ação do demônio cresce na alma com o pecado e, por sua vez, agrava as devastações dos vícios na alma.

Mas no que consiste precisamente a ação do demônio? Em dar aos impulsos de desordem que o pecado original instalou em nós, uma vivacidade, uma energia ainda maior; em nos arrastar a uma esfera de degradação, de sensualidade e de impiedade pior ainda que a da simples malícia humana. Arrastando, pois, para baixo os pecadores, procurando dar coesão, em toda a Terra, às energias caóticas e, por si mesmas, anárquicas da corrupção, soprando-as e estimulando-as, o demônio é o verdadeiro chefe do reino das trevas no mundo.

Contudo, para certos tipos de mentalidade, o papel do demônio, do mundo e da carne na difusão das trevas não deve ser levado tão a sério. O homem contemporâneo não é senão um meninão travesso, mas bom no fundo, que só tem um ponto difícil: é irritável. Por certo ele está algum tanto longe de praticar todos os Mandamentos. A culpa, entretanto, não é principalmente sua, mas dos que não o souberam compreender. Em lugar de irritá-lo com dogmas, preceitos, penas, dever-se-ia tê-lo nutrido com o mel suave das concessões, tratado com sorrisos. Não se compreendeu isto e, como ele é irritável — e algum tanto traquinas… —, ei-lo que quebra igrejas, desencadeia guerras, multiplica revoluções.

A solução consistirá em abrandá-lo. Antes de tudo, não dizer as coisas claramente, porque “pode irritar”.

Castidade, sim. Mas pronuncie a palavra bem baixinho, só quando for indispensável; ou melhor, renuncie a fazer uso dela por muito tempo.

Obediência ao Magistério da Igreja? Sim, sem dúvida. Mas não fale propriamente em obediência, nem em Magistério: poderíamos irritar o meninão. Melhor seria falar vagamente em fé.

Pecado? Não é termo conveniente: fale-se antes em fraqueza, lapso, deslize. E cuidado! Fale-se sobre isto sorrindo.

Inferno, para quê? Se nosso meninão percebe que pode ir ter lá, acabará por sentir um terrível ódio contra Deus. Há no Evangelho algumas referências a este assunto, mas é que os publicanos ouviam falar nisso e lhes fazia bem. Nosso meninão, pelo contrário, é emancipado e se revoltaria. Deixemos o assunto para mais tarde, será mais prudente.

Tudo isso quanto ao modo de enunciar a doutrina. Quanto ao modo de aplicá-la, as concessões vão ainda mais longe…

O que nos ensina a este respeito Aquele que é, por excelência, a Luz brilhando nas trevas?

Por seu exemplo e por suas palavras, Nosso Senhor nos ensina, antes de tudo, que é preciso nunca silenciar a verdade; que cumpre proclamá-la inteira, ainda que nossos ouvintes não nos aplaudam, ainda mesmo que nos queiram lapidar ou crucificar.

É preciso anunciá-la com palavras de ameaça ou com um semblante de indulgência e de bondade? Nosso Senhor fez uma e outra coisa, conforme o estado de alma daqueles a quem Se dirigia.

Também nós, para sermos luz neste mundo de trevas, não havemos de renunciar às apostrofes candentes e ao tom polêmico, nem às palavras de doçura e incitamento. Devemos pedir a Nosso Senhor que nos dê o discernimento necessário para fazer uma e outra coisa no momento oportuno.

Santos houve que fizeram principalmente uma ou outra coisa. Não houve um só Santo que jamais desse prova de severidade, ou jamais desse prova de suavidade. Cada qual agiu segundo nele soprava o Espírito Santo, e por foram canonizados pela Igreja.

Cada um de nós proceda segundo o espírito que tem, com uma ressalva, porém, e esta muito importante: na aplicação dos princípios jamais se pode ceder. Sorrindo ou increpando, diga que o mal é mal e o bem é bem. E não deixe de estimular, incentivar, pregar o bem em todos os seus aspectos. Agir de outro modo não é trabalhar para propagar a luz, é velá-la, é querer extingui-la.

Esta é a lição que nos deixou Aquele cujo nascimento neste mês celebramos genuflexos.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (extraído de conferência)

1) Cf. Catolicismo, n. 36.

2) Jo 1, 5.

3) Introito da Missa da Aurora (Is. 9, 2. 6; Lc 1,33).