Ponde em mim os olhos de Vossa piedade

Minha Mãe, eu sei bem, ou ao menos julgo saber bem, quais são os meus defeitos. Receio, porém, ter uma noção hipertrofiada de minhas qualidades. Vós bem sabeis como é uma coisa e como é outra.

Não me interessa saber até que ponto minhas qualidades podem me obter o que eu preciso; nem me interessa saber até que ponto meus defeitos atraem sobre mim punições que eu poderia não sofrer se eu não os tivesse. Porque Vós vedes tudo isso e Vós rezais por mim com empenho de Mãe de Misericórdia. E onde entram os vossos méritos e a vossa súplica, o contributo de minha súplica é uma gota de água.

Entretanto, Vós quereis a oração de vossos filhos. Olhai, pois, para as minhas necessidades, elas são um bramido que se levanta a Vós, pedindo-Vos aquilo que eu preciso.

Tende pena de mim, ponde em mim os olhos de vossa piedade, e atendei-me.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 22/11/1988)

O mês de maio e o Reino de Maria

No mês de maio, as festas em honra de Maria Santíssima eram celebradas com muito esplendor e deixavam saudades em todos os fiéis. O Reino de Maria será um imenso mês de Nossa Senhora, e em todos os dias se comemorarão as grandezas da Rainha do Universo.

 

Sendo o mês de maio dedicado especialmente à Santíssima Virgem, gostaria de tratar sobre a festa, outrora comemorada no dia 31 de maio, de Nossa Senhora Rainha, que é a festividade do Reino de Maria.

Dar glória a Deus

Este Reino é algo tão transcendental, tão grande, de tal modo ligado à eternidade, que toda borrasca terrena pode ir e vir, desencadear-se e resolver-se, mas o Reino de Maria permanece eternamente, sólido e brilhando na sua glória intrínseca, de maneira tal que todas as injúrias, as propagandas adversas não podem nada contra ele.

O que vem a ser propriamente a Realeza de Maria? E por que a Igreja instituiu esta comemoração? Ela a estabeleceu com duas intenções. A primeira é de dar glória a Deus, por meio de Nossa Senhora, a propósito do assunto da própria festa. Assim, por exemplo, a solenidade de Corpus Christi foi estabelecida para dar glória a Deus — sempre por meio de Maria Santíssima, porque Ela é a Medianeira universal de todas as graças — pela instituição do Santíssimo Sacramento, pelo fato de a Igreja ter sido adornada, enriquecida e vivificada por esse Sacramento admirável, ou seja, a Sagrada Eucaristia.

Assim também a Igreja estabeleceu uma festa para a Realeza de Nossa Senhora porque ela quer dar glória a Deus pelo fato de Maria Santíssima ser Rainha. Então ela festeja, canta, com um ato de amor e de culto, toda essa glória que Deus recebe por essa realeza da Santíssima Virgem. E enquanto católicos, temos que nos associar, evidentemente, a essa atitude da Igreja.

Anteriormente fora escolhido para esta comemoração o dia 31 de maio para, desta forma, fechar com chave de ouro o mês de Maria, completando assim todas as honras que a Santíssima Virgem recebeu durante esse mês, aclamando-A Rainha, depois de terem sido ditas todas as outras maravilhas em louvor a Ela. Isso implica em proclamar a mais alta glória d’Ela, abaixo da honra de ser Mãe de Deus e dos homens: ser a Rainha dos homens e a escrava de Deus Nosso Senhor.

Assim, a festa da Realeza de Maria tem um alcance muito grande. A Igreja espera do interior de nossas almas uma alegria, uma satisfação, uma homenagem, uma honra a Nossa Senhora como Rainha.

Concentrar a atenção na realeza de Maria

Acrescenta-se a isso um segundo objetivo: a cada ano que passa essa festa se repete. Desta maneira, a Igreja — conhecedora da facilidade com que o espírito humano se dispersa e se volta para coisas às quais não deveria se voltar — obtém um meio de concentrar novamente a atenção de seus filhos sobre esta realidade: Nossa Senhora é Rainha.

Eis porque a Igreja organizou, ao longo dos séculos, o calendário litúrgico, consagrando cada dia do ano ao culto de vários Santos, alguns dias a determinados mistérios da Religião Católica, e também a alguns títulos de glória de Nosso Senhor Jesus Cristo e de Nossa Senhora.

Assim, a cada ano que passa, a Igreja pede a todos os seus filhos que se recolham de modo especial e pensem, meditem na realeza de Maria Santíssima.

Esses dois objetivos se ligam, porque ninguém pode amar o que não conhece. Portanto, não pode amar a realeza de Maria quem não a conhece. É preciso pensar nela, refletir a respeito dela, para depois amá-la.

A concentração do espírito, o pensamento, a reflexão antecipam o ato de amor. A Igreja pede que reflitamos, nos concentremos, para depois fazermos um ato de amor, e com isso darmos a Nossa Senhora a glória pelo fato de Ela ser Rainha.

Vemos, assim, como na Santa Igreja tudo é bonito, bem pensado. Quanta harmonia, quanta profundidade, quanta serenidade, quanta nobreza, quanta força há em todas as coisas da Igreja! Mesmo em meio aos terríveis torvelinhos pelos quais a Igreja Católica possa passar, ela é ela, a Igreja imortal. E sempre conservará a santidade que lhe é própria até o fim do mundo, porque ela é indestrutível. Um dos aspectos dessa santidade é exatamente o conservar a festa da Realeza de Maria.

As cerimônias de outrora ao longo do mês de maio

Os que não alcançaram o mês de Maria, como tradicionalmente se realizava até uns quinze anos atrás, não têm ideia de como era uma verdadeira maravilha.

Toda noite, em geral por volta das 7h30 — os horários variavam um pouco —, em todas as igrejas, e mesmo nas capelinhas do campo, realizavam-se cerimônias em honra de Nossa Senhora.

A cerimônia constava fundamentalmente do seguinte: as associações religiosas — filhas de Maria, congregados marianos e outras congregações consagradas a Nossa Senhora — ocupavam inteiramente os bancos da igreja, de um lado e de outro. O sacerdote subia ao púlpito, portando sobre a batina a roquete: aquela espécie de meia túnica branca com rendas, que os padres usavam.

Do alto do púlpito o sacerdote rezava em silêncio, enquanto o coro entoava a “Ave Maria”. O padre mantinha-se ajoelhado no púlpito, e todo o povo, de joelhos também, constituindo uma massa popular enorme que enchia a igreja, ocupando todos os espaços, até para fora dos bancos.

Todos cantavam a “Ave Maria”, pedindo graças para o sacerdote pregar com bastante unção sobre a Santíssima Virgem. Terminado o cântico, ele iniciava o sermão.

Após a prédica, o coro recomeçava a cantar, entoava a ladainha de Nossa Senhora e outras orações em louvor a Ela.

Ao final, era dada a bênção do Santíssimo Sacramento. O momento culminante da cerimônia ocorria quando o sacerdote se voltava para o povo, portando nas mãos o ostensório sob a forma de sol com raios de ouro, dentro do qual estava o Santíssimo Sacramento, e, diante de todo o povo genuflexo, dava a bênção, voltando-se com a Hóstia Sagrada para todos os lados da igreja.

Depois depositava o ostensório novamente sobre o altar, ajoelhava-se, rezava algumas orações e guardava o Santíssimo Sacramento no sacrário.

Em seguida, o sacerdote saía enquanto o coro cantava. A igreja estava tomada pelo perfume do incenso, largamente utilizado durante a bênção do Santíssimo para adorar a Sagrada Hóstia.

Atmosfera abençoada que se difundia

As associações religiosas se retiravam pela sacristia, e as pessoas retornavam para suas casas.

Entretanto, ficavam ainda alguns fiéis rezando na igreja. Era talvez um dos aspectos mais bonitos. Na igreja quase vazia, ouviam-se remanescentes de melodias sacras, sentiam-se restos de incenso flutuando pelo ar, o sacristão ia aos poucos apagando as várias luzes do edifício sagrado, revistando os confessionários, atrás dos altares, para ver se não ficara alguém nesses locais, e ia assim preparando a igreja para ser fechada.

Até esse momento, permaneciam ainda algumas almas aflitas, recolhidas diante deste ou daquele altar: ora era uma velhinha, ora um rapagão imenso, ora um senhor obeso e atingindo largamente os seus 50 ou 60 anos, ora uma mãe de família de meia idade, ora uma criancinha. Todos rezando com afinco junto a uma imagem e pedindo uma graça espiritual ou temporal, de que muito necessitavam.

Por fim, o sacristão aparecia e, para dar a entender que era preciso sair da igreja, ao invés de pôr as pessoas para fora, ele sacudia um molho de chaves. Todos entendiam que era preciso sair, e só então o templo esvaziava. Quer dizer, os filhos da Igreja ficavam dentro dela o tempo que pudessem.

Quando terminava a bênção, eram 9h, às vezes 9h30, hora relativamente tardia para a São Paulo daquele tempo. Nas ruas desertas, podiam-se acompanhar os últimos fiéis que saíam, andando devagarzinho: uma senhora com uma bolsa na mão, mais adiante um homem com ar sofrido, outro que estava alegre, esperançado, dispersavam-se aos poucos como se fossem as últimas bênçãos da igreja que se difundiam para os vários cantos da cidade.

O relógio da torre da igreja: símbolo da relação entre o pensamento da Igreja e o do homem

Ficava aquela torre voltada para o céu, o relógio indicando as horas noite adentro, silêncio em volta, as nuvens, a Lua, o tempo, tudo passando à espera da manhã seguinte, quando o templo abrisse de novo as suas portas, de madrugadinha, e em que se vissem muitas daquelas mesmas pessoas da véspera voltarem, às vezes nas madrugadas frias e ventosas de São Paulo, e entrarem na igreja que representava, ao mesmo tempo, um refúgio para a alma e um abrigo contra as ventanias que sopravam sobre o corpo. Iniciava-se, então, uma cerimônia religiosa ainda mais augusta e mais solene do que a da véspera: a Missa. Era a vida da igreja que recomeçava quando a cidade acordava. Era uma verdadeira beleza!

O simbolismo do relógio na torre das igrejas é lindo! Não é direta e principalmente para que o transeunte o olhe e veja que horas são; tem acidentalmente também essa finalidade, mas o objetivo principal é outro. Os pequenos relógios particulares eram menos pontuais do que os grandes que encimavam as torres. Por isso, estes serviam para que todos acertassem por ele os ponteiros dos relógios cambaios.

Esse era o símbolo da relação entre o pensamento da Igreja e o do homem. O homem acerta o seu pensamento pelo da Igreja — porque a Igreja não erra nunca, e ele pode errar —, assim como acerta o seu relógio pelo relógio estável, que os padres mantinham pontual. Essa era a beleza do relógio da torre da igreja.

A coroação de Nossa Senhora

No encerramento do mês de Maria, no dia 31, em todas as igrejas, Nossa Senhora era coroada Rainha. Colocava-se no presbitério, bem na frente, uma pequena construção artística, de madeira, que variava de acordo com a imaginação e o gosto do vigário e das pessoas da paróquia, mas comportava essencialmente um lugar muito alto onde havia uma imagem da Santíssima Virgem toda cercada de flores, uma escadinha por onde, em geral, uma criança levava uma coroa e com ela coroava Nossa Senhora Rainha.

Todo o povo permanecia genuflexo, o órgão tocando a todo volume, o coro cantando, proclamava-se, assim, a realeza de Maria Santíssima.

Feita a coroação, um grupo de pessoas designadas pelo vigário tomava a imagem de Nossa Senhora e formava um cortejo; o vigário ia atrás com a capa magna, e davam uma volta pelas várias naves da igreja com a imagem coroada. Em seguida, colocavam-na de novo no seu trono. Depois disso vinham diversas orações, e estava terminado o mês de Maria.

O mês de Maria acabava deixando umas saudades enormes! Todo mundo gostaria que o ano litúrgico inteiro fosse um perpétuo mês de Maria.

Eu espero que quando chegar o Reino de Maria isso seja assim, e que da vitória de Nossa Senhora, prevista em Fátima, até o fim do mundo nós tenhamos um imenso mês de Maria, em que todos os dias a Santíssima Virgem seja festejada e se aclame a glória d’Ela, vista como Rainha do Universo.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 31/5/1975)

Revista Dr Plinio Maio de 2015

O Santíssimo Sacramento e a misericórdia de Nossa Senhora – II

Maria Santíssima é Mãe de misericórdia e nos considera com bondade indizível. O auge da bondade d’Ela não está em nos deixar no pecado e nos olhar com compaixão, mas em nos obter graças pelas quais recebemos forças para sair do pecado e não mais ofender a Deus.

 

Na realidade, o homem encontra-se numa situação tal que lhe convém ser tratado com justiça, e por isso ele deve gostar de um trato que tenha a nota tonificante de justiça. A qualidade que ele tem lhe será reconhecida, e seu defeito também lhe será mostrado; tudo graduado de acordo com o que merece. Isso fortalece, faz bem, eleva o homem.

A importância de um braço amigo que nos sustente durante a prova

Por mais que isto seja assim, entretanto há momentos — e quantos são esses momentos! — em que a fraqueza humana aparece e o homem faz a seguinte reflexão: “Eu sei que deveria agir de tal modo e não fazer outra coisa. Vejo o peso que isto representa, e precisaria realizar um sacrifício. Porém esse sacrifício me dói. Estou disposto a fazê-lo aos poucos, mas como me faria bem se eu notasse que um olhar bondoso participa da minha dor e me diz: ‘É bem verdade, você tem que fazer esse sacrifício e a mim me dói. Eu até tomo sobre mim uma parte de seu sacrifício. Entretanto, meu filho, algo é intransferível e tem de ser feito por você, para sua glória, para seu bem. Você seria roubado se lhe fosse tirada a possibilidade de sacrificar-se. Faça o sacrifício, mas eu o olho com afeto, com compaixão durante esse tempo. Vamos para frente e coragem!’”

O homem, tratado assim durante a prova e na dor, recebe uma comunicação da força do outro. É como uma pessoa sem firmeza para andar, mas que é sustentada pelos braços de outrem. O passo é vacilante, ela anda, mas precisa de um apoio, um braço amigo que a sustente. Como não dizer “muito obrigado”? Como não sentir-se bem junto a esse braço amigo que ajuda? É evidente.

O inesgotável amor materno

Esse é bem o papel de Nossa Senhora. Ela é insondavelmente misericordiosa! Na ladainha ao Sagrado Coração de Jesus, uma das invocações é: “Cor Jesu, patiens et multæ misericordiæ, miserere nobis — Coração de Jesus, paciente e muito misericordioso, tende compaixão de nós”. A fonte de todas as virtudes é Ele. E na misericórdia, como em tudo o mais, Ele está infinitamente acima de Maria Santíssima.

Mas querendo fazer os homens sentirem, ao último ponto, a misericórdia de Nosso Senhor, Deus dispôs que ela fosse representada naquilo que é o amor mais desinteressado de que o homem pode beneficiar-se habitualmente nesta vida.

Nas épocas normais da humanidade, notamos nas relações familiares o seguinte: às vezes, o marido pode romper com sua esposa, o pai com seu filho, o filho com seu pai, os irmãos entre si; quanto aos outros graus de parentesco nem se fala! O filho pode até romper com sua mãe, mas é raríssimo a mãe romper com seu filho.

E esse amor materno vai tão longe, na ordem da natureza, que quando Jesus chorou sobre Jerusalém, antes de chegar ao Horto das Oliveiras, Ele disse: “Jerusalém, Jerusalém, quantas vezes Eu quis reunir teus filhos, como a galinha reúne os pintinhos debaixo das asas, mas tu não quiseste!”(1). Para exprimir o extremo do seu amor, Ele quis compará-lo ao amor materno, mas neste grau, nesta forma: uma galinha em relação aos seus pintinhos! Ele recorreu a essa figura para nos fazer compreender, de modo tocante, o que há de inesgotável no amor materno.

Mãe das misericórdias insondáveis

Assim, Nosso Senhor dispôs que conhecêssemos e sentíssemos em sua Mãe quintessências de misericórdias que Ele deu a Ela e que nós, simplesmente na consideração do Redentor, não chegaríamos a perceber. Porque Ele é tão alto, tão perfeito, tão divino que nosso olhar não abarca tudo. Convinha, portanto, que a misericórdia d’Ele se fizesse como que outra pessoa para nós a conhecermos bem. Esta é Nossa Senhora.

Maria Santíssima fica tão bem ao lado de Nosso Senhor Jesus Cristo! Ela é Mãe de misericórdia, a nossa advogada. Nosso Senhor Jesus Cristo é nosso Redentor, nosso Mediador. Ele é também nosso Juiz e nos julga. E quando pensamos que Ele é nosso Juiz… Há um salmo que diz: “Si iniquitates observaveris, Domine, Domine, quis sustinebit? — Se observardes, Senhor, as iniquidades, quem, Senhor, se sustentará diante de Vós?”(2). Agora chegou o justo Juiz, perfeitíssimo, que conhece tudo, cujo olhar pousará sobre mim e verá meus defeitos… Eu adoro a exigência e a intransigência desse olhar. Mas, para usar uma metáfora, eu cambaleio e preciso que alguém me sustente.

Perto de mim tenho uma Mãe que é d’Ele e minha, a Mãe de misericórdia, quer dizer, se toda mãe deve ser misericordiosa por natureza, a Mãe de misericórdia tem misericórdias insondáveis, incontáveis, inenarráveis, a todos os momentos e de todas as formas! Ela é tão perfeita e tão pura, que nunca deu a Ele o menor desagrado, o menor desgosto. Ela é a criatura perfeita em que Ele deitou seu olhar e A amou inteiramente, porque Ela nunca, nunca, nunca fez outra coisa a não ser corresponder à graça de um modo perfeito.

O melhor da misericórdia de Maria Santíssima

Qual a impostação d’Ela a meu respeito? Ela vê meus defeitos, mas não julga. Ela cobre-me com o manto e diz: “Juiz inflexível e divino, Eu vos adoro! Este é meu filho, e ainda vou dar um jeito nele. Ajudai-o, dai-lhe mais graças. Eu o amo e peço por ele. Tenho com ele um vínculo especial. Ó meu Filho, vós sabeis o que é uma mãe, pois Eu sou vossa Mãe! Com o mesmo Coração materno com que Vos amo, Eu amo a ele. Sou Eu que Vos estou pedindo!”

E com estas palavras: “Sou Eu que Vos estou pedindo”, é claro, vem a misericórdia. Quer dizer, Nosso Senhor foi tão misericordioso que, querendo nos conceder uma misericórdia levada a um limite inimaginável, criou a Mãe d’Ele, de tal maneira que Ela pedisse por nós e obtivesse o que nós, sem Ela, não poderíamos obter.

Temos aí o papel de Nossa Senhora, ao lado de todas as inflexibilidades de que falei. E aí encontramos a razão para esperar. Esperar o quê?

Maria Santíssima tem pena de nós e nos considera com bondade indizível. O auge da bondade d’Ela não está em nos deixar no pecado e nos olhar com compaixão, mas em nos obter graças pelas quais nossa alma é tocada especialmente, e recebe forças correspondentes a nossa miséria para não pecar, de maneira que possamos sair do pecado. Aqui está o melhor da misericórdia: Ela, porque tem pena do pecador, dá a ele os meios de se curar. Nossa Senhora é a Rainha e o canal de todas as virtudes, a Medianeira de todas as graças. As virtudes que temos nos foram dadas porque Ela pediu. E as que não possuímos, podemos adquirir se Ela rogar por nós. 

As mil maneiras de Nossa Senhora nos socorrer

E o que a Santíssima Virgem fará? São mil coisas: ora será um apego que Ela faz cessar e a alma encontra o caminho livre diante de si; ora uma má companhia que Ela afasta; ora uma má influência a respeito da qual Ela nos abre os olhos e nós compreendemos que aquilo não serve; ora a nossa moleza contra a qual Ela dá de repente uma força que não supúnhamos ter e fazemos aquilo que não queríamos realizar.

Quer dizer, Nossa Senhora age de mil modos, cada um deles previsto pela sabedoria divina e atuando na alma de uma determinada forma. O fato é que Ela vai atendendo, socorrendo o homem de maneira a torná-lo capaz de cumprir aquele dever magnífico apresentado de um modo tão estupendo pela Moral Católica, mas diante do qual, às vezes, o homem estremece.

Rezem à Mãe de Misericórdia! Ela os ajuda a vencer, e com mérito. Porque em nenhum momento Maria Santíssima tira nossa liberdade. Se quisermos, não correspondemos à graça, mas o caminho está aplainado, o sorriso está dado e Ela chama: “Meu filho, venha!”

Quanta misericórdia entra dentro disso! A misericórdia tem isso de próprio: ela estimula especificamente a gratidão. A quem é misericordioso temos necessidade de tratar com misericórdia. E se algum homem na vida teve misericórdia conosco, um dia em que ele precise de nossa misericórdia, será para nós uma espécie de alívio tratá-lo com misericórdia. Há uma tranquilidade para a nossa alma: encontrei uma oportunidade de ser misericordioso com ele. Os misericordiosos obterão misericórdia. 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 24/10/1981)

 

1) Cf. Mt 23, 37.

2) Sl 130, 3 (Nova Vulgata).

Refúgio por excelência

Está na perfeição de Maria Santíssima ser um imenso, perene e contínuo refúgio para todos os seus filhos, de modo especial em relação aos pecadores, sejam eles quais forem, culpados de faltas leves ou graves. Tudo que diz respeito a Nossa Senhora é admirável, extraordinário, excedendo a nossa capacidade de cogitação. Assim também a sua disposição em amparar os que andaram mal, em perdoar pecados de tamanho inimaginável e ingratidões insondáveis, desde que a alma se volte para Ela e Lhe peça o maternal auxílio.

A Mãe de Deus pode cobrir tudo, proteger tudo, alcançar toda espécie de perdão para toda espécie de crime. Ela é, na verdade, o nosso refúgio por excelência.

Sabor das coisas celestiais

Senso católico, o espírito bom e reto são dons de Deus, e não algo que o homem seja capaz de adquirir com o mero exercício de sua inteligência. Esta alcançará aqueles movida e vivificada por uma ação sobrenatural procedente do Divino Espírito Santo. Por isso devemos rogar esses dons com empenho, humildade e insistência, persuadidos de que só assim nos serão outorgados.

Donde as tocantes e belas preces recitadas pela piedade católica, enriquecidas de modo extraordinário pelas suaves harmonias do canto gregoriano: o “Veni Creator Spiritus e o Veni Sancte Spiritus”.

Orações e cânticos nos quais rogamos com particular empenho a assistência da Terceira Pessoa da Santíssima Trindade, para que venha e encha os corações de seus fiéis, e neles acenda o fogo do seu amor. Ressalta-se a ideia de que nossa alma é templo do Espírito Santo, e desejamos que Ele desça do Céu — como já o fizera em Pentecostes — com intensidade ainda maior, uma plenitude cada vez mais plena, e habite em nosso interior. Então nos abriremos para os grandes pensamentos, as pujantes volições, as ilimitadas generosidades, as profundas percepções, ao crescimento na fé, esperança e caridade, e nos entregaremos ao necessário e superior esforço da nossa santificação.

Além disso, ao pedirmos que acenda em nosso peito o fogo do seu amor, suplicamos ao Divino Espírito Santo a graça de termos nossa alma repassada do desejo dos tesouros sobrenaturais, da apetência para a virtude, da contemplação das verdades eternas. E possamos assim, sob o influxo de sua luz infinita, saborear sempre o que é reto e gozar das suas consolações inexcedíveis.

Anseio tanto mais essencial e benéfico quanto, no mundo contemporâneo, corre-se o risco de se esquecer do sentido e do sabor das coisas retas. A civilização hodierna, com seus atrativos e seduções, não raro ofusca a admiração pelos monumentos e obras que ilustraram os séculos áureos da Cristandade, abrindo caminho, perigosamente, para o aumento da imoralidade, da agitação, desordem e subversão de todos os valores.

Longe vai o tempo em que se encontrava maior entretenimento na estabilidade de alma e na consideração das coisas retas. Estas são tidas muitas vezes como insípidas, sem se compreender as delícias que nos podem proporcionar. Que dizer, então, daquelas coisas imensamente retas, as que nos remetem para o Céu e nos dirigem para Deus?

Ora, esse gosto do que é reto, honesto, direito, nos é dado pelo Espírito Santo, e devemos implorar seja restaurado em nós.

Queira a Santíssima Virgem, sua Esposa Imaculada, na qual Ele encontra a plenitude de suas complacências, obter-nos esse favor inestimável de aprendermos a degustar sempre as coisas retas, elevadas, sublimes, o sabor daquilo que, na Terra, nos fala do Céu… 

 

Santo Atanásio, gigante contra o arianismo

Batalhador incansável contra uma das maiores heresias de todos os tempos, Santo Atanásio sofreu atrozes perseguições promovidas pelos inimigos da Igreja. Mas as enfrentou com coragem, dignidade e ufania. Foi um dos maiores santos de toda a História, um lutador contra a heresia, como talvez a Esposa de Cristo não tenha tido nem antes nem depois dele.

 

Estive lendo, antes de vir para cá, um resumo biográfico muito condensado da vida de um dos maiores santos da Igreja, que foi Santo Atanásio. E alguns dos aspectos da biografia desse grande santo, que eu não conhecia, me chamaram a atenção, e me pareceu bem comentá-los.

Uma das maiores heresias da História

Santo Atanásio(1) viveu no tempo do Imperador Constantino e de seus sucessores imediatos. Quer dizer, quando a Igreja estava saindo das catacumbas e se organizando à luz do dia. Nessa época, ao mesmo tempo em que as perseguições promovidas pelos pagãos estavam em declínio, a Esposa de Cristo sofria um outro flagelo, certamente pior do que a perseguição dos pagãos, e que nós conhecemos muito bem: as heresias e as divisões internas.

Uma das maiores heresias de toda a História grassou exatamente no tempo de Santo Atanásio e Constantino, a dos arianos. Estes afirmavam que Nosso Senhor Jesus Cristo tinha uma natureza apenas humana; não era Deus, era um grande homem, um homem extraordinário. E essa heresia, como percebem, importava na negação completa da Religião Católica. Reduzir Nosso Senhor Jesus Cristo a um puro homem é negar a Doutrina da Igreja por inteiro.

Os arianos eram muito poderosos, espalharam-se rapidamente por todo o Império Romano — que se localizava mais ou menos em torno da bacia do Mediterrâneo — e, por serem exímios em toda espécie de difamação, obtiveram influência na corte imperial; arrastaram atrás de si tal número de fiéis, mesmo sacerdotes e bispos, que Santo Atanásio declarou que um belo dia o mundo inteiro gemeu porque, ao amanhecer, deu-se conta de que era ariano. Quer dizer, de um momento para outro essa heresia grassou por toda parte e, como que, todo o mundo se tinha tornado ariano.  

Nesta luta contra o arianismo, o gigante foi Santo Atanásio, Patriarca — quer dizer, mais do que um arcebispo — de Alexandria, que era uma das grandes sedes episcopais da antiguidade.

Seis anos no fundo de um poço

Santo Atanásio foi, não me lembro se quatro ou seis vezes, obrigado a fugir da cidade de Alexandria, por causa das conspirações dos arianos, os quais conseguiram vários decretos imperiais expulsando-o para esta ou aquela parte do Império Romano, e muitas vezes sendo perseguido de morte; e, ao longo dessas perseguições e dessa luta tremenda que ele travou, alguns fatos não são tão conhecidos.

Conhece-se a história da querela dele com os arianos no terreno doutrinário, mas sabe-se menos a respeito dos episódios policialescos de sua luta com os arianos. Parece-me, entretanto, que na vida de um santo, mesmo alguns fatos menores têm muito de edificante, e que valeria a pena referir aqui alguns desses episódios.

Para terem ideia do quanto importava, muitas vezes, a resistência a favor da ortodoxia contra a heresia, basta dizer o seguinte: Santo Atanásio, num lance de sua luta, para fugir aos hereges passou seis anos no fundo de um poço! Não sei se os aqui presentes se dão bem conta do que significa isso: sem ver sequer a luz do dia! Havia apenas um católico fiel o qual, na hora em que o poço estava abandonado, lhe jogava o necessário para viver. O poço, ao menos água lhe fornecia…  E ele ficava ali lendo, refletindo, rezando, de maneira que Deus, no mais alto dos Céus, recebeu durante seis anos o louvor perfeito que um santo lhe enviava do fundo de um poço. Sempre confiando na Providência, disposto a lutar, inquebrantável no seu propósito, de maneira que, ao cabo de seis anos, a perseguição se amainou e o amigo dele lhe avisou do alto do poço. Ele, então, saiu e continuou sua luta contra o arianismo.

Numa outra ocasião — a provação foi menor, mas não deixou de ser também impressionante — ele teve que fugir pelos desertos do Egito, e não encontrou lugar para se refugiar a não ser a sepultura do próprio pai. E passou ali dentro durante quatro meses! Lúgubre é, não para a alma de um grande santo, mas, em todo caso, para a sensibilidade humana. De lá ele saiu e conseguiu retomar a luta contra o arianismo. E fazia isso por meio de sermões extraordinários, que eram anotados, e as cópias transmitidas de católico para católico, por toda a extensão do Império Romano.

Um conciliábulo de arianos

Certa vez, Santo Atanásio foi intimado a comparecer a um grande concílio de bispos arianos. Ele declarou que não iria porque eram bispos hereges, não os reconhecia como verdadeiros católicos e não tinha comunhão com aquela gente. Mas o santo recebeu do Imperador Constantino um decreto, obrigando-o comparecer para discutir com os hereges. Aí mudava a situação. Não era mais aceitar o concílio como uma assembleia legítima, da qual ele participaria, mas ir lutar contra o pseudo concílio, aliás, um conciliábulo de hereges.

Ele, então, foi; estavam presentes cento e tantos bispos, o que para aquele tempo era muita coisa, e com os hábitos de seriedade e solenidade daquela época. Acompanhado de um sacerdote que lhe era fiel, Santo Atanásio entra na assembleia, onde todos os bispos paramentados o recebem. Não lhe destinam lugar para sentar-se; ele fica em pé e percebe logo que os arianos não queriam discutir doutrina — porque os hereges não gostam de discutir doutrina, eles vão fazendo afirmações e depois caluniam.

Santo Atanásio percebeu que se tratava de uma acusação; ele ia ser julgado, numa atmosfera de calúnia e de ódio tal que nem se constituía um tribunal regular, o qual ele recusaria. Foi um puro vozeiro contra ele. E a primeira investida foi essa: uma mulher de má vida levantou-se e disse que ela estava rica devido ao dinheiro que Santo Atanásio lhe dava; tinha presenciado, durante os períodos em que ele passava em lugares que não se sabia onde, tais e tais abominações; e que podia dar provas disso porque ela era testemunha.

Então, à medida que ela falava, os bispos arianos bramiam que ele precisava ser deposto, condenado etc. — porque não há como um herege para se fingir de zelador dos bons costumes, quando se trata de perseguir um verdadeiro católico. Santo Atanásio, com uma inteligência extraordinária, sutil, não disse nada. Conservou-se sereno e deixou o pessoal vociferar. Apenas ele soltou um cochicho no ouvido do padre que o acompanhava. Quando o sacerdote pôde cortar a palavra da meretriz, ele lhe disse, fingindo que era Santo Atanásio: “Então, você afirma realmente que me conheceu, que me viu etc.?” A tonta pensou que aquele fosse Santo Atanásio, o qual ela nunca tinha visto. Então, declarou: “Afirmo.” “Jura?” “Juro.” Notem com que superior inteligência ele decidiu a situação!

Deu-se, então, na assembleia o que ocorreu aqui com os presentes: os próprios hereges estalaram na gargalhada. Porque a farsa ficou de tal maneira evidente, que não era mais possível continuar. E houve um movimento para dissolver todo mundo, porque a coisa tinha terminado em chanchada.

Acusado de ter decepado a mão de um bispo

Aí, alguns mais fanáticos dentre os arianos começaram a exclamar: “Tem mais essa acusação, que é gravíssima!” É tal a má-fé dessa gente que voltaram para ouvir a segunda acusação. Depois de se ver que a primeira era uma chanchada, do que valeria a autoridade desses mesmos homens para levantarem outra acusação?

E Santo Atanásio foi mais uma vez extraordinariamente servido pela Providência. Levantou-se um bispo herético, tirou de uma caixa uma mão ressequida de um morto, e disse: “Aqui está a mão de tal bispo meleciano — havia uma heresia colateral, meio metida com a dos arianos, chamada dos melecianos(2) —, morto por Atanásio em tal ocasião. E isso foi um crime nefando. Para provar que ele realmente foi morto, aqui está a mão desse venerável homem de Deus, que se afundou no deserto — era o mesmo deserto onde estava Santo Atanásio. Quem é que poderia ter cometido esse assassinato senão Atanásio?” Santo Atanásio ouviu isso também com toda a serenidade possível.

Entre os assistentes — é uma coisa que só se explica por intervenção divina — havia um homem de cabeça baixa e recoberto com aqueles panos do Oriente. Santo Atanásio foi até ele e perguntou aos arianos: “O bispo tal morreu? Vocês têm certeza?” “Temos”. O santo puxou o pano e disse: “Olhem, aqui está ele”. Era o próprio bispo meleciano…

Então, Santo Atanásio, gracejando, disse o seguinte: “Deus não deu a cada um de nós mais do que duas mãos; levante uma mão!” Ele levantou. “Agora levante a outra”. Ele o fez e o santo concluiu: “Bem, compete a vocês explicar em que parte do corpo dele se encaixava outra mão”. Cumprimentos… e o caso estava liquidado.

Os arianos desarmaram? Não. Começaram a gritar atrás de Santo Atanásio: “Mágico, praticou crime de magia! Não se pode explicar, a não ser por magia, que esse homem estivesse aqui presente nesta hora!” Essa é a psicologia do herege. Diante das provas mais capazes de cegar, mais deslumbrantes de que estão com má-fé, eles não desanimam; encontram outra calúnia e mais outra, e vão sempre para a frente. Mas a coisa ficou tão desmoralizada que acabou.

Sagacidade de Santo Atanásio

Santo Atanásio, como verdadeiro santo, tinha horror à mentira. Evidentemente, não mentia nunca, nem em matéria leve. Certa vez, ele estava andando pelo deserto e, em determinado momento, apareceram tropas imperiais à procura dele, e alguém lhe perguntou: “Sabes onde está Atanásio?” Não o reconheceram. Diz o santo: “Sei sim, ele não está longe daqui”. Os militares foram à sua procura, e ele desviou…

Da parte de um Doutor da Igreja, exímio teólogo com profundidade de espírito, herói de grande sisudez, esses traços enriquecem a fisionomia dele, mostrando a pluralidade e a riqueza de aspectos que tem a alma de um verdadeiro santo. Sobretudo, destroçando um pouco a ideia sentimental que certas imagens projetam sobre o fiel a respeito do santo. Não me refiro às imagens monstruosas da “arte” moderna, mas a certas imagens que apresentam o santo com uma carinha muito bem-feitinha, sem barba, com um sorrisinho de quem não compreendeu nada.

Não é isso de nenhum modo um Doutor da Igreja, sobretudo um Santo Atanásio, um dos maiores santos de toda a História, e ele sozinho um lutador contra a heresia, como talvez a Igreja não tenha tido nem antes nem depois dele.

Horrível morte de Ario

Para conhecerem os lados dramáticos da vida dele, menciono apenas um episódio, e com isso encerro este comentário sobre Santo Atanásio.

Constantino, o Grande, que libertou a Igreja, foi enredado pelas intrigas dos arianos. Aliás, a vida post-conversão de Constantino é um tanto discutida. Em certo momento, ele tomou partido decidido por Ario, chamou Santo Atanásio e o expulsou para a Gália. O santo lhe disse: “Vós me proibis de voltar para meu trono patriarcal e apoiais os hereges. Prestareis em breve contas a Deus por isso!”

 E dirigiu-se para a Gália, onde foi recebido, aliás, com todas as atenções e toda a cortesia por Constâncio, filho de Constantino, o Grande. E ali esteve durante algum tempo. Depois foi para Roma, e justificou-se perante o Papa, que lhe deu toda a razão. E aproveitou a ocasião — assim são os santos: eles são expulsos de um lado e aproveitam para fazer maravilhas de outro; ninguém consegue tolher sua capacidade de ação — para fundar o estado monástico em Roma, diz seu biógrafo.

Posteriormente, chegou a notícia de que Constantino tinha morrido, e ao mesmo tempo a informação de que também Ario falecera. Este havia sido colocado por Constantino no trono patriarcal, onde ele era um arcebispo usurpador, não o patriarca legítimo. No ato de sua posse, Ario organizou a procissão com aquela solenidade que se fazia antigamente para a posse de um bispo; e quando a procissão transcorria, ele, em determinado momento, estando perto de instalações sanitárias públicas, sentiu-se mal. Então desceu do animal em que montava e entrou numa dessas instalações, e ali morreu do modo mais horrível que possa haver: parece que o abdome dele se rompeu e suas vísceras se derramaram no chão. Assim, em pouco tempo, morreram Constantino e também Ario; e Santo Atanásio ficou senhor da diocese.

Acolhido triunfalmente em Alexandria

Mas pouco tempo depois recomeçaram as perseguições; ele levou sua vida, quase até o fim, de perseguição em perseguição.

O povo de Alexandria gostava muito dele e, em geral, quem o perseguia eram pessoas corrompidas das classes dirigentes. Numa das ocasiões em que voltou para essa cidade, ele foi reempossado na Arquidiocese como legítimo pastor. A população preparou-lhe uma grande recepção, tão afetuosa e extraordinária, que passou como provérbio, em Alexandria e naquelas partes do Egito, a seguinte expressão, quando se queria dizer que alguém foi muito bem acolhido: “Foi recebido como Santo Atanásio”. Era o último grau da popularidade, da acolhida respeitosa, cheia de veneração, filial e, ao mesmo tempo, plena de entusiasmo.

Há um outro aspecto da vida de tantos santos perseguidos. As cúpulas corrompidas organizam contra eles toda espécie de difamação. Mas o Espírito Santo sopra onde quer e previne a opinião pública a respeito da realidade das coisas. De maneira que, de um modo ou de outro, acontece com frequência — não é uma regra absolutamente geral, pois nessa matéria não há regras absolutamente gerais — que o povo vê claro e faz justiça àquele que os poderosos estão perseguindo.

Essas são as notas mais interessantes, que me pareceu conveniente apresentar a respeito do grande Santo Atanásio.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência  de 20/2/1971)

Santo Antonino de Florença

Arcebispo de Florença e grande amigo do Beato Angélico, Santo Antonino lutou contra os desvios da Renascença.

 

A partir do momento em que foi eleito Arcebispo de Florença, Santo Antonino lutou acirradamente contra os desvios propagados pelos renascentistas. Acompanhemos a descrição de sua vida feita pelo Pe. Rohrbacher:

“Antônio, que por sua pequena estatura foi chamado Antonino, nasceu em 1389, sendo filho de um notável homem de Florença. Destacou-se desde cedo nos estudos por sua invulgar inteligência”.

Florença foi uma das grandes cidades que iluminaram a História, com seu especial modo de ser. Florença — ela é a cidade das flores — floresceu precisamente numa época na qual a História italiana encontrava-se em um “tournant”, como denominam os franceses, no  momento em que novos rumos se constituíam e tudo se transformava.

Configurava-se um conflito entre a tradição medieval e os fortes ventos da Renascença que ameaçavam tudo destruir. Entretanto, havia ainda possibilidades de sensibilizar a opinião italiana, caso grandes santos combatessem de frente a Renascença então vicejante.

Florença era propriamente o foco da Renascença. Encontravam-se lá, então, os maiores talentos renascentistas, capazes de irradiar sobre a Itália o seu novo estilo, e que realizavam, na própria cidade, obras de arte de um valor extraordinário. Florença tinha grande importância para aquele tempo. Sendo metrópole do Grão-ducado de Toscana, possuía uma dinastia que haveria de ligar-se por vários laços de casamento com a Casa da França, e haveria de dar mais de um Papa ao sólio pontifício: os Médici, uma das famílias mais poderosas e importantes da Europa. Florença era então um luzeiro do mundo, nutrindo de especial significado, realce e importância, a tudo quanto se passava em seu meio.

A resposta da Providência não haveria de tardar…

“Muito cedo desejou entrar na Ordem Dominicana, pela santidade dos seus membros e pela influência das pregações do Beato João Dominichi. A este pregador dirigiu-se Antonino pedindo o hábito. Mas Dominichi, achando-o muito débil e frágil, prometeu atendê-lo quando houvesse decorado a obra “Decretos de Graciano”. Antes de um ano, para pasmo do dominicano, voltou o menino. Decorara a obra e foi admitido aos dezesseis anos somente.

“Religioso exemplar, foi mais tarde Prior dos dominicanos de Toscana e Nápoles.

“Em 1445 o Papa Eugênio IV procurava um arcebispo para Florença. Um frade dominicano pintor, que mais tarde seria conhecido como Fra Angélico, indicou Antonino como modelo de virtudes. O Papa acedeu à sugestão e, nomeando-o arcebispo, o santo entrou em Florença com pompa magnífica, segundo o costume, mas suprimindo o que havia de secular nessa solenidade…”

Nessa situação, a Providência designou um santo recolhido, diáfano e robusto na Fé: Fra Angélico de Fiesole. Possuindo um talento artístico repleto de delicadeza, candura e, quase se afirmaria, santa ingenuidade, não obstante demonstrou sagacidade e perspicácia, quando se tornou necessário indicar quem deveria assumir o Arcebispado de Florença. O homem a quem indicara foi Santo Antonino.

Ao mesmo tempo em que permitia que as hidras da Renascença deitassem ali todo o seu calor, a Providência fazia florescer santos e gênios naquele mesmo ambiente, para disputar influência e combater o fogo das novas tendências.

Surge então Antonino como Bispo de Florença. Podem-se imaginar os magníficos veludos e damascos com os quais foram confeccionadas as roupagens dos personagens que tomaram parte no cortejo de Santo Antonino, na ocasião em que tomou posse da Sé Arquiepiscopal da cidade. Dessa pompa, ele retirou sabiamente tudo quanto havia de profano…

O poder da santidade

“No trono episcopal, mostrou todas as virtudes de um verdadeiro pastor. Trabalhou com tanto zelo para reformar os escândalos públicos, que o Papa Pio II o escolheu para a reforma da Cúria Romana. Mas antes que pudesse iniciar este grande mister, Deus chamou-o a Si. Era o ano de 1459. Grande orador foi o Arcebispo de Florença. Sua santidade e cultura levaram-no a ser consultado pelos grandes da época, o que lhe valeu o apelido de “Antonino, o Conselheiro”. Seu lema de vida era “Servir a Deus é reina”. Cosme de Médici o tinha em tão alta consideração, que afirmava que a cidade de Florença tudo devia às orações do santo arcebispo.”

A história pouco conta sobre a ação desenvolvida por ele a favor da austeridade de costumes, como também o combate frontal às influências maléficas da Renascença. Dos historiadores renascentistas, vários reconhecem que pela presença de Santo Antonino na Sé de Florença, o movimento da Renascença perdeu em algo seu vigor e sua velocidade em contagiar a cidade e, consequentemente, toda a Itália.

Conclui-se a partir disso quanto é grande o poder de um santo, ao ponto de uma das figuras mais eminentes e talvez mais condenáveis do Renascentismo, Cosme de Médici, afirmar que a cidade devia tudo às orações de Santo Antonino. Vê-se o quanto este santo podia realizar, e quanta receptividade ainda havia em relação a ele.

Poderia alguém indagar-se: “Qual o sentido dessa obra da Providência? Um santo que passa como um meteoro que brilha, detém um pouco o curso das coisas, mas cuja obra não consegue evitar o avanço do Renascimento. Qual é o alcance histórico do fato de a Providência ter colocado Santo Antonino em Florença?”

Uma alma zelosa nunca poderia colocar-se essa pergunta, porque basta ter contido a onda renascentista durante algum tempo, para contribuir em alto grau à glória de Deus. Como Santo Inácio de Loyola que afirmava ter sido bem empregada por amor à glória de Deus uma vida inteira de lutas e padecimentos, a fim de que um grande pecador deixasse de cometer um pecado mortal.

Corresponder é vencer!

Compreende-se, por isso, que deter por pouco que seja a imensa onda de pecados provenientes da Renascença, é evidentemente algo que possui muito significado para quem almeja a glória de Deus.

Há um outro aspecto digno de consideração, que se centra na continuação da obra iniciada por Santo Antonino e pelo Beato Angélico. Deveriam haver almas que eram raízes de bem, aptas a dar continuidade ao trabalho por eles iniciado, e naturalmente apoiadas pelo Papado, e que prosseguissem a ofensiva contra a Renascença.

E com pesar pode-se constatar que a obra da Providência não foi completada pela obra dos homens. E as almas chamadas por Santo Antonino a continuarem sua obra, não corresponderam ou não obtiveram o apoio necessário, e então a obra ruiu.

Deduz-se, então, quão importante é o papel da história de uma alma. Deparamo-nos com uma cidade que irradiava a intemperança para o mundo inteiro, mas que de tal forma era tocada por talentos e dons, que caso as almas eleitas para empunhar a tocha da reação anti renascentista fossem fiéis, possivelmente a cidade inteira teria se convertido. Uma vez convertida a cidade, era bem possível que a história do mundo fosse completamente diversa.

Florença podia ter alterado a história do mundo se, por seu lado, algumas almas próximas de Santo Antonino houvessem modificado a história de Florença. Portanto, se a história do mundo não se alterou, e o mundo desceu pelo despenhadeiro da Renascença — sucessivamente à Revolução Francesa e ao Comunismo — isto se deve a algumas almas que foram fracas e não tiveram generosidade. Disseram “não”, ou disseram um “sim” incompleto ao convite da Providência. Por causa dessas almas, a História não mudou.

Não é devido ao grande talento de algum renascentista que a obra de Santo Antonino não vingou. A dificuldade é que a Providência encontre sempre fiéis os homens que Ela suscitou para serem seus instrumentos. Se todos os eleitos por Deus fossem de fato fiéis, não haveria quem impedisse os planos da Providência de se executarem.

“Vae mihi!”

Surge então uma aplicação para cada alma individualmente: “Não serei também uma alma destas? Não fui chamado a ter uma fidelidade ilibada? Não será que uma pequena falta de generosidade de minha parte determinará um recuo notável nos planos da Providência?”

Quantas vezes não temos a possibilidade de fazer bem a uma alma, que por sua vez faria o bem a inúmeras outras almas! Não poderia resultar dessa atitude uma reação boa que fosse, sob diversos aspectos, um golpe no adversário? Entretanto, por falta de paciência, quantas não foram as ocasiões em que rejeitamos o apelo de Deus, no zelo pelas almas.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência  de 9/5/1968)

 

Maio, Mês de Maria

Na terceira “Edição Típica do Missal Romano”, que acaba de ser publicada pela Santa Sé, o dia 13 de maio fica designado oficialmente como celebração litúrgica de Nossa Senhora de Fátima. É uma razão a mais para tornar este mês excelente ocasião de rogarmos à Santíssima Virgem que Ela intervenha nos acontecimentos para renovar a face da terra, segundo prometeu em Fátima.

 

No mês de maio mês de Maria -, sente-se uma proteção especial de Nossa Senhora estender-se sobre todos os fiéis, e uma alegria que brilha e ilumina nossos corações, exprimindo a universal certeza dos católicos de que o indispensável patrocínio de nossa Mãe celestial se torna, durante esse período, ainda mais solícito, mais amoroso, mais cheio de visível misericórdia e exorável condescendência.

Entretanto, depois de cada mês de maio, alguma coisa fica, se tivermos sabido viver convenientemente esses trinta e um dias especialmente consagrados a Nossa Senhora. O que nos fica é uma devoção maior, uma confiança mais especial, e, por assim dizer, uma intimidade tão mais acentuada com Nossa Senhora, que em todas as vicissitudes da vida saberemos pedir com mais respeitosa insistência, esperar com mais invencível confiança, e agradecer com mais humilde carinho todo o bem que Ela nos faça.

Nossa Senhora é a Rainha do Céu e da terra, e, ao mesmo tempo, nossa Mãe. É esta a convicção com que entramos sempre no mês de maio, e tal convicção se radica cada vez mais em nós, lança claridades e fortaleza sempre maiores, quando o mês de maio se encerra. Maio nos ensina a amar a Maria Santíssima por sua própria glória, por tudo quanto Ela representa nos planos da Providência. E nos ensina também a viver de modo mais constante nossa vida de união filial a Maria.

 

Sofrimento do mundo contemporâneo

Os filhos nunca estão mais seguros da vigilância amorosa de suas mães, do que quando sofrem. A humanidade inteira sofre hoje em dia. E não só todos os povos sofrem, mas quase se poderia dizer que sofrem de todos os modos por que podem sofrer.

As inteligências são varridas pelo vendaval da impiedade e do ceticismo. Tufões loucos de messianismos de toda ordem devastam os espíritos. Idéias nebulosas, confusas, audaciosas, esgueiram-se em todos os ambientes, e arrastam consigo não só os maus e os tíbios, mas até por vezes aqueles de quem se esperaria maior constância na Fé.

Sofrem as vontades obstinadamente apegadas ao cumprimento do dever, com todas as contrariedades que lhes vêm de sua fidelidade à Lei de Cristo. Sofrem os que transgridem essa Lei, pois que longe de Cristo todo prazer não é, no fundo, senão amargura, e toda alegria uma mentira. […] Sofrem os corpos, depauperados pelo trabalho, minados pela moléstia, acabrunhados por todo tipo de necessidades.

Pode-se dizer que o mundo contemporâneo, semelhante ao que vivia no tempo em que Nosso Senhor nasceu em Belém, enche os ares com um grande e clamoroso gemido, que é o gemido dos maus que vivem longe de Deus, e dos justos que vivem atormentados pelos maus.

 

Pedir, por meio de Maria, que o Espírito Santo renove a face da terra

Quanto mais sombrias se tornarem as circunstâncias, quanto mais lancinantes as dores de toda ordem, tanto mais devemos pedir a Nossa Senhora que ponha termo a tanto sofrimento, não só para fazer cessar, assim, nossa dor, mas para maior proveito de nossa alma. Diz a sagrada Teologia que a oração de Nossa Senhora antecipou o momento em que o mundo deveria ser redimido pelo Messias. Neste momento cheio de angústias, volvamos confiantes nossos olhos a Nossa Senhora, pedindo-Lhe que abrevie o grande momento que todos esperamos, em que uma nova Pentecostes abra clarões de luz e de esperanças nessas trevas, e restaure por toda parte o Reinado de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Devemos ser como Daniel, de quem diz a Escritura que era “desideriorum vir”, isto é, homem que desejava grandes e muitas coisas. Para a glória de Deus, desejemos grandes e muitas coisas. Peçamos a Nossa Senhora muito, e sempre. E o que sobretudo Lhe devemos pedir é aquilo que a Sagrada Liturgia suplica a Deus: “Emitte Spiritum tuum et creabuntur, et renovabis faciem terrae” (“enviai o vosso Espírito e todas as coisas serão criadas, e renovareis a face da terra”). Devemos pedir, por intermédio de Nossa Senhora, que Deus nos envie em abundância o Espírito Santo, para que as coisas sejam novamente criadas, e purificada por uma renovação a face da terra.

Diz Dante, na “Divina Comédia”, que rezar sem o patrocínio de Nossa Senhora é a mesma coisa que querer voar sem asas. Confiemos a Nossa Senhora este anelo em que vai todo o nosso coração. As mãos de Maria serão para nossa prece um par de asas puríssimas por meio das quais chegará certamente ao trono de Deus.

 

(Transcrito da “Ultima Hora”, de 7/5/1984. Subtítulos nossos.)