Magníficos Príncipes celestes

Desde toda a eternidade, foi designado para cada homem um Anjo Custódio a velar incansavelmente, dia e noite, por seu protegido, inspirando os bons pensamentos, defendendo dos assaltos inimigos. Aos Anjos devemos rogar em todos momentos difíceis da vida.

 

Deus dispensa a água às criaturas em condições muito diferentes. Se considerarmos o globo terrestre, notaremos como a água nos é concedida aos borbotões. Em primeiro lugar o oceano, depois

todos os rios que saem de dentro da terra e correm para o mar e o enchem continuamente, além de tudo aquilo que na natureza está colocado em estado gasoso nas nuvens. Com esta criatura água quantas coisas maravilhosas Deus fez!

Uma gota de orvalho

Entretanto, Ele realizou também com a água uma pequena joia e a multiplicou indefinidamente por todos lugares onde há plantas. Quem não viu e não se encantou com uma gota de orvalho, contemplando-a tão pura, tão límpida e com um tal modo de guardar a luz que bate sobre ela, que a luz parece passear dentro da gotinha e se regalar de imergir naquela pureza?!

De tal maneira a gota de orvalho me encanta que me lembro, em pequeno – quando estava sozinho porque não queria passar por extravagante –, de que, vendo o orvalho numa folha, eu a aproximava dos lábios e sorvia uma gota. Porque, sendo menininho, não podia me convencer de que uma coisa tão linda não tivesse um sabor muito gostoso.
Quando punha aquilo nos lábios percebia que não era saboroso, mas arranjava um pretexto para mim mesmo a fim de conservar minha ilusão. E pensava: “Quando for adulto – sem essa gente que está por aí e não entende nem vê nada –, algum dia irei com um copo numa mata e o encherei de orvalho. Só essa gota não me faz sentir o inteiro sabor, mas se eu tivesse um copo cheio, que beleza e delícia seria! Mais gostosa do que o champanhe”.
Algo semelhante ocorre com relação aos discursos, às conferências, à oratória…
No momento, só tenho a oferecer uma gota de orvalho. É uma pequena reflexão sobre matéria piedosa. Embora tenha tratado desse assunto em diversas ocasiões, é um tema tão bonito, tão admirável, que merece ser aprofundado um pouco: os Anjos da Guarda.

Anjos que regem os corpos celestes

Como ensina a Teologia, os Anjos são divididos em nove categorias sobrepostas umas às outras. A mais alta é a dos Serafins, que veem Deus mais direta e plenamente, conhecem maravilhas que as categorias inferiores não chegam a ver, e lhes contam aquilo que eles contemplaram.
Muita coisa que em Deus é mistério, Ele quer, na sua bondade, que os Anjos superiores entendam e contem para os que lhes estão abaixo. E assim as noções a respeito do Criador vão descendo e chegam à categoria menos excelsa, básica, que são exatamente os Anjos da Guarda.
Entretanto, esses também são tão esplendorosos, tão magníficos, que, às vezes, os Santos aos quais aparecem pensam que eles são Deus. E os Anjos precisam dizer-lhes: “Não, Deus é excelsamente mais alto, não tem comparação!” Eles veem Deus face a face e contam um pouco a respeito do Criador.

Deus outorgou para cada criatura humana um Anjo da Guarda. Como também se admite, cada estrela tem um Anjo especial para regê-la, de maneira que se tudo anda tão certo é porque os espíritos celestes estão conduzindo aquilo a funcionar direito. Os Anjos têm meios para isto porque são puros espíritos e recebem de Deus diretamente as ordens de como fazer. Então tudo sai perfeito.
Recentemente, Júpiter foi perfurado por um outro corpo celeste. Isso sucedeu por ordem de Deus, pois tudo se dá porque o Criador quer e na medida em que Ele quer. É possível que de futuro aquilo tenha uma explicação, foi um aviso misericordioso para os homens: “Prestem atenção, aí vem o castigo, qualquer hora pode acontecer isto com a Terra!”
Nossos Anjos da Guarda, que não nos perdem de vista de dia nem de noite, pois quando dormimos eles velam por nós, veem que estamos lendo a notícia sobre Júpiter e obtêm a graça de Deus de poderem sussurrar à alma de cada um de nós – sem que percebamos que estão sussurrando, temos a impressão que é pensamento nosso – o seguinte: “Pense nisto porque, de repente, se houver um castigo, a ponta de um outro planeta poderá tocar na Terra e atingirá você; tenha medo, arrependa-se!” É o Anjo da Guarda que fala para a alma com carinho, bondade e, se diz com força, faz como o bom pai quando, às vezes, chicoteia o seu filho.
Afirma a Sagrada Escritura: “O pai que poupa a vara ao seu filho odeia seu filho” (cf. Pr 13, 24). Poupar aqui quer dizer não chicotear quando é necessário. É a palavra de Deus, ditada pelo Espírito Santo.

Sob a tutela de fiéis custódios

O Anjo da Guarda está continuamente debruçado sobre a pessoa. E quando um de nós, por exemplo, precisar andar sozinho pelas ruas das cidades contemporâneas, tão cheias de poluição e imorais, peça ao Anjo da Guarda na hora de sair de casa:
“Meu Santo Anjo, acompanhai-me, protegei-me, falai à minha alma, livrai-me dos maus olhares, evitai os inimigos que possivelmente querem me liquidar, os desastres que podem me massacrar, trazei-me todo o bem, fazei acontecer isto, aquilo e aquilo outro”.
E quando estiver caminhando, lembre-se de uma coisa reconfortante: o Anjo da Guarda nunca abandona o seu protegido. De maneira que, à medida que avança ouvindo os próprios passos ressoarem sobre o cimento da rua, pode pensar: “Meu Anjo da Guarda está me vendo”. E se alguém está tentado, diga: “Meu Santo Anjo, protegei-me, afastai esse demônio de mim!”
Sem dúvida, todos nós quereríamos muito conhecer nossos Anjos da Guarda. Sabemos que existem, a Teologia nos dá informações sobre eles, mas não os vemos. Entretanto, eles nos veem. Ao mesmo tempo em que estão velando por nós, contemplam a Deus face a face e conversam uns com os outros sobre o que eles veem na Terra, o andamento da Revolução e da Contra-Revolução e os desígnios divinos. E como Deus não lhes conta muita coisa que vai fazer, eles examinam o que o Criador realiza para ver se deduzem pela inteligência o que Ele fará, e conversam uns com os outros sobre isso mas, à maneira de um cântico, porque são superiores a nós em toda linha.
O que vou dizer agora apresento como uma impressão exclusivamente pessoal, de maneira que se a Igreja disser que não é assim, rejeito imediatamente, porque Ela é infalível, eu sou falível.
Tenho a impressão de que, desde toda a eternidade, cada um de nós foi escolhido para ser beneficiado com a tutela, a proteção de um Anjo. E cada Anjo Custódio tem uma certa parecença com seu custodiado. Se nós o conhecêssemos ficaríamos pasmos de ver como ele “sente” como nós, quer aquilo que os nossos lados bons desejam, gosta do que gostamos, a ponto de nos sentirmos um parente próximo de um Príncipe celeste tão magnífico como aquele.

 

Anjos da Excelsa Rainha

Nossa Senhora, segundo muitos místicos, foi acompanhada na Terra por milhares de Anjos que A protegiam e A defendiam. Entre as meras criaturas, não há nenhuma que tenha, debaixo de nenhum ponto de vista, nenhuma medida, proporção com Nossa Senhora.
A Virgem Maria é de uma perfeição, santidade, até de uma formosura incomparável, que ninguém é capaz de conceber. E se tal é a excelcitude de Nossa Senhora, como imaginar a estatura dos Anjos que A custodiaram e que A circundam agora no Céu? É algo a perder de vista!
Pois bem, Ela é a Rainha dos Anjos; Ela tem pena de nós, olha-nos como para filhos doentes, de uma doença chamada pecado original, e reza por nós e nos obtém o que não poderíamos conseguir por nós mesmos. Daí o fato de dizermos na Salve Rainha: “Vida, doçura, esperança nossa, salve!”
Assim, sugiro que, quando tiverem dificuldades, tentações, façam uma jaculatória rápida: “Santo Anjo do Senhor, meu zeloso guardador, já que a ti me confiou a piedade divina, sempre me rege, guarda, governa e ilumina”. E voltem o olhar para Aquela que é nossa e dos Anjos Rainha.
Eis a gota de orvalho que eu tinha a oferecer.v

(Extraído de conferência de 30/7/1994)

Assunção de Maria: triunfo de Deus, glória da Criação

Os homens costumam realizar magníficas cerimônias de triunfo para festejar seus heróis. De modo superexcelente, por ocasião da Assunção, Nosso Senhor Jesus Cristo preparou para sua Mãe momentos de glória inexcogitáveis.

A Assunção de Nossa Senhora foi constituída em dogma pelo Papa Pio XII há poucos anos. Esse dogma foi ardentemente desejado pelas almas católicas do mundo inteiro, por ser mais uma das afirmações a respeito d’Ela que A coloca fora de paralelo com qualquer outra mera criatura, justificando o culto de hiperdulia que a Igreja Lhe tributa.

Suave morte seguida da ressurreição

Nossa Senhora, depois de uma morte suavíssima, qualificada com uma linguagem muito bonita pelos autores como a “dormição”, para indicar que, apesar de ter sido uma morte verdadeira, entretanto, mais pareceu um simples sono; Ela, depois da morte, ressuscitou como Nosso Senhor Jesus Cristo. Foi chamada à vida por Deus e subiu depois aos Céus, na presença de todos os Apóstolos ali reunidos, e de uma quantidade muito grande de fiéis.
A Assunção representa para a Santíssima Virgem uma verdadeira glorificação aos olhos de toda a humanidade até o fim do mundo, e o prêmio que Ela deveria receber no Céu.

Momento sublime, espetáculo incomparável

 

Seria interessante se pudéssemos fazer uma recomposição de lugar para imaginarmos, à nossa maneira e de acordo com nossa piedade, como a Assunção se passou, uma vez que a respeito dela não existem descrições, havendo uma multidão de aspectos que poderiam ser representados.
Nossa Senhora subindo e, em baixo, os Apóstolos ajoelhados, rezando, com algo de inefavelmente nobre, sublime, recolhido, interior; todos eles com as expressões dos personagens de Fra Angélico. Em cima, o céu enchendo-se gradualmente de Anjos, também ao modo de Fra Angélico. O céu material tomando coloridos os mais diversos, com matizações, irradiações magníficas, de maneira tal a apresentar um espetáculo absolutamente incomparável.
Se Nossa Senhora pôde dar ao céu um colorido tão magnífico, tão diverso e produzir fenômenos tão excepcionais em Fátima, por que o mesmo não se teria dado por ocasião de sua Assunção ao Céu?
Ela, em oração, Se coloca de pé; o respeito e recolhimento tomam conta de todos os que estão ao redor; a semelhança física d’Ela com Nosso Senhor Jesus Cristo vai crescendo, vai se acentuando cada vez mais.

A glória de Nosso Senhor transfigurado vai se comunicando a Ela, cada vez mais Rainha, cada vez mais majestosa, cada vez mais Mãe também. Todo o seu íntimo se manifestando de modo supremo nesta hora de despedida. Alguns Anjos se aproximam, talvez os mais esplêndidos do Céu, e acompanham Nossa Senhora. Ela vai subindo…

Aos poucos o Céu vai se transformando, aquela maravilha vai mudando. A terra volta ao aspecto primitivo, os homens retornam às suas casas com a sensação que tiveram após a Ascensão de Nosso Senhor: ao mesmo tempo maravilhados e com uma saudade sem nome; desolados por algum lado, mas levando na retina algo que nunca tinham visto, nem podiam ter imaginado a respeito de Nossa Senhora.
É impossível pensar neste triunfo terreno, sem pensar no celeste que veio logo depois.

A glória da Rainha, prelúdio do Reino de Maria

 

O triunfo de Nossa Senhora começa no Céu! A Igreja Gloriosa inteira vai recebê-La, todos os coros de Anjos, São José, Nosso Senhor Jesus Cristo A acolhe, Ela é coroada pela Santíssima Trindade.
É a glorificação de Nossa Senhora aos olhos de toda a Igreja Triunfante e Militante. Com certeza, neste dia a Igreja Padecente teve uma efusão de graças extraordinárias, e não é temerário pensar que quase todas as almas do Purgatório tenham sido libertadas por Ela. De maneira que também ali houve uma alegria enorme. Assim podemos imaginar como foi a glória dessa nossa Rainha.
Algo disso se repetirá, creio eu, quando vier o Reino de Maria.
No momento em que o mundo estiver transformado e a glória de Nossa Senhora brilhar sobre a Terra, terá começado o reinado d’Ela de modo efetivo, e os dias maravilhosos de graças, como nunca houve antes, começam a se anunciar.
Antes de contemplarmos a glória de Nossa Senhora no Céu, nós haveremos de contemplá-la na Terra, certamente, com algo que poderá nos dar, com uma tal ou qual analogia, com alguma semelhança desse triunfo sem nome que deve ter sido, mesmo aos olhos dos homens, a glória de Maria.
Houve triunfos que os homens prepararam para seus grandes batalhadores, por exemplo, quando as tropas francesas, que venceram os alemães, desfilaram sob o Arco do Triunfo, depois da Guerra de 1914-1918. Quando pensamos no triunfo preparado para o MacArthur1; em tantos triunfos que os romanos preparavam para os seus generais vencedores. Assim, devemos compreender que Nosso Senhor Jesus Cristo, que é infinitamente mais generoso, deve ter premiado Nossa Senhora, no triunfo d’Ela aos olhos dos homens, de um modo incomensuravelmente maior, e que deve ter havido tudo quanto há de mais glorioso e triunfal nesta hora da Assunção de Nossa Senhora.

O senso da glória de Maria

Meditando nisso, aproximamo-nos da festa da Assunção, pensando qual virtude devemos pedir a Nossa Senhora. É claro que cada um deve pedir aquela de que mais carece. Mas não haveria demasia em pedirmos a Ela uma virtude em específico: o senso da glória d’Ela, para compreendermos bem tudo quanto representa sua glória na ordem da Criação, e o quanto esta é a mais alta expressão criada da glória de Deus. Devemos ser sedentos de afirmar e defender – por uma virtude de combatividade levada ao seu último extremo –, a glória de Nossa Senhora na Terra.
Que Ela faça de nós verdadeiros cavaleiros, verdadeiros cruzados d’Ela, lutando por sua glória na Terra. Essa me parece a virtude mais adequada a pedir nesta festa de glória, que é a Assunção de Nossa Senhora.v
(Conferência de 14/8/1964)

1) Douglas MacArthur, oficial militar norte-americano (*1880 – †1964) que desempenhou um papel preponderante durante a Segunda Guerra Mundial.

 

Mãos para confortar quem sofre e esmagar as heresias

São Pio X era para todos os que o visitavam o pai por excelência, de coração inexprimivelmente suave e compassivo. Aconselhou a Comunhão quotidiana e a das crianças, incentivou a devoção a Nossa Senhora e também condenou o modernismo. Fez ver a todos os fiéis que se as mãos de um Papa e de um Santo são maternais para cicatrizar as feridas de quem sofre, sabem esmagar os erros e as heresias.

De origem humilde e não tendo passado pela admirável escola de formação política que é a carreira da diplomacia pontifícia, o Santo Padre Pio X teve de arcar com a sucessão do Papa Leão XIII.

Igreja ameaçada por uma das crises mais complexas e graves

 

Quando este último ascendeu ao trono pontifício, encontrou a Igreja em situação delicadíssima, ameaçada de todos os lados por uma das crises mais complexas e graves de sua História. Desenvolvendo qualidades de inteligência, habilidade e zelo que assombraram o mundo inteiro, Leão XIII, durante um longo pontificado que foi uma série ininterrupta de triunfos, alterou profundamente esta situação crítica.
Com tudo isto, sua personalidade marcantíssima de tal maneira assombrou os contemporâneos que, quando o velho Pontífice expirou, era impressão unânime que o pontificado de seu sucessor ficaria irremediavelmente esmagado pelo confronto inevitável com as glórias dos dias em que reinara Leão XIII. Esta impressão cresceu de ponto quando se soube da eleição de Pio X, cuja personalidade parecia despojada de todos os predicados que em Leão XIII haviam brilhado com tão intenso fulgor. Neste sentido, a imprensa declaradamente ímpia ou simplesmente neutra explorou com uma insistência insolente o contraste entre Leão XIII e Pio X.
Na realidade, não faltavam a Pio X altos predicados de inteligência e cultura, porém, inútil tentar equipará-los ao de seu imortal antecessor. Entretanto, aos poucos, da personalidade do novo Pontífice começou a se irradiar uma luz suavíssima que atraía e iluminava o mundo inteiro. De uma bondade verdadeiramente angélica, de uma piedade que deixava transparecer o mais vivo e ardente espírito sobrenatural, Pio X era para todos os peregrinos que o visitavam, bem como para toda Cristandade, o Pai por excelência, de coração inexprimivelmente suave e compassivo, sempre disposto a acolher a expansão de todas as mágoas, de todos os sofrimentos, de todas as dores que pungem o homem neste vale de tristezas. E para cada qual encontrava sempre a palavra adequada, escolhida com uma finura de tato que só os corações de escol possuem, e revestida de uma eficácia verdadeiramente carismática.
Um rápido conselho, uma palavra, até um sorriso do Papa enchia de luz os corações mais desditosos; mais ainda: sua virtude era comunicativa aos

que dele se aproximavam. Pio X foi típica e caracteristicamente o homem de Deus descrito por Dom Chautard1, estuante de vida interior e irradiando de todos os modos, em sua maneira de rezar, de falar, de agir e até de olhar, a graça de Deus que subjugava os corações mais rebeldes. E, aos poucos, notícias singulares começavam a correr entre os fiéis. Eram curas obtidas pela intercessão decisiva do Servo de Deus. Eram atos e gestos que revelavam um conhecimento sobrenatural dos fatos. Pio X era um verdadeiro Santo. Era esta a voz corrente em toda a Cristandade.

 

Tarefa soberanamente difícil, quase inexequível

Deus governa com sabedoria infinita a sua Santa Igreja, dando-lhe para as ocasiões de crise os Pontífices adequados para o momento. Desbastando o campo doutrinário em que pululavam os erros mais grosseiros, Leão XIII, dotado de zelo apostólico admirável e relevantes virtudes, precisou e definiu os contornos da ortodoxia, ameaçados e a todo momento transgredidos por fautores de ideias novas que quereriam, entretanto, continuar a se dizer católicos. Restaurando os estudos do tomismo; refutando os erros pestilenciais do liberalismo, do socialismo e do comunismo, ele imprimiu ao pensamento católico rumos definitivos e, além disto, lhes indicou as normas de ação adequadas, na imortal encíclica Rerum novarum.
Mas isto não bastava. O erro que deprava a inteligência arrasta a vontade para o mal. A debelação radical de toda a pestilência dos erros que, desde o Humanismo e a Renascença, passando pelo jansenismo, o pombalismo ou josefismo, o filosofismo, etc., se haviam atirado sobre a Cristandade infeliz, exigia uma obra mais profunda.
Era preciso reanimar as vontades tíbias, chamar à virtude as pessoas mal-intencionadas, arrancar o pecador ao seu pecado e inspirar no homem um verdadeiro horror às veredas ímpias seguidas por seus contemporâneos. Um erro se define, se refuta e se condena. É tarefa árdua, mas francamente realizável. Porém retificar uma vontade sinuosa, dar novo calor a uma alma enregelada pela tibieza, avivar a chama do bem que bruxuleava até na alma de muitos católicos retos, eis aí tarefa difícil, soberanamente difícil, quase inexequível. Foi a obra que a Divina Providência confiou a quem com inexcedível eficácia a poderia realizar: a um Santo, a Pio X. E, por isso, disse certo historiador da Igreja que o reinado de Pio X foi dos mais gloriosos e difíceis que tenhamos visto.

Condenação da música profana nas cerimônias religiosas

Para que essa obra fosse levada a cabo era preciso, antes de tudo, que do Santuário fossem eliminadas as escórias de todas as influências meramente naturais e profanas. Pio X se imortalizou por sua obra de reerguimento dos estudos e da piedade dos fiéis acerca da Sagrada Liturgia, com o que concorreu notavelmente para o aperfeiçoamento do senso católico. A Sagrada Liturgia é a própria voz da Igreja que ora. Estudá-la, conhecê-la, amá-la, inserir-se na vida sobrenatural que ela comunica, corresponder generosamente, com a mortificação e a vida interior, às graças que ela transmite, com isto só podia lucrar imensamente a piedade dos fiéis.
Entretanto, havia um obstáculo, além do desinteresse, desconhecimento e ignorância em que em não raros lugares estavam os conhecimentos litúrgicos. Era a música profana que se associava às celebrações religiosas, roubando-lhes sua dignidade, seu caráter sobrenatural, toda a sua austeridade.

Como fazer? Atraídas por toda sorte de diversões novas, as massas fugiam ao santuário. Se a Igreja lhes tirasse a música profana, muito mais acessível ao gosto moderno do que o cantochão ou até polifônico, as igrejas se esvaziariam de vez. Não seria melhor contemporizar? É o eterno problema dos que julgam que o melhor meio de propagar verdades consiste em as diluir e ocultar, como se o mais eficaz modo de disseminar a luz fosse quebrá-la com um abat-jour…
Pio X pensou de modo radicalmente diverso. No seu famoso Motu Proprio2, condenou formalmente a música profana nas igrejas e, desembaraçando dessa floração inconveniente e às vezes até má o ambiente do santuário, reeducou os fiéis para a apreciação do verdadeiro canto sacro. O que se lucrou com isto é fácil vê-lo em nossos dias, quando já ninguém suporta de bom grado a música profana que, por vezes, tenta reintroduzir-se pertinazmente no lugar santo.
Seria preciso todo um artigo de jornal para falar a respeito dos atos pelos quais o Santo Padre Pio X, abrindo mais francamente as fontes da graça que a obstinação dos jansenistas pretendera fechar, inaugurou na Santa Igreja uma era nova de fervor eucarístico. Aconselhando a comunhão assídua e até quotidiana, o Santo Padre determinou uma admirável eclosão de espírito eucarístico, que se manifestou pelas mais variadas obras. Por outro lado, aproximando da Sagrada mesa desde os albores da idade da razão as crianças, Pio X opôs à expansão da imoralidade e da impiedade fortíssima barreira, robustecendo as vontades e as inteligências com a graça de Deus ainda na idade da inocência.
De tudo isto decorreu um aumento de piedade em toda a Cristandade, que iluminou o reinado de Pio X com uma glória inextinguível. Devotíssimo da Mãe de Deus e Senhora nossa, Maria Santíssima, o Santo Padre Pio X incentivou notavelmente a devoção para com Aquela que a Igreja ainda proclamará solenemente a Medianeira universal de todas as graças. E, por isto, foi imensa a torrente de benefícios espirituais com que se enriqueceu a Santa Igreja.

Modernismo, “súmula de todas as heresias”

 

Mas havia um grave erro, de nenhum valor intelectual é certo, pois que não consiste senão em uma indecorosa coleção de subterfúgios, de sofismas e de mentiras, que a socapa, como serpente insidiosa, se havia insinuado entre os fiéis. Era o modernismo. Ele exprimia em última análise o esforço desesperado de certos espíritos de, conservando embora certas formas e exterioridades católicas com que não ousavam romper, aceitar ao mesmo tempo todos os erros do século.
A primeira característica do modernismo era que todas as palavras que na Igreja tem um sentido definido e tradicional valiam como índices de outro sentido no vocabulário dos modernistas. Usavam a mesma linguagem que nós, mas com outro espírito e com um segundo sentido que só com habilidade deixavam entrever em seus escritos, e apenas aos poucos iam revelando oralmente aos seus adeptos. Daí uma confiança ilimitada de espíritos ingênuos, mas às vezes retos e bem intencionados, que, vendo as aparências, julgavam salvas as realidades. E o mal circulava impune.
Em uma encíclica famosa, Pio X condenou violentamente este mal e fez ver a todos os fiéis que se as mãos de um Papa e de um Santo sabem ser maternais para cicatrizar as feridas dos que sofrem, sabem ser pesadas como montanhas para esmagar erros e matar heresias.
A Encíclica Pascendi Dominici gregis, contra o modernismo, é dos documentos mais edificantes de Pio X. Suas páginas ardem e vibram de santa indignação. Tomado de um zelo sobrenatural pela Casa de Deus, o Santo Padre denuncia com palavras de fogo o veneno que escorria sub-reptício “dentro das próprias veias da Cristandade”, e com uma precisão admirável, ponto por ponto, denunciava os subterfúgios, esmagando as alegações falsas e deixando a nu toda a vileza dessa corrente que era, segundo suas expressões, a “súmula de todas as heresias”.

Heresia que defendia os regimes sociais e políticos igualitários

Um dos lances sem dúvida mais fortes da luta de Pio X contra o modernismo se encontra na condenação do “Sillon”3. Essa organização de jovens franceses tinha tomado orientações perigosas. Apaixonadamente amiga de todas as novidades , odiando sem distinção todas as tradições, partidária sistemática dos regimes sociais e políticos igualitários e condenando os aristocráticos como anticristãos (contra o expresso ensinamento de Leão XIII), inimiga de toda autoridade a ponto de não admitir que existissem professores nem cursos organizados para seus sócios, e admitindo apenas cooperativas intelectuais, inimiga de toda seleção de membros, de um interconfessionalismo tipicamente liberal, o “Sillon” gostava de se afirmar “revolucionário” e de apontar em Jesus Cristo, Senhor nosso, um grande “revolucionário”. Pode-se imaginar a indignação de Pio X contra uma tal série de erros. Ele os condenou e fustigou em uma encíclica4 que deveria estar nas mãos de todos, de tal maneira esclarece pontos doutrinários importantíssimos, que hão de interessar os fiéis até a consumação dos séculos.

O esplendor das virtudes de Pio X havia, por fim, abafado na sua totalidade o ruído estúpido dos que, inteiramente naturalistas, julgavam que o fator mais importante do apostolado está na inteligência e não na virtude. E, por isto, o ambiente criado pela admirável figura do Papa era de verdadeiro e universal enlevo.
Infelizmente, porém, veio a guerra. E como todos sabem, não resistindo ao golpe bem como às inúmeras lutas de seu árduo pontificado, Pio X morreu.
No Céu mais um Santo se sentou no número dos eleitos e na Terra sua memória continua a embalsamar todos os corações, a edificar todas as almas e a consolar inúmeras dores. Até hoje chegam ao Vaticano cartas endereçadas a Pio X em que dos mais variados pontos da Terra os fiéis pedem ao grande Papa, cujos restos mortais sabem estar ali sepultados, que reze por eles e lhes obtenha as graças espirituais ou temporais necessárias.

A cripta em que seu corpo repousa é visitada constantemente por peregrinos. E como não está sempre aberta, no lajedo de mármore da Basílica do Vaticano, exatamente sobre a lápide embaixo da qual está o lugar em que, os restos mortais de Pio X dormem no Senhor, se fixou um sinal de metal. Em torno dele rezam os fiéis nas horas em que o local não está exposto à visitação pública.

(Extraído de O Legionário n. 553, 14/3/1943)

1) Jean-Baptiste Chautard (*1858 – †1935). Abade de Sept-Fons, França, autor da obra A alma de todo apostolado.
2) Tra le sollecitudini, 22 de novembro de 1903, sobre a música sacra.
3) Le Sillon, movimento político-religioso francês que pretendia unir o catolicismo aos ideais socialistas e republicanos franceses.
4) Encíclica Notre charge apostolique, de 25 de agosto de 1910.

 

Mãe da filha primogênita da Santa Igreja

À maneira da flor do cacto que desabrocha entre os espinhos, Santa Clotilde, do meio de um povo pagão e bárbaro, faz germinar nas fontes batismais de Reims a nação primogênita da Igreja, conferindo a ela sua graça, beleza e fé.

Em 3 de junho comemora-se a festa de Santa Clotilde. Sobre ela há uma referência tirada da obra L’Année Liturgique de Dom Guéranger.

Grande vocação nascida entre infortúnios

Santa Clotilde foi aureolada pela glória de uma maravilhosa maternidade espiritual, pois foi graças a essa rainha que, numa noite de Natal, nascia nas fontes batismais de Reims, a nação primogênita da Igreja. Clotilde foi preparada pelo sofrimento para o grande destino que Deus lhe reservava. A morte violenta de seu pai, destronado por um usurpador fratricida, seus irmãos massacrados, sua mãe afogada no Ródano, seu novo cativeiro na corte ariana do carrasco que trazia consigo a heresia ao trono dos borguinhões, desenvolveram nela o heroísmo do martírio e a fizeram mãe de um povo.

Santa Clotilde foi aureolada pela glória de uma maravilhosa maternidade espiritual, pois foi graças a essa rainha que, numa noite de Natal, nascia nas fontes batismais de Reims, a nação primogênita da Igreja. Clotilde foi preparada pelo sofrimento para o grande destino que Deus lhe reservava. A morte violenta de seu pai, destronado por um usurpador fratricida, seus irmãos massacrados, sua mãe afogada no Ródano, seu novo cativeiro na corte ariana do carrasco que trazia consigo a heresia ao trono dos borguinhões, desenvolveram nela o heroísmo do martírio e a fizeram mãe de um povo.

 

Vocações cujos méritos vêm de Nossa Senhora

Dom Guéranger mostra muito bem o contraste havido no começo da vida dessa rainha e o fim. No início opressa, perseguida, etc. De repente, sobe ao trono, mas de um rei pagão e bárbaro, o qual se converte. Ele se convertendo surge daí uma nação católica. Vemos assim a linda vocação que ela possuía.

Todas as vocações muito bonitas começam de um modo tremendo.

São contragolpes, dificuldades, coisas impossíveis, etc. É desses espinhos que germina a vocação bonita. Fala-se muito da beleza da rosa, mas há uma flor que rivaliza com ela em formosura e talvez seja mais bonita: a flor do cacto.
O cacto é uma planta horrenda: geralmente grossa, espinhada, sem perfume nem forma definida, uma espécie de animal antediluviano no reino vegetal. Pois bem, disso brota essa beleza de flor.
Assim também são as grandes vocações. Elas nascem de sofrimentos inenarráveis, decepções tremendas, revezes que se entrecruzam, derrocadas inesperadas.
No meio disso tudo, à maneira da flor do cacto que desabrocha entre os espinhos, vai surgindo uma maravilha que é a vocação, cujo êxito não se deve a nenhum mérito humano, mas a Nossa Senhora.
Em uma de suas epístolas São Paulo diz: “Quem lhe deu primeiro, para que lhe seja retribuído?” (Rm 11, 35) Quer dizer, primeiro Deus nos dá algo, depois fazemos algo por Ele e premia em nós o próprio dom concedido. Essa realidade convém muito termos em vista.
E aqui está Santa Clotilde, sob essa interpretação. Desde pequena preservada e guiada para isso, não porque ela tenha feito algo, mas porque a Providência quis e ela foi correspondendo. Aí está a santidade e o mérito dela. Mas no início foi todo ele de Deus.

“Felizes os povos aos quais foi dada uma mãe, pela divina munificência”

 

Em seguida a ficha diz:

Deus quis que o homem saindo de suas mãos ainda sem poder contemplar diretamente seu autor, encontrasse como primeira tradução de seu amor infinito a ternura de uma mãe. Isso dá às mães essa facilidade única de completar, pela educação, na alma do filho, a reprodução completa do ideal divino que deve nele imprimir-se.
O pensamento de Dom Guéranger é belíssimo. Como o Criador faz o filho nascer de sua mãe, ela tem uma intuição especial para completar nele a obra divina. Isso é real em relação à mãe terrena, mas se refere muito mais a Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana, na qual somos gerados e que te

m, portanto, uma intuição materna para completar em nós a obra de Deus. E essa verdade se aplica também de modo insondável a Nossa Senhora.

Continua o texto:
E se tão grande é a maternidade na ordem da natureza, muito mais sublime ainda o é na ordem da graça. É o exemplo da Santíssima Virgem, Mãe de Deus e, como decorrência, Mãe de todos os homens. E toda maternidade não foi, desde então, num verdadeiro sentido, senão uma decorrência da de Maria, uma delegação de seu amor e a comunicação de seu augusto privilégio de dar aos homens que devam ser seus filhos. A dignidade de mãe cristã foi acrescida por

Maria a um ponto em que a natureza nunca poderia suspeitar.

Como Clotilde, frequentemente a esposa, preparada pelo divino sofrimento, ver-se-á dotada de uma fecundidade mil vezes maior do que a terrena. Felizes os homens nascidos, pelo favor de Maria, dessa fecundidade sobrenatural, que resume todas as grandezas. Felizes os povos aos quais foi dada uma mãe, pela divina munificência.
Ele faz aqui uma linda comparação. O que Santa Clotilde foi para os franceses, Nossa Senhora o é para todo o gênero humano. Ela é a mãe de todos os católicos.
E assim como da graça, da beleza e da fé de Santa Clotilde originou-se a nação, outrora da fé, da graça e da beleza, assim também nós ao nascermos de Maria Santíssima. Ela nos comunica a sua beleza espiritual, a sua graça e sua fé. Somos seus filhos porque tudo recebemos d’Ela, e por Ela somos gerados.v

(Extraído de conferência de 3/6/1969)

São Beda e o antagonismo de duas épocas

São Beda foi um homem em cuja presença sentiam-se impressões de respeito, reverência, enlevo e encanto, convidando ao recolhimento quem dele se aproximava. Tal era sua santidade que, não podendo chamá-lo de santo ainda em vida, deram–lhe o título de “Venerável”, o que contrasta com o espírito revolucionário e igualitário dos nossos dias.

 

Em 25 de maio se comemora a festa de São Beda, o Venerável, Confessor e Doutor da Igreja. Diz a seguinte ficha:

Êmulo de Santo Isidoro de Sevilha, São Beda foi um dos sábios mais ilustres do seu tempo. Tal era sua santidade que, não podendo chamá-lo de santo ainda em vida, deram-lhe o nome de “Venerável”, que não perdeu depois de sua morte.

 

 

Diferença entre o apogeu da Idade Média e nossa época

Simplesmente por esta alcunha de “venerável”, dada a São Beda, podemos ter ideia da mudança dos tempos e dos lugares. Calculem na Europa do começo da Idade Média, no século VIII, um homem que é tido como dos mais cultos e inteligentes de sua época. Seria mais ou menos, em nossos dias, um indivíduo que tivesse recebido o prêmio Nobel de Ciência, ou da Paz, ou da

Literatura; alguém, portanto, consagrado por sua cultura. Pois bem, este homem é um Santo.
Já neste ponto notamos a diferença em relação ao nosso tempo, porque é raro vermos coincidirem sobre o mesmo homem a auréola e o esplendor da santidade e o fulgor da cultura e da inteligência. Aqueles grandes Santos foram, por assim dizer, “especializados” em santidade. Eles eram mais santos do que qualquer outra coisa.
Em nossos dias não encontramos, como no apogeu da Cristandade medieval, Santos que, ademais, sejam muito salientes em qualquer outra atividade: grandes guerreiros, notáveis sábios ou imponentes reis. Por quê? Justamente por causa da decadência da Cristandade que levou os homens de cúpula a serem tantas vezes pinçados para servirem ao mal, escapando das mãos amorosas da Igreja. Assim, vemos um grande contraste entre a figura de São Beda, o Venerável, e as circunstâncias da nossa época.
De outro lado, imaginem uma pessoa de quem se dissesse o seguinte: “Ah, é um indivíduo amabilíssimo, de uma prosa agradável, engraçado, atraente, um piadista como ninguém!” Certamente esse homem atrairia muito as companhias em torno de si, sobretudo se correspondesse aos elogios que fizessem dele.
Entretanto, se perguntássemos a alguém numa roda comum de nossos dias:
— Que tal é Fulano?
— Ah, respeitabilíssimo…
Esse homem atrairia muita gente em torno de si? Sem dúvida, não.

 

O homem desfigurado pela Revolução

Ora, tempo houve em que a mais alta qualidade de uma pessoa era a de ser respeitável, venerável. Então, a um homem que possuía essa virtude em grau eminente dava-se a alcunha: “o Venerável”. Quer dizer, era aquele em cuja presença sentiam-se impressões de respeito, reverência, uma superioridade que enlevava e encantava, e que colocava as pessoas numa atitude de recolhimento. Era uma humanidade católica, batizada, que, por possuir o espírito incutido pelo santo Batismo nas pessoas, e conservado nelas quando fiéis à graça, gostava de ter diante de si alguém superior, cuja superioridade reconheciam e admiravam. Poder estar com um homem venerável, vê-lo ou reverenciá-lo era a suprema alegria.
Por que, no mundo de hoje, as pessoas não gostam de venerar? E, tendo a alcunha de venerável, por que o indivíduo veria o vazio em torno de si? Por uma razão muito simples: em primeiro lugar, o igualitarismo faz com que se odeie toda superioridade. E em segundo lugar, porque a venerabilidade é séria, grave, convidando as pessoas que tomam contato com ela a uma postura de recolhimento, bom senso, respeito.
É exatamente disso que foge o homem modelado pela Revolução, ou, se preferirem, desfigurado pela Revolução. Aquele título, considerado como uma pérola brilhante sobre a fronte do homem medieval, afugenta em nossos dias. Nisso constatamos a enorme rotação dos espíritos, pois tudo mudou.

 

O nocivo imperialismo norte-americano

Daquela Europa antiga do século VIII para nossa América deste século, na enorme mutação dos tempos e dos lugares, como todas as coisas são diferentes! E eu falo de modo especial da América do Norte, porque se há um espírito que foge ao venerável é o espírito norte-americano, tendo seu foco de irradiação nos Estados Unidos, mas que se expande em largos borbotões pelas nações vizinhas do continente.
Não sou economista, de maneira que não posso avaliar até que ponto esse imperialismo americano, tão falado, existe do ponto de vista financeiro, material. Deve haver um exagero, porque os comunistas dizem que ele existe; e quando os comunistas não mentem, eles exageram, mas afirmar a verdade inteira nunca fazem.
O imperialismo político norte-americano praticamente não existe. Porém, há um imperialismo nocivo, imponderável, ideológico, mas de uma ideologia difundida de forma vivencial, que se espalha por toda parte, impregna todos os ambientes e penetra no subconsciente das pessoas através de mil condutos de propaganda, inimigo da veneração e da desigualdade.
Se considerarmos, por exemplo, a fotografia do primeiro mandatário de qualquer grande nação de nossos dias, pode-se dizer tudo dele: que ele conta piadas, é muito inteligente, haverá até quem afirme ser muito agradável… Há um provérbio prosaico de antigamente que meu pai gostava de citar em certas ocasiões: “Não há sapato velho que não procure o seu pé inchado.” Assim também haverá quem ache graça em certos personagens da política contemporânea. Mas o que eu não concebo é alguém olhar a fotografia de algum deles e dizer: “o venerável Fulano…!”
Um indício de como as coisas mudaram que se faz bem presente ao espírito, é este: antigamente, se houvesse uma eleição, ganharia o mais venerável. Em nossos dias, quantas vezes um palhaço tem maiores possibilidades de vencer uma eleição! Imaginem alguém se apresentar para uma eleição com os dizeres: “Fulano de tal, candidato da respeitabilidade nacional.” Estava derrotado. Assim, vemos como tudo decaiu ao sopro da Revolução.
Eis uma pequena meditação sobre o título de um grande Santo.v

(Extraído de conferência de 27/5/1972)

Homem que lutou arduamente contra a Revolução

Orador brilhante, São Fidélis de Sigmaringa evangelizou cidades alemãs e foi enviado para a região dos grisões, na Suíça, a fim de pregar contra o protestantismo. Alcançou sucessos importantes, o que levou os hereges a martirizarem-no. Foi um verdadeiro contrarrevolucionário porque a heresia protestante era a Revolução no seu tempo.

o dia 24 de abril, a Igreja comemora a festa de São Fidélis de Sigmaringa. Sua ficha biográfica apresenta alguns dados tirados da Vida dos Santos, de Reindenberg, e da História da Igreja Católica, de Rohrbacher.

Chefe de uma missão para combater o protestantismo

Marcos Roi, o rei que viveu de 1577 a 1622, tomou o nome de Fidélis quando entrou para os capuchinhos, aos 35 anos de idade.
Nascido em Sigmaringa, distinguiu-se como estudante de Filosofia e Direito em Friburgo de Brisgóvia. A seguir foi nomeado tutor de três jovens príncipes, com quem viajou por toda a Europa durante três anos. Depois de ter exercido a profissão de advogado em Colmar, resolveu abandonar o mundo.
No testamento que fez nesta altura, diz o seguinte: “Quero viver daqui para o futuro na maior pobreza, castidade e obediência, nos sofrimentos e nas perseguições, numa penitência austera e humildade profunda. Saí nu do seio de minha mãe e despojo-me de tudo para me entregar aos braços do Salvador.”
O Padre Fidélis possuía grandes dotes oratórios. Nomeado guardião (superior) do Convento de Feldkirch, pregou em numerosas cidades alemãs e suíças, e numerosas igrejas do campo.
A cidade de Feldkirch foi de todo transformada por ele. Como o protestantismo estava a se espalhar pela Suíça, especialmente entre os grisões, a Congregação da Propaganda encarregou os capuchinhos de irem combatê-lo. O Padre Fidélis foi nomeado chefe dessa missão.
“Dentro em breve não me tornareis a ver, disse ele a seus amigos em Feldkirch, pois fui chamado a dar o sangue pela Fé”. E desde então passou a assinar suas cartas da seguinte maneira: “Padre Fidélis, prope diem esca vermium” – que em breve será pasto dos vermes.
Em janeiro de 1622, entrou na região ocupada pela Áustria e lá começou a pregar a Fé com grande êxito.
Furiosos, os protestantes prepararam uma revolta e o missionário avisou os austríacos. Os grisões levantaram-se então em massa.
No dia 24 de abril, estando o Padre Fidélis a pregar em Seewis, ouviu-se o grito: “Às armas!”
Os grisões saíram ao encontro das tropas imperiais que tinham forçado seus postos avançados, convencidos de que o Padre Fidélis é quem chamara os austríacos.
Ainda o deixaram sair da cidade. Mas como daí a pouco regressasse a Grächen, 20 soldados caíram sobre ele, trataram-no de sedutor e queriam forçá-lo a abraçar a sua seita.
“Que me propondes? – perguntou Fidélis – Vim até vós para refutar vossos erros e não para abraçá-los. A Doutrina Católica é a Fé de todos os séculos, não a renunciarei. Ademais, sabei que não temo a morte.”
Eles então mataram-no a sabre.

 

Homem sobrenatural e indômito que enfrentou a morte

É interessante notarmos qual foi a atuação deste grande pregador para que o comentário hagiográfico possa se fazer adequadamente. Ele era um missionário famoso que pregava em vários lugares. E a Santa Sé, desejando impedir a expansão do protestantismo na região da Suíça denominada dos grisões, incumbiu a Ordem religiosa da qual ele fazia parte – os capuchinhos – de mandar para aquela zona pregadores, bons oradores, a fim de converterem os que se tinham pervertido para o protestantismo, e impedir que novos católicos fossem objeto com êxito do proselitismo protestante.
Então ele, que já havia transformado por inteiro uma cidade importante da Alemanha – Feldkirch – pelos seus sermões, se dirigiu à Suíça sabendo que ia morrer, pois recebeu uma revelação de que lá seria martirizado. Mas, homem sobrenatural, indômito, enérgico, batalhador, não recuou diante dessa ameaça. Pelo contrário, enfrentou a morte.
E tinha uma espécie de prazer em considerar a hipótese de sua morte próxima, e até assinava “Frei Fidélis que em breve será pasto dos vermes.” Quer dizer, sabia que seria mártir e iria para o Céu o que lhe dava uma grande alegria.
A essa prova de tenacidade, ele juntou outra demonstração de força, de valor: o fato de ter irritado sobremaneira os protestantes. Ninguém se torna irritante para o adversário sem ter conquistado êxitos contra este. São Fidélis alcançou sucessos tão importantes contra a heresia, que os protestantes prepararam um encontro no qual ele foi morto.
Foi um orador audacioso, valoroso, forte, um missionário vigoroso que não recuou diante do holocausto do martírio. Um homem que nos dá um admirável exemplo de fortaleza, que leva a abnegação de sua própria vida e o desejo de lutar a ponto de imolar efetivamente a sua existência.

Sentimentalismo religioso do século XIX

Consideremos a fórmula utilizada por São Fidélis:
Quero viver para o futuro na maior pobreza, castidade e obediência, no sofrimento e nas perseguições, numa penitência austera e humildade profunda. Saí nu do seio de minha mãe e despojo-me de tudo para entregar-me nos braços do Salvador.
Se uma pessoa hoje empregasse essa fórmula, seríamos levados a achar que ela é “heresia branca”1. Diria isto suspirando, com tanta moleza, que afirmaríamos: “Qual! Você é um pulha e não tomamos a sério a sua vida espiritual.”
Ele assinava suas cartas com as palavras: “Frei Fidélis, que em breve será pasto dos vermes.”
Compreende-se o equívoco tremendo que o sentimentalismo religioso do século XIX criou em torno dessas fórmulas, e precisamos não nos deixar vencer pelo equívoco.
O estado de espírito que apontei é muito ruim, mas a fórmula é muito boa em si mesma considerada. Ela foi empregada por um Santo e, portanto, não pode deixar de ser boa, porque tudo quanto o Santo faz é bom. Se essa fórmula não fosse boa, ele não teria sido canonizado.
Precisamos compreender que essa fórmula é susceptível de ser pronunciada, ser vista de outro modo, e não devemos permitir que o besuntado sentimentalismo religioso do século XIX nos tolde a visão da coerência que ela tem com as virtudes as quais somos mais chamados a praticar: a fortaleza de ânimo, a resolução, a combatividade. Entre virtudes não há incompatibilidade. Ora, isso tem de ser virtude porque foi pronunciado por um santo.
O valor dessa fórmula é muito grande. Evidentemente, um homem que tem a verdadeira virtude da sabedoria, compreendendo, portanto, que todas a coisas desta Terra são um nada – desde que elas obstem à aquisição da virtude, ao pleno conhecimento da sabedoria e ao amor de Deus –, precisa afastar-se delas.

Quem tem vocação religiosa deve abraçá-la

Quando Nossa Senhora quer que alguém tenha uma vocação, torna-lhe difícil a vida fora da vocação a qual deve abraçar. E um santo nessas condições, em geral, é levado pelas circunstâncias a uma alternativa: ou se perde ou adota o estado de vida para o qual foi chamado.
Depois, independente do perigo de perder-se, ele tem o atrativo da graça para estar meditando as coisas da sabedoria e, por amor de Deus, assume aquela fórmula.
Então, ele fez-se capuchinho. Isso significa abraçar a pobreza completa, renunciar a toda forma de sinarquia2. É despreocupar-se com os bens deste mundo, não só não querendo tê-los para si, mas não se entusiasmando com as pessoas pelo fato de os possuírem. Não admirando ninguém porque tem um bonito automóvel, um formoso apartamento ou, suprema ventura, possui uma fábrica importante, Mas dando valor aos homens e às coisas na medida em que se aproximam, praticam a sabedoria.
Uma pessoa assim, com um estado de espírito varonil, combativo, fazendo um ato de imolação inteiramente inaciano, pode dizer: “Eu quero viver daqui para o futuro na maior pobreza, castidade e obediência, nos sofrimentos e nas perseguições. Desejo imitar a Nosso Senhor Jesus Cristo que sofreu, e por isso vou ser um lutador, agredir o adversário; sofrerei porque na guerra se sofre.”
É o sentimentalismo religioso do século XIX que dá a isso um aspecto de “heresia branca”. Mas não tem nada de “heresia branca”. É a piedade de boa lei que o homem mais valoroso e combativo deve ufanar-se em possuir.

Verdadeiro contrarrevolucionário

Assim também, dizer que dali a pouco ele vai ser o pasto dos vermes é ter coragem, uma prova de que não tem medo de morrer. São Fidélis poderia acrescentar, apontando para seu corpo: “Esta carne vai ser comida pelos vermes. Através destas órbitas eles entrarão – como que engendrados pelo meu próprio corpo – que comerão os olhos, sairão pelos ouvidos e pela boca. Mas eu não me incomodo porque a minha alma vai para o Paraíso. Terei a glória do martírio que vale muito mais do que essa decomposição do meu corpo. E no último dia ele ressuscitará e se juntará à minha alma no Céu.”
É uma atitude de força de alma que o faniquito do liberal, do sentimental, não dá.
Compreendemos, assim, como uma fórmula como essa, sendo bem interpretada e entendida, nada tem de “heresia branca”; é uma fórmula esplêndida.

A “heresia branca” se encontra no estado temperamental do estúpido com que os sentimentais repetiam isso.
Temos a prova concreta: um homem que empregava tais fórmulas é um mártir de uma admirável coragem, o qual viu chegar a morte com a serenidade que os maiores heróis não teriam. Que lutou arduamente contra a Revolução, foi um verdadeiro contrarrevolucionário – porque o protestantismo era a Revolução no seu tempo –, homem completo, portanto, e digno de toda a nossa veneração.
A relíquia de São Fidélis se encontra em nossa capela. Faremos uma boa coisa pedindo a ele que nos obtenha a graça de compreender como fórmulas dessas se compaginam bem com a nossa piedade, desde que expurgadas dos péssimos eflúvios do sentimentalismo religioso do século XIX vivo até nossos dias, infelizmente.
Tal sentimentalismo, sendo uma coisa má, como é evidente, não houve na obra de nenhum santo daquele tempo. São deformações que existiram à margem do santo e de modo contrário ao exemplo dado por ele. Naquele século, houve santos admiráveis que estavam isentos e até eram o contrário disso, como Santa Teresinha do Menino Jesus.
A pequena via ensinada por ela, tão cheia de candura, de suavidade, é uma via de grande força e combatividade para quem sabe ler um livro de Santa Teresinha.
Percebe-se isso nos seus desejos. Ela dizia que possuía anseios infinitos, queria ser missionária, brandir o ferro no combate contra os inimigos da Igreja, etc. É uma manifestação de uma combatividade que chega até o Cruzado, e inclusive o desejo de derramar o sangue. E isto da parte dessa santa tão suave na sua pequena via. Vê-se, portanto, como as duas coisas são compatíveis.v

(Extraído de conferência de 24/4/1967)

1) Expressão metafórica criada por Dr. Plinio para designar a mentalidade sentimental que se manifesta na piedade, na cultura, na arte, etc. As pessoas por ela afetadas se tornam moles, medíocres, pouco propensas à fortaleza, assim como a tudo que signifique esplendor.
2) Diferentemente do sentido político que lhe é dado habitualmente, Dr. Plinio usava a palavra “sinarquia” para caracterizar a mentalidade ateia, segundo a qual a finalidade suprema de uma sociedade é o trabalho e a produção material.

Poder maravilhoso de se comunicar com as pessoas

O quadro de Nossa Senhora do Bom Conselho de Genazzano tem um poder maravilhoso de fazer com que as pessoas entrem em comunicação com a Mãe de Deus. Ele muda de colorido e Maria Santíssima ora parece alegre, satisfeita e risonha, ora apresenta um aspecto de tristeza. Sem que se possa dizer que haja um movimento nos traços do afresco, ele exprime por esta forma a inúmeros fiéis aquilo que a Virgem deseja.

No dia 26 de abril, comemora-se a festa de Nossa Senhora do Bom Conselho de Genazzano, instituída a propósito do célebre afresco da Mãe de Deus que se venera na igreja dos agostinianos, na cidade de Genazzano, Itália.

Scanderbeg, um guerreiro valorosíssimo

As informações que darei foram tiradas de um livro sobre Nossa Senhora do Bom Conselho. A razão da compra desta obra, de minha parte, foi que em pequeno eu rezava muito diante de um quadro dessa invocação, o qual se encontrava no altar-mor da antiga capela do Colégio São Luís e tem uma história milagrosa, cujos pormenores não me lembro, mas que está ligada ao martírio dos quarenta jesuítas que vieram evangelizar o Brasil.
Vendo esse livro, comprei-o e confesso que me encheu de admiração. De fato, tudo quanto ali diz respeito à história do afresco e à devoção a Mãe do Bom Conselho é uma verdadeira maravilha!

Em duas palavras a história desse quadro é a seguinte: a Albânia, no século XV, era um Estado cristão capitaneado por um general chamado Scanderbeg, um guerreiro valorosíssimo que lutava contra as hordas turcas as quais estavam tentando avançar pela Europa adentro.Scanderbeg era um homem bastante religioso e que se colocava sob a proteção de Nossa Senhora do Bom Conselho, da qual havia na Albânia um santuário nacional muito frequentado. Enquanto Scanderbeg viveu, a luta contra os turcos foi vitoriosa. Ele reunia em si todo o valor e toda a combatividade da nação albanesa. Era um grandíssimo homem, mas o povo albanês estava em decadência e por causa disto provavelmente a resistência cessaria quando ele morresse. Os últimos lances de sua vida foram extraordinários. Numa ocasião ele se encontrava deitado, agonizando, quando veio a

 

notícia de que os turcos estavam chegando às portas da cidade. Quando ele ouviu isto, fez uma oração a Nossa Senhora e pediu-Lhe forças para combater. Levantou-se do leito e foi de encontro aos turcos. Ele tinha dois auxiliares que o ajudavam porque quase não aguentava mais dirigir a batalha. Depois, voltou para a cama e faleceu. Assim morre um verdadeiro herói católico, um devoto de Nossa Senhora na sua acepção mais exata e mais adamantina. É uma verdadeira beleza!

 

As águas do mar se tornaram sólidas

Mas dois amigos albaneses, que eram filhos da luz, notando o declínio da Albânia e prevendo que o país cairia quando morresse Scanderbeg, resolveram ir ao Santuário de Nossa Senhora do Bom Conselho a fim de pedir luzes a respeito do que deveriam fazer: ficar na Albânia realizando uma certa resistência e algum apostolado debaixo das hordas turcas, ou ir para a Itália. Tanto mais que um número muito grande de albaneses já estava fugindo para lá, e parecia-lhes mais indicado emigrarem. Chegando ao Santuário, rezaram e ficaram de

voltar no dia seguinte para ter uma solução do caso. Qual não foi a surpresa deles quando verificaram que o quadro se destacara da parede, deu uma espécie de giro dentro da igreja, saiu pela porta e foi andando no ar lentamente. Eles acompanharam o afresco que, quando chegou ao mar, continuou a andar acima das águas. Os dois amigos, então, prosseguiram sua caminhada sobre o mar, que se tornou sólido debaixo dos seus pés, sempre acompanhando o quadro. Assim, chegaram à Itália.

É uma grande caminhada, mas eu acho que não é o caso de interpor aqui perguntas e críticas, porque Nossa Senhora tem o poder de fazer um quadro andar pelos ares e de dar consistência às águas. E pode conceder a dois homens a possibilidade física de atravessar uma grande extensão, caminhando sobre as águas solidificadas.
Na Itália, o quadro sumiu misteriosamente da vista deles. Então, empreenderam – isso é muito medieval ainda – andar por todo o país a fim de ver onde tinha ido parar, porque não queriam se separar dele. Assim como a estrela desapareceu da vista dos Reis Magos quando chegaram a Jerusalém, assim também o quadro sumiu para esses dois albaneses.

Uma nuvem brilhante desceu sobre o terreno de Petruccia

Havia em Genazzano – uma pequena cidade da Itália, que era feudo dos Príncipes de Colonna, uma grande família nobre romana – uma mulher anciã chamada Petruccia que dizia ter vocação de construir uma igreja. Era uma senhora isolada, meio mendiga, um pouco maníaca e todo mundo debicava dela. Em certo momento, Petruccia conseguiu que lhe dessem um terreno para edificar uma igreja em louvor de Nossa Senhora. Mais tarde, obteve um pouco de material da construção e, assim, levantou-se algo a maneira de um muro numa parte do terreno. Depois os trabalhos pararam porque ela não recebeu mais auxílios.
E toda a molecada, quando encontrava a Petruccia na rua, dizia para ela:
— Ei, Petruccia, cadê a igreja? Quando é que será construída?
Não é preciso ter muita imaginação para dar o alinhamento geral da cena.
Havia em Genazzano uma feira para onde afluía grande parte da população. Certo dia em que Petruccia estava no meio do povo, de repente se fez ouvir um estrondo no céu e apareceu uma nuvem brilhante, da qual partiam harmonias que desciam sobre a cidade. A nuvem baixou sobre o terreno de Petruccia e, quando desapareceu, encontrou-se o quadro – que o povo não sabia ser de Nossa Senhora do Bom Conselho – encostado junto a uma das paredes, sem prego, nem apoio, nem suporte, o que é uma coisa inexplicável. Foi o grande dia da Petruccia.
Mas ninguém sabia que invocação era aquela. Nunca se tinha ouvido falar dela. Era uma manifestação angélica.
Um belo dia, os dois albaneses, que estavam à procura do quadro de Nossa Senhora do Bom Conselho, tendo ouvido falar, em Roma, sobre o que havia ocorrido em Genazzano, desconfiaram naturalmente que aquele era o quadro de Nossa Senhora do Bom Conselho.
Foram para lá, se prostraram diante do afresco, rezaram. Comunicaram ao povo que se tratava do quadro de Nossa Senhora do Bom Conselho, da Albânia, que eles tinham visto partir para não se deixar subjugar pelos turcos.

O quadro se mantém junto à parede de um modo miraculoso

A igreja se tornou um lugar das múltiplas romarias partidas dos vários Estados italianos, antes da abominável unificação da Itália. A romaria andava em fila, homens separados das mulheres, havia proibição de estar prestando atenção nas coisas do caminho, devia-se o tempo inteiro rezando o Rosário, cantando ladainhas em louvor de Nossa Senhora, parando nos lugares ermos – onde não houvesse possibilidade de escândalo – para comer, e continuando a caminhada até chegar a Genazzano.
Mesmo nos dias de enchentes, em que pessoas acabam dormindo até nas ruas, o quadro de Nossa Senhora continua junto à parede, mas não encostado nela, de maneira que ele se mantém de um modo miraculoso. Há, então, chuvas de graças que o afresco espalha para todas as pessoas.
Essas graças são muitas vezes de curas, porém o forte não é propriamente a graça de cura, mas um poder maravilhoso de, sem praticar um milagre evidente, se comunicar com um grande número de pessoas que vão consultar a Santíssima Virgem a respeito de padecimentos espirituais, dúvidas, problemas. A meu ver, a ideia relacionada com o afresco é a seguinte:
O quadro muda de colorido, ora toma uma cor brilhante e Nossa Senhora parece alegre, satisfeita e risonha, ora adquire cores que Lhe dão um aspecto de tristeza. E sem que se possa dizer que haja um movimento nos traços do afresco, entretanto é verdade que ele exprime por esta forma a inúmeros fiéis aquilo que Ela quer, e muitos acabam entendendo isto e passam a ter com a Mãe de Deus uma comunicação, resolvendo problemas importantíssimos.

Mudanças de fisionomia de Nossa Senhora

O quadro é veneradíssimo, e o livro apresenta atestados importantes de pessoas que reconheceram mudanças da fisionomia de Nossa Senhora. Um dos atestados mais interessantes é de um pintor de certa celebridade de Gênova, que recebeu de uma família genovesa, provavelmente rica, a incumbência de ir a Genazzano e fazer uma cópia do afresco para ser colocada numa igreja de Gênova. Como era um homem de projeção, consentiram que trabalhasse no próprio altar, perto do quadro, para poder ver bem, e ele começou, então, a pintar a imagem.
O livro transcreve um atestado dele declarando que a figura de Nossa Senhora tantas vezes modificou a expressão fisionômica, enquanto ele pintava, que lhe foi impossível retratá-la. Ela não modifica tanto, mas é um prodígio que Maria Santíssima quis fazer para que este homem atestasse o maravilhoso do fato, e até hoje se dá isto.
É um prodígio contemporâneo que não pode ser apresentado como um milagre, mas demonstra ser a Fé Católica verdadeira, e deve ser visto como uma graça muito preciosa para todas as pessoas que querem elucidar seus problemas.
O mais interessante é que vários outros quadros de Nossa Senhora do Bom Conselho, os quais afinal se copiaram e foram levados para diversos pontos da Itália, têm propriedades análogas e há peregrinações porque a Santíssima Virgem prodigaliza os seus conselhos às pessoas que vão ali rezar.
Temos, assim, a indicação de um elemento para nos afervorarmos na piedade a Nossa Senhora.v

(Extraído de conferência de 25/4/1967)

 

Missão profética dos três Arcanjos

São Gabriel, São Rafael e São Miguel formam um unum. Conforme o matiz de nossa atividade apostólica, somos mais beneficiados por um ou por outro, tornando-nos eficientes na ação, terríveis no combate, e às vezes nos sentindo tão convidados à meditação, que temos a sensação de não existirmos senão para ela. É uma espécie de síntese dos três Arcanjos.

Na vida do ser humano é possível distinguir três aspectos: a contemplação, a luta e a ação.
Diferencio a ação da luta no seguinte sentido: A ação tem como fim principal a construção; ela, per accidens, derruba os obstáculos que encontra no caminho. A luta é a derrubada de algo que não deve estar de pé.

São Gabriel: o Arcanjo da contemplação

Isso tem uma correlação no mundo angélico? Para encontrar a resposta a essa questão, consideremos o seguinte:
Quando o Divino Espírito Santo convidou Nossa Senhora para ser sua Esposa, no dia da Anunciação, enviou um mensageiro para essa missão. Mas seria contra toda e qualquer ordem celeste das coisas imaginar que esse mensageiro fosse se incumbir de um recado sem ter nenhuma semelhança com a mensagem que ele levava.
Eu posso, por exemplo, mandar uma mensagem de alta nobreza e significação por meio de um portador qualquer que estiver ao meu alcance, dizendo: “Você chega lá, entrega a mensagem e pede um protocolo comprobatório.”
Mas na ordem angélica isso não é assim. São Gabriel deveria representar magnificamente o Divino Espírito Santo para Nossa Senhora, de maneira que fosse a própria figura do Esposo convidando-A. Portanto, ele precisa ser visto como o Arcanjo da contemplação, da chama que leva a alma a se embevecer com o Espírito Paráclito.
Se assim não fosse, São Gabriel não seria um mensageiro, mas um porta-recado. Ele tem que ser a imagem da mensagem que leva. Por aí podemos perceber o que Nossa Senhora sentiu quando viu o Arcanjo São Gabriel.
Compreende-se, assim, que logo que a Santíssima Virgem disse o “sim”, o Espírito Santo Se tenha unido a Ela. O Divino Paráclito preparou a alma d’Ela para ver face a face o “Original”, o Arquétipo, do qual São Gabriel não era senão um tipo. Claro está que o Espírito Santo é infinitamente mais do que um arquétipo, Ele é o Criador. Mas se poderia conceber essa relação à maneira de uma arquetipia.
Nesta concepção, o Arcanjo São Gabriel é aquele que nos traz o lumen, convida-nos para o recolhimento, a oração, a fim de sentirmos o gosto das coisas celestes e o desdém das terrenas, o que é uma graça insigne do Espírito Santo.

Agilidade diplomática de São Rafael

 

A única passagem da Bíblia onde vem descrita a atuação de São Rafael é o episódio narrado no Livro de Tobias. Pelo que me lembro da narração, Tobit, pai de Tobias, tendo ficado cego acidentalmente, empobreceu, precisando ser sustentado pelo trabalho da esposa.
Vê-se que Tobias era um rapaz casto, direito, sério, alegria de seu pai.
Em determinado momento, Tobit resolveu mandar Tobias a uma cidade onde morava um parente dele para cobrar uma dívida, pois isso os ajudaria naquela situação.
Tobias se põe a caminho e aparece um companheiro que era o Arcanjo São Rafael. A certa altura da viagem, chegam junto a um rio e aparece um peixe misterioso que ataca Tobias. Então, sob a orientação do Anjo, Tobias agarra e mata o peixe. São Rafael o ensina a abri-lo e a tirar de dentro dele um certo óleo que iria curar a cegueira de Tobit.
Chegando à cidade, encontra um parente, homem abastado e influente, cuja filha era lindíssima. Sete homens tinham querido casar-se com ela, mas movidos pela sensualidade. Ora, Deus não permitia que um homem sensual se casasse com a moça. Por isso todos os maridos tinham morrido, e ela já ficara viúva por sete vezes sem ter sido tocada por nenhum homem, pois não aparecera o varão casto que deveria desposá-la.
Apresenta-se Tobias e, com o assentimento do pai da jovem, casam-se. Então, acompanhado de sua esposa, ele volta para junto de Tobit.
Quando Tobias estava fora de perigo, já na casa paterna, o companheiro de viagem anunciou que era São Rafael, um dos sete espíritos que assistem na presença do Altíssimo, e sumiu.
Notem como toda a dificuldade de Tobias não era uma situação de guerra, mas um problema de ação. Seu pai é pobre e Tobias tem uma dívida para cobrar, uma viagem arriscada a fazer, uma jovem a desposar, uma vida para arranjar; pela intervenção do Anjo, essas atividades se consertam em cadeia.
Na ação entra a agilidade diplomática, a continuidade, tudo aquilo quanto representa o operar ao longo de situações incertas. São Rafael é também o protetor nessas circunstâncias, porque se vê que Tobias foi sujeito a toda espécie de vicissitudes até a situação da família dele se regularizar, tendo ele de agir arduamente, e só se saiu bem por meio de milagres.
Por isso, São Rafael é protetor na linha do princípio axiológico1, da confiança, da misericórdia, enfim, de toda a bondade para se restabelecer e se levar uma vida normal.

São Miguel: o Arcanjo da luta

 

Embora, absolutamente falando, a contemplação seja superior à ação, não corresponderia à realidade comparar a atuação dos três Arcanjos a um triângulo em que São Gabriel estivesse sempre no ângulo superior e os outros dois abaixo, em situação de igualdade. Isso torna-se particularmente claro ao considerarmos São Miguel, o Arcanjo da luta.
O empenho do combate, de si, tem algo de destrutivo de quem o trava. Mesmo quando não conduz necessariamente à morte, a luta corresponde a um esforço superior ao desgaste normal do mero trabalho. Por isso traz consigo um aspecto de oblação, na qual o caráter de desinteresse é maior. Por exemplo, o desprendimento manifestado no episódio de Abraão com Isaac é fabuloso! Aquilo é puro amor. Pois bem, pode-se lutar por puro amor indo para uma Cruzada, como Isaac caminhou para ser morto pelo pai.
Aliás, Nosso Senhor Jesus Cristo afirmou que a imolação é a maior prova de amor: “Não há maior prova de amor do que dar a vida pelo amigo” (cf. Jo 15, 13). E dizia isto de Si mesmo para nos explicar como devemos estar certos de seu amor por nós.
Por aí podemos ver a magnificência da luta e, portanto, da atuação de São Miguel Arcanjo.

Profetismo da luta e do holocausto

Em face deste quadro, a ação parece muito inferior à contemplação e à luta. O problema está em termos uma concepção muito material da ação. Com o próprio São Rafael fica-nos na mente o desenhinho – aliás, encantador e bobinho –, que ilustrava os livros de História Sagrada para crianças, dele andando a pé, com um bastão do qual pendia uma espécie de moringuinha, e conversando com Tobias animadamente.
Ora, São Rafael foi um Anjo de uma sabedoria ativa superior, que ajudou Tobias a ver o que de fato ele deveria querer na viagem, encontrar os meios para realizá-la, e cuja companhia lhe dava força e ânimo para empreendê-la com êxito. O aspecto material da viagem para o Anjo não era nada. Fazer com aquele boneco fabricado por ele – o qual Tobias tomava como sendo um homem – falasse e caminhasse, para um espírito angélico não era coisa alguma.
Compreende-se, então, que para nos referirmos a São Rafael como o Arcanjo da ação devemos escolher os mais altos graus e padrões da ação. Portanto, muito mais do que a atuação operacional, meramente ativa, a ação pensante. Algo à maneira, por exemplo, daquela frase do Marechal Foch2: “Ma droite est pressé, ma gauche est menacé, ma arrière est coupée… que fais-je? J’attaque”3. Isto é magnífico! Quer dizer: “Eu estou num apuro total, então vou atacar!” Esta é uma ação, se assim se pode dizer, “rafaélica”, no sentido de que é o pensamento sobre a ação de uma alta categoria.
A arte de reinar, governar, dirigir profeticamente, a missão profética no conjunto da ação da vida diária estaria com São Rafael, enquanto que com São Miguel estaria o profetismo da luta e do holocausto. Assim se compreende a beleza da distinção entre o agir desses Arcanjos.

Os três Arcanjos em episódios da vida de Nosso Senhor

Poder-se-ia perguntar, na vida santíssima e augustíssima de Nosso Senhor, qual desses aspectos brilhou mais e em quais episódios Ele Se conduziu como o Deus de Gabriel, o Deus de Rafael e o Deus de Miguel. Seria um estudo do Evangelho muito bonito.
A meu ver, na Transfiguração do Monte Tabor Nosso Senhor pode ser simbolizado eminentemente por São Gabriel. Na Paixão, por São Miguel, pois é o holocausto e a luta, foi quando Ele venceu o mundo. Ademais, agonia, em grego, significa a luta do atleta; os atletas eram chamados agonistas. Depois, enquanto Mestre, percorrendo a Terra Santa e fazendo apostolado em sua vida pública, é simbolizado por São Rafael.
Com base nestas considerações poderíamos imaginar a nossa vida como uma ação concomitante dos três Arcanjos, com momentos em que ora prepondera São Rafael, ora São Miguel, ora São Gabriel.
Os três Arcanjos formam um unum e, conforme o matiz de nossa atividade apostólica, somos mais beneficiados por um ou por outro. De maneira que, às vezes, nos tornamos tão eficientes na ação que temos a impressão de existir só para agir. Outras vezes, somos tão terríveis no combate que parecemos viver só para a luta. Mas há ocasiões nas quais nos sentimos tão convidados à meditação, que temos a sensação de não existirmos senão para ela. É uma espécie de síntese dos três Arcanjos.
Donde se poderia deduzir que o objetivo de nossa ação apostólica é uma “angelização”. Há uma espécie de presença angélica entre nós, um prolongamento angélico de uns para os outros, e uma representação angélica correspondente ao fundo de nossos espíritos e de nossas almas, que explica a nossa escravidão e união a Nossa Senhora.v

(Extraído de conferências de 28/3/1976 e 12/12/1976)

1) Princípio que leva o homem a ser fiel a sua axiologia, ou seja, ao eixo em torno do qual devem girar todas suas ideias, volições e atividades, visando a glória de Deus e o bem de sua alma.
2) Ferdinand Foch (*1851 – †1929). Militar católico francês que comandou os exércitos da França e da Inglaterra durante a I Guerra Mundial.
3) Do francês: Minha direita é comprimida, minha esquerda é ameaçada, minha retaguarda é golpeada… Que faço eu? Eu ataco.

Sinal do abandono divino

Em nossos dias, como reagiriam os maus diante de um milagre semelhante ao operado por Deus a favor de São Wenceslau? Tal reação determina a atitude da Providência para com a humanidade.

No dia 28 de setembro a Igreja comemora a festa de São Wenceslau. A respeito dele, temos a seguinte nota em nosso calendário:
Soberano e Padroeiro da Boêmia. Século X. Praticou as mais belas virtudes, conservou durante toda a vida, intacto, o tesouro da virgindade. Foi assassinado por seu próprio irmão Boleslau, por instigação de sua mãe, enquanto orava na igreja. A Hungria, a Polônia e a Boêmia escolheram-no por patrono.

O rei pacificador

 

Seguem os dados biográficos de São Wenceslau, tirados de L’Année Liturgique, de Dom Guéranger.

São Wenceslau é uma das mais radiosas figuras deste décimo século, que foi chamado o século de ferro. Neto de uma santa e filho de uma mãe pagã fanática, ele foi uma expressão muito pura desta realeza cristã, que devia ter em São Luís, três séculos mais tarde, seu tipo mais perfeito; regime onde a natureza materna da autoridade lhe assegurava todos os devotamentos e temperava todos os excessos; regime que, fazendo do príncipe o tenente de Deus e de Cristo o seu representante autêntico, o revestia de um caráter sobrenatural e sagrado.
Chefe de uma grande família nacional, o rei era o pai de seu povo e, do maior ao menor, todos tinham o direito de serem seus filhos e de apelar para sua justiça. Mestre inconteste, mas cujo poder era temperado naturalmente pela identidade dos interesses da coroa e do povo, ele era o árbitro nas decisões. Ele era o árbitro cujas decisões são as mais sábias, porque nenhuma ambição pessoal, como nenhum interesse de partido podia influenciar um homem que, recebendo tudo de Deus, não tinha contas a dar senão ao próprio Deus, pelo que Ele era o juiz supremo.
O rei era então o pacificador, o “l’apaiseur”, dizia São Luís, sempre o apaziguador. Portanto, sempre preocupado em resolver as disputas entre seus filhos para os unir em vista do bem comum, a tranquilidade do reino, prelúdio da paz de Deus.
No programa do príncipe cristão, que Wenceslau realizou durante os curtos anos de seu reino, Deus apôs a este programa o selo do martírio, dando assim à sua obra completa um valor de eternidade.

Virtude comprovada por sinais sobrenaturais

Na vida de São Wenceslau, mártir, escrita pelo Gal. Silveira de Mello, encontramos estes dados:
A fama das virtudes de Wenceslau percorreu o mundo. Era admirado e querido pela Cristandade. Amigo de seu povo, dedicado ao serviço da nação, austero e generoso, protetor da pobreza, propugnador da fé e súdito fiel da Igreja e também soldado destemido e leal. Oto, Imperador da Alemanha, chamou Wenceslau à Dieta de Worms e cumulou-o de atenções.
Certo dia, demorou-se inadvertidamente na igreja. Quando chegou à assembleia, o imperador e os outros príncipes, ressentidos com o atraso do duque, tinham resolvido a não se levantar, como era de estilo, à entrada do dignitário retardado. Mas assim que o duque penetrou na sala, viram os nobres que dois Anjos o acompanhavam.
Tomados de admiração e respeito, o Imperador levantou-se para recebê-lo e lhe deu o lugar à sua direita. Como lhe poderiam negar honras, se os próprios Anjos lha tributavam? O Imperador, em sinal de apreço, obsequiou-o com duas preciosas relíquias: um braço de São Vito e os ossos de São Sigismundo, rei da Borgonha e também grande soldado.

Numa assembleia de soberanos, autêntica vassalagem mútua

Tenho a impressão de que este dado biográfico de tal maneira supera o resto, que impede qualquer outro comentário. Vamos, portanto, nos cingir a isto.
Notem a linda cena. São Wenceslau era rei da Boêmia, mas, com certeza, seu reinado invadia também uma parte da Polônia, pois esta nação também o admitiu como seu padroeiro. Ele era rei, portanto, de uma grande parte do território, e nessa época estava sendo realizada uma Dieta, quer dizer, uma reunião dos principais dentre os príncipes e senhores feudais do Sacro Império Romano Alemão. Certamente ele foi convocado para esta Dieta porque essas nações, naquele tempo, estavam sujeitas, de algum modo, à suserania do Sacro Império.
Então, era uma reunião muito bonita e cheia de nobreza, porque não era uma reunião do rei com seus súditos, mas de um senhor que chefiava e liderava outros senhores, também soberanos. De maneira que era uma espécie de assembleia de soberanos, cheia de cavalheirismo e de força.
Vemos aqui um belo exemplo: notem o respeito à soberania. Cada um era como que um soberano e, portanto, quando um senhor entrava na sala, mesmo de categoria inferior à do Imperador do Sacro Império, todos se levantavam, inclusive o Imperador.

Cruel inflexibilidade do mal e doce vingança do bem

Então, vem a represália. Quando entrou São Wenceslau, resolveram não se levantar, porque ele tinha demorado demais na oração. Percebam a raiva daquela assembleia. Mesmo em plena Idade Média pairava, sutil, aquela antipatia enigmática da parte dos que rezam pouco para com os que rezam muito, pois os primeiros são sempre inflexíveis com relação aos segundos. Infelizmente, o contrário não acontece, porque os que rezam muito são propensos a ter uma condescendência com os que rezam pouco.
Decidiram os pouco piedosos: “Vamos todos ficar quietos e sentados quando ele entrar, para desfeiteá-lo, porque ele chegou atrasado.”

Vejam a resposta da Providência: São Wenceslau ingressa na sala e todos veem dois Anjos entrando junto com ele. Acabou-se, não tem mais nada para dizer. A virtude sai coberta de honra e de glória, e o Imperador dá a ele dois presentes.
As pessoas daquele tempo tinham o senso muito mais elevado do que as de nossos dias e, em vez de dar coisas que valiam dinheiro, o Soberano presenteou-lhe duas relíquias – pois se dava muito maior valor a estas do que ao ouro –, uma das quais a de um soldado, para o grande soldado que era São Wenceslau.

Ausência de manifestações sobrenaturais

Surge a seguinte pergunta: Hoje em dia, quando alguém muito piedoso chega atrasado a algum evento e sofre desfeita, por que não aparecem dois Anjos acompanhando essa pessoa? Por que não ocorrem as manifestações sobrenaturais que cobrem de glória o bem e esmagam o mal? A resposta é evidente: porque os pecados do mundo chegaram a tal cúmulo, que os homens não merecem mais isso.
Não devemos imaginar que os Anjos apareceram ao lado do Santo principalmente para a glória dele. Não! Estavam, sobretudo, para o bem do público, que presenciava aquele milagre. Era, portanto, um bem para os maus. Mas os ímpios de nossos dias não o merecem.
Poderíamos nos perguntar que atitude tomariam os maus se hoje aparecessem Anjos ao lado de um justo. Com certeza, seria um ódio sem nome e provavelmente não mudariam de posição. É este estado de espírito córneo, hirto, rijo, que merece, com razão, a punição divina. Porque quando milagres como esses não comovem mais, ou nem sequer existem, é o sinal de que a Providência abandonou uma determinada coletividade humana, um ciclo de cultura ou a humanidade inteira em certa quadra histórica, a qual ficará marcada para toda espécie de castigo. v

(Extraído de conferência de 27/9/1966)

INTRANSIGÊNCIA E DUCTILIDADE: SÃO GREGÓRIO MAGNO

Comentando a diretriz de São Gregório Magno a São Justo, relativa ao apostolado na Inglaterra, Dr. Plinio ressalta a perenidade da Igreja até nas coisas inteiramente secundárias. A carta indica, ao mesmo tempo, muita ductilidade, maleabilidade, naquilo que é secundário e uma enorme intransigência no que é realmente importante.

A 10 de novembro comemora-se a festa de São Justo, bispo, a respeito do qual diz Rohrbacher1, na sua obra Vida dos Santos, o seguinte:

Diretriz de São Gregório Magno sobre o apostolado na Inglaterra

São Justo foi companheiro de Santo Agostinho, em seu trabalho de conversão da Inglaterra.
É, portanto, Santo Agostinho que foi Arcebispo de Cantuária, no século VI, e não Santo Agostinho de Hipona.
Escreveu-lhe São Gregório o seguinte, a respeito de uma consulta.
São Justo fez a São Gregório Magno uma consulta e este lhe deu a resposta que segue.
Quando chegardes ao pé de nosso irmão Agostinho dizei-lhe que, depois de ter pensado longamente, examinado bem a questão dos ingleses, julguei que não devia destruir os templos, mas somente os ídolos que neles estão. Purifique-os com água benta, desça do altar os ídolos e lá coloque relíquias. Se esses templos são bons, bem edificados, que passem do culto dos demônios ao serviço do verdadeiro Deus, a fim de que aquela nação, vendo conservados os lugares aos quais estão acostumados, neles passem a ir mais à vontade. E como estão acostumados a sacrificar bois aos demônios estabeleça qualquer cerimônia solene como a da consagração, ou dos mártires de quem ali estão as relíquias.
Que façam barracas em volta dos templos transformados em igrejas e celebrem a festa com refeições discretas. Ao invés de imolar animais ao demônio, que os matem para comer e render graças a Deus que lhes deu o alimento, a fim de que, deixando quaisquer manifestações sensíveis de júbilo, possam insinuar-se mais facilmente nas alegrias interiores. Porque é impossível destituir os duros espíritos de todos os costumes de uma só vez. É devagar que se vai ao longe.

Todos os deuses dos pagãos são demônios

Essa carta é muito interessante, antes de tudo por causa dessa afirmação que nós encontramos numerosas vezes em Padres e Doutores da Igreja, bem como na Escritura que diz: omnes dii gentium dæmonia (Sl 95, 5) – todos os deuses dos povos, das nações que não Israel, são demônios.
E isso provém deste fato que São Luís Grignion de Montfort põe muito em relevo: o homem, depois do pecado original, nasceu escravo. Ou é escravo de Deus, de Nossa Senhora, ou é escravo do demônio. Não tem outro remédio. E como esses povos pagãos não são escravos de Nossa Senhora, nem de Deus, são necessariamente escravos do demônio. E aquelas coisas que eles adoram são realmente demônios. Sem falar nos numerosos casos que se conhecem de manifestações preternaturais diabólicas, a propósito do culto dos demônios.
De maneira que a expressão é muito característica, violenta, profundamente antiecumênica. Exatamente nesse sentido é interessante essa carta porque ela indica, ao mesmo tempo, muita ductilidade, maleabilidade naquilo que não tem importância, e uma enorme severidade no que é realmente importante.

Templos pagãos purificados pela celebração do verdadeiro culto

Os templos dessas nações pagãs não tinham nada em comum com a arte moderna. Esta é uma negação violenta, blasfematória, de toda forma de verdade e de bem. É a arbitrariedade artística erigida em afirmação normal da desordem e da feiura. Evidentemente, a arte moderna não pode servir para uma igreja católica. Mas os templos constituídos em outras escolas artísticas que não terão a elevação, a sacralidade do gótico, mas são escolas dignas e que realmente contêm verdadeiros elementos de beleza, podem adequadamente servir para o culto católico.

 

Lembro-me que nós publicamos um “Ambientes-Costumes”, em “Catolicismo”, no qual havia uma fotografia de um pagode chinês, e mostrávamos como ele era próprio para servir ao culto católico dentro de uma nação chinesa. Não que se fosse construir um pagode para ali pôr um culto católico, porque quando se faz procura-se fazer o melhor possível. Mas quando se recebe o fato consumado, procura-se aceitar o aceitável. E o pagode, bonito, com muita nobreza, muitos valores, mereceria perfeitamente ser aceito pelo culto católico.
Por exemplo, os heróis da Reconquista, quando tomavam aquelas cidades antigamente mouras que possuíam mesquitas muito bonitas, como a famosa de Córdoba, purificavam as mesquitas, tiravam todos os emblemas do islamismo e instalavam o culto católico, o qual até hoje continua a ser celebrado nesses locais. E isso é uma coisa digna, feita pelos próprios heróis da Reconquista.
Isabel, a Católica, quando penetrou em Granada, uma das primeiras preocupações dela foi precisamente de mandar purificar a mais importante mesquita da cidade e rezar ali uma Missa. Era o principal símbolo da vitória alcançada contra o Islã.

Intransigência no necessário e ductilidade no secundário

lho que São Gregório dá a Santo Agostinho. Se os templos têm características que não destoam do culto, devem-se aproveitar.
E ele indica então uma razão de caráter psicológico: as pessoas estão habituadas a ir ao templo. Uma vez que se elimine o elemento ruim, que é o culto idolátrico, esse hábito desinibe o indivíduo de frequentá-lo. Então, convém aproveitar essa circunstância de nosso lado.
Notem quanta intransigência no necessário e quanta ductilidade naquilo que é secundário e realmente não tem nenhuma atinência com os princípios. Não quer dizer o seguinte: ser intransigente com os princípios fundamentais e tolerante com os princípios secundários. Isso seria uma abominação. Com os princípios se é intolerante em toda linha, até onde eles vão. Mas uma parte da realidade que escapa, sob vários aspectos, ao ângulo dos princípios pode ser vista com essa largueza.
Observem as quermesses realizadas junto a igrejas. Muitas delas são de moralidade duvidosa, culturalmente repelentes e sem expressão de valor piedoso em nenhum sentido da palavra.
No caso acima, vemos o contrário. São Gregório Magno manda fazer barraquinhas em torno das igrejas, o que, naquela noite dos tempos, era propriamente a quermesse. Para quê? A fim de distribuir comilanças porque aquele pessoal estava habituado a comer. E ele indica um sentido religioso à refeição: celebrem a Deus que lhes concedeu essa comida, e fiquem alegres com isso; era um pouco de regozijo depois do trabalho. E com isso se atraía o povo
Vemos como essas coisas se ligam e dão bem uma expressão da perenidade da Igreja até nas coisas inteiramente secundárias. v

(Extraído de conferência de 9/11/1966)

1) ROHRBACHER, René-François. Vida dos Santos. São Paulo: Editora das Américas. 1959, v. XIX, p. 287-288.