São Simão e São Judas Tadeu

 

Considerando o respeito com que a Igreja cerca a memória desses Apóstolos, a gratidão com que ela os trata, a afirmação da santidade pessoal que alcançaram, compreendemos terem eles correspondido de modo pleno aos desígnios da Providência Divina. Suas missões se realizaram inteiramente e eles morreram em paz dentro do aparente fracasso de seu apostolado.

No dia 28 de outubro a Igreja comemora a festa de São Simão e São Judas, Apóstolos. A respeito deles, temos os seguintes dados extraídos de uma obra de Dom Guéranger1, entre outros.

 

Na Sagrada Escritura há mil refutações do igualitarismo

 

Uma antiga tradição refere que São Judas Tadeu pregou o Evangelho na Mesopotâmia, e São Simão no Egito. Depois, reuniram-se na Pérsia onde sofreram o martírio no ano de 47.
Simão era designado o Zelota talvez por ter pertencido antigamente ao partido nacionalista dos zelotas, que não queriam admitir o jugo estrangeiro sobre a Palestina.
Judas era sobrinho de São José por Cléofas ou Alfeu, seu pai, portanto legalmente primo do Homem-Deus. Era daqueles que os seus compatriotas chamavam irmãos do Filho do carpinteiro. Ele escreveu uma curta epístola para combater a heresia gnóstica, então nos seus começos.
As relíquias dos dois Apóstolos foram transportadas, em 1605, para a Basílica do Vaticano e colocadas no altar que a tradição diz estar situado mais ou menos no lugar onde teria sido implantada a cruz de São Pedro.

Os zelotas eram aqueles que tinham o zelo pela independência da Palestina para que ela não caísse no jugo gentio. E se entre os zelotas havia elementos maus, existiam também elementos bons porque a causa zelota tinha alguns aspectos simpáticos, dignos de apreço. Compreende-se, portanto, porque nesse meio Nosso Senhor tenha recrutado um de seus Apóstolos, São Simão.
São Judas era primo de Jesus. Aliás, não era o único parente entre os Apóstolos. Isso mostra bem a extraordinária predestinação da Casa de Davi. Seria uma honra para imortalizar uma estirpe o fato de ter entre si um Apóstolo, e a de Davi possuiu mais de um. E não só isso, há um fato que eclipsa este parentesco de todos os modos possíveis: dela nasceu também o Homem-Deus.

Para deixar bem marcado o amor a essa estirpe, o que por sua vez nos indica quanto Deus toma em consideração a hereditariedade, e como andam desvairadamente os igualitários que reputam ser o princípio da hereditariedade de nenhum valor. Isto é uma das coisas do igualitarismo que encontram mil refutações no conteúdo das Escrituras.

A celebridade consiste em ser conhecido pelos ignorantes

Diante da escassez de informações a respeito desses dois Apóstolos, poderíamos nos perguntar se convém comentá-los em nossa reunião. Respondo que sim, porque todos os Apóstolos, pela sua ligação com as origens da Igreja, devem ser objeto de nossa especial devoção. A festa de um Apóstolo não pode ser indiferente ao bom católico.
Mas quando vejo nomes de Apóstolos que deixaram dados bastante pequenos na história escrita, fazendo com que uma pessoa não muito instruída nessa matéria quase nada saiba a respeito deles – porque a celebridade consiste em ser conhecido não pelos cultos, mas pelos ignorantes –, lembro-me muito da disparidade de fecundidade da evangelização dos Apóstolos que agiram na bacia do Mediterrâneo e a dos que atuaram em outros lugares.
E penso a respeito da resignação que estes devem ter tido, muitos deles morrendo em paz, vendo que seu apostolado não havia produzido nenhum fruto, mas sabendo que todas as ações feitas de acordo com a vocação de cada um, realizadas com integridade de espírito e retidão de intenção, obedecendo à moção da Providência, serão premiadas no Céu e concorrem para a glória de Deus, ainda que os homens na Terra tenham dado um aplauso pequeno ou um consentimento insignificante a essas ações.

Ponto de partida para a fecundidade do apostolado

É interessante notar que um bom número de Apóstolos na aparência exerceu um apostolado ineficiente e fracassado. Dir-se-ia hoje que os Apóstolos da bacia do Mediterrâneo se realizaram e os outros morreram irrealizados, conforme essa mania da “realização” e esse horror do fracasso que existe atualmente.
É indispensável compreendermos que isso contém uma lição para nós, considerando o respeito com que a Igreja cerca a memória desses Apóstolos, a gratidão com que ela os trata, a afirmação da santidade pessoal que alcançaram, quer dizer, eles corresponderam inteira e plenamente aos desígnios da Providência Divina. Portanto, Deus estava contente com eles, suas vidas se realizaram na plenitude e morreram em paz, dentro do aparente fracasso de seu apostolado.
Mais ainda, sabendo que outros estavam tendo um apostolado muito frutífero. Os Apóstolos sofreram o martírio, compreendendo que algum dia seu sangue seria de utilidade para aqueles povos.

Ainda que não tivesse utilidade para povo nenhum, eles prestaram a Deus o culto de sua adoração e de seu sacrifício desinteressado, até mesmo sem objetivo terreno. Apenas porque eram criaturas de Deus, chamados por Ele para uma certa obra, realizaram-na e nela morreram para a glória do Criador. Quer dizer, fizeram de si como aquela ânfora cheia de perfume que Santa Maria Madalena quebrou diante de Nosso Senhor, e que não teve outra utilidade senão impregnar de aroma os pés do Redentor e a Ele servir.
Há outra lição para nós. Mesmo o apostolado bem sucedido vale, principalmente, por essa espécie de imolação, de holocausto, de adoração sem mais porque Deus é Deus. E digo mais: se é verdade que um apostolado com essas intenções pode não ser bem sucedido, eu não creio que haja apostolado fecundo sem essas intenções. Se uma pessoa soubesse que seu apostolado seria como o de São Simão e São Judas, isto é, sem nenhum fruto humano, e por isso diminuísse sua dedicação, ela não daria ao seu apostolado a fecundidade necessária. Porque é esse estado de espírito que deve ser o ponto de partida para que o apostolado seja fecundo.v

(Extraído de conferências de 28/10/1963 e 28/10/1965)

1) Cf. GUÉRANGER, Prosper. L’année liturgique. Vol V. Librairie Religieuse H. Oudin. Paris: 1900. p. 523-525.

AMOR, OBEDIENCIA E VENERAÇÃO PELA CÁTEDRA DE SÃO PEDRO

 

A Cátedra de São Pedro lembra o supremo governo da Igreja Católica Apostólica Romana. Se as vicissitudes humanas podem dar a essa Cátedra brilho maior ou menor, ou até rodeá-la de trevas, ela é sempre a mesma. Nosso amor à Santa Igreja é absolutamente sem limites e acima de todas as coisas da Terra, e deve incidir de modo especial sobre a Cátedra de São Pedro, qualquer que seja o seu ocupante.

A respeito da festa da Cátedra de São Pedro, Dom Guéranger, em sua obra L’Année Liturgique, cita um trecho do Sermão 82 de São Leão Magno. Eis os dizeres deste Santo Pontífice:

A Providência preparou o Império Romano para a pregação do Evangelho

O Deus bom, justo e todo-poderoso, que jamais negou sua misericórdia ao gênero humano, e que pela abundância de seus dons forneceu a todos os mortais os meios de conhecermos o seu Nome, nos secretos desígnios de seu imenso amor, teve piedade da cegueira voluntária dos homens e da malícia que os precipitava na degradação, enviou o seu Verbo, que Lhe é igual e coeterno.
Ora, esse Verbo, tendo-Se feito carne, tão estritamente uniu a natureza divina à natureza humana que o abaixamento da primeira até nossa abjeção tornou-se para nós o princípio da elevação mais sublime.
Mas, a fim de difundir no mundo inteiro os efeitos desse favor, a Providência preparou o Império Romano e deu-lhe tão grandes limites que ele abarcava em seu vasto meio a universalidade das nações. Foi feita uma coisa muito útil à realização da obra projetada, que os diversos reinos formassem uma confederação de um império único, a fim de que a pregação geral chegasse mais rapidamente aos povos, unidos que já estavam sob o regime de uma só cidade.

Roma, dominada pelo demônio, foi conquistada por Cristo

o Autor de seus destinos, fizera-se escrava dos erros de todos os povos, no instante mesmo em que ela os tinha sob suas leis e acreditava possuir uma grande religião, porque não rejeitava nenhuma mentira. Mas quanto mais duramente foi dominada pelo demônio, mais maravilhosamente foi conquistada por Cristo.
Com efeito, quando os doze Apóstolos, após terem recebido do Espírito Santo o dom de falar todas as línguas, espalhados pelos quatro cantos da Terra, e que tomaram conta deste mundo onde deviam difundir o Evangelho, o Bem-aventurado Pedro, príncipe dos Apóstolos, recebeu como herança a cidadela do Império Romano, a fim de que a luz da verdade que se manifestava para a salvação de todas as nações se propagasse mais eficazmente, difundindo-se no centro desse Império sobre o mundo inteiro.
Qual a nação, com efeito, que não contava com numerosos representantes nessa cidade? Qual povo ignorava o que Roma ensinava? Era lá que deviam ser esmagadas as opiniões de Filosofia, dissipadas as vaidades da sabedoria terrestre, o culto dos demônios seria confundido, destruída enfim a impiedade de todos os sacrifícios, no mesmo lugar onde uma superstição hábil reunira tudo o que os diversos erros haviam produzido.

A unidade civil do Império Romano preparou a aceitação da unidade religiosa

 

A primeira ideia que aparece neste texto é de que a humanidade estava extremamente degradada, e Nosso Senhor Jesus Cristo, Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, encarnou-Se, realizando por esta forma uma descida que era imensa – porque do mais alto dos Céus, do infinito, para uma condição degradada –, mas há uma correspondência entre o enorme dessa descida e a extraordinária ascensão que o gênero humano teve. Porque, assim como Deus Se humilhou imensamente encarnando-Se, nós fomos incomensuravelmente elevados pela Encarnação d’Ele.
Há uma expressão que diz: “Quanto maior a altura, tanto maior o tombo.” Aqui se poderia afirmar, salvadas as proporções: “Quanto maior o tombo, maior a altura.” Quanto mais Deus Se humilhou, tanto mais nós fomos prodigiosamente levantados por Ele. Então, vem acentuada aqui a imensa misericórdia do dia de Natal, que patenteia aos homens a elevação sublime e incompreensível da natureza humana pela união hipostática na Segunda Pessoa da Santíssima Trindade. O segundo pensamento é o seguinte: esse favor da Providência só daria todos os seus resultados pela constituição do Império Romano. Porque era um Império enorme que continha, dentro de seu bojo, todas as nações da orla do Mediterrâneo e muitas outras ainda. Como se sabe, o Império Romano estendeu-se até o atual território da Inglaterra e um pouco o da Escócia; e que na linha sul ele tocou as lindes da Etiópia.
A África do Norte era povoada, fértil e intensamente latina no tempo dos romanos, e o poder destes afundou pela Pérsia adentro, tocando quase até na Índia. De algum modo, se podia dizer que o mundo conhecido era todo romano. Ou seja, houve uma unificação de incontáveis nações sob um só Império, e São Leão Magno mostra porque esta unificação serviu para a difusão do enorme benefício que houve, em que Cristo se Encarnasse e elevasse a natureza humana. Ele, então, dá algumas razões.
Uma razão, muito rapidamente mencionada, é ligada ao fato de que onde há um só Estado, sem fronteiras, cabe mais facilmente a ideia de uma só religião. E por causa disso a unidade civil do Império Romano preparava as mentes para a aceitação de uma unidade religiosa.

A Roma dos Papas

Depois ele desenvolve uma ideia mais viva, que é a seguinte: a cidade de Roma era como que um coração mantendo dentro de si, com movimentos de sístole e diástole, um sangue que circulava por todo o Império. Em Roma havia habitantes de todas as partes do Império, que ou ali moravam e exerciam influência sobre suas respectivas províncias, ou estavam sempre em viagem e assim levavam a influência de Roma para os últimos recantos.
De um modo ou de outro, Roma era como um coração que havia atraído para si pessoas de todo o Império, e depois mandava para longe funcionários, legionários e todo o aparelho administrativo e militar romano. De maneira que, cristianizando a cidade de Roma, estava conquistado o ponto estratégico para a cristianização do Império. Feita a cristianização do Império, estava potencialmente cristianizado o mundo.
Então ele explica que, por um desígnio soberano de Deus, Roma foi escolhida para ser a cidade do Papa porque era uma cidade estratégica, onde este benefício da salvação podia se tornar mais geralmente conhecido.
Daí vem a Cátedra de São Pedro, a qual se trata de venerar, posta no centro de influência do mundo inteiro, e que inoculou em todo o orbe a regeneração católica, a verdadeira Fé, disseminou a Igreja.
É bonito verificar como a Providência age de um modo político interessante. E eu não recuo diante da palavra “político”. Enquanto a Igreja era pequena e fraca, tornava-se necessário que a sede d’Ela fosse na mais importante cidade do mundo, para poder espalhar a sua influência. Mas depois que a Igreja se difundiu por todo o orbe, convinha que o Papa, tornado personagem humanamente poderosíssimo, não convivesse na mais importante cidade do mundo com o maior poder temporal, porque sairia fricção. E em certo momento, tornou-se necessário que Roma não fosse mais a capital política do mundo.
Então, Constantino deixou Roma e se transladou para Bizâncio. Atribuem alguns esta ideia a que exatamente o Imperador não incomodasse o papa, mas isso é um pouco discutido, porque Roma já não era capital do Império. A capital do Império era Milão, Ravena, e nunca mais Roma veio a ser a capital de um país que fosse uma potência internacional.
Nós tivemos a Roma dos Papas, que foi sempre um pequeno Estado temporal. Depois a carnavalesca Roma dos Saboias, capital do reino da Itália. Esta Roma foi capital de um Estado de alguma importância na Europa, mas não de um poder político e militar mundial. De uma influência cultural mundial, sim; de um poder político e militar mundial, não.

Amor sem limites ao papado e à Cátedra de São Pedro

 

Poderia começar a aparecer, então, uma espécie de opressão da Roma civil, poderosa, sobre a Roma religiosa. O que se passou? Ocorreu a coisa mais inesperada do mundo. Para tocar para a frente a obra de humilhação do Papa, a Roma dos Saboias foi uma Roma constitucional e depois se transformou numa república. Mas quando se fizeram as eleições, verificou-se que a maior influência eleitoral da Itália era o Papa. E hoje em dia, por detrás do governo democrata-cristão, é o Papa que governa.
De maneira que os papéis se inverteram e, em vez de ser a Roma civil que governa a Roma religiosa, nós temos, até certo ponto, a Roma religiosa que governa a Roma civil. E assim, o desígnio de que o papado fosse opresso pelo poder civil não ser realizou.
Será o melhor possível esse governo democrata-cristão? Uma coisa é verdadeira: se São Pio X estivesse no Sólio Pontifício, a Itália seria a nação mais bem governada do mundo. Quanto a isto não há dúvida!

Quando se fala da Cátedra de São Pedro, refere-se naturalmente ao móvel da cátedra. No fundo da Igreja de São Pedro há uma cátedra em bronze, feita por Bernini1, cercada de resplendores, recebendo por isso o nome de “a glória de Bernini.” Essa cátedra é oca e dentro se encontra o pequeno trono de madeira, que São Pedro usava em Roma, o qual até hoje se conserva para veneração dos fiéis e é exposto em certas ocasiões.

A cátedra simbolicamente lembra o poder, o papado, o pontificado, a continuidade dessa instituição, através de todos os homens tão diferentes que a têm ocupado. Recorda, então, o supremo governo da Santa Igreja Católica Apostólica Romana.
Se as vicissitudes humanas podem dar brilho maior ou menor, ou até rodear de trevas essa Cátedra, ela é sempre a mesma. O supremo governo da Igreja é a cabeça da Igreja. Quando se ama alguém, se ama sobretudo sua face, sua cabeça. Portanto, nosso amor à Santa Igreja Católica Apostólica Romana, que é um amor absolutamente sem limites e acima de todas as coisas da Terra, deve incidir especialmente sobre o papado e a Cátedra de São Pedro, qualquer que seja o seu ocupante. Porque esse é Pedro, a quem foram dadas as chaves dourada e prateada, a do Céu e a do poder indireto na Terra.
E a este Pedro nós osculamos, em espírito, os pés, como expressão de homenagem e de adesão. Porque em relação à Cátedra de São Pedro, nosso amor, nossa obediência, nossa veneração absolutamente não têm limites.v

(Extraído de conferência de 17/1/1966)

1) Gian Lorenzo Bernini (*1598 – †1680), arquiteto e escultor italiano.

PEDRA DE ESCÂNDALO: APRESENTAÇÃO DO MENINO JESUS NO TEMPLO

 

 

Quando o Profeta Simeão teve nos braços o Menino Jesus e entoou o seu famoso cântico Nunc dimittis servum tuum, Domine… – Senhor, agora envia em paz o teu servo… –, ele disse que Nosso Senhor foi enviado como pedra de escândalo para a perdição e salvação de muitos, e para que se conhecessem as cogitações ocultas dos corações.
Portanto, Nosso Senhor foi mandado para salvar a todos, mas a perdição daqueles que O recusassem não significava o fracasso d’Ele, e sim um elemento intrínseco à sua Missão, ou seja, criar condições para os justos conhecerem a verdade e se salvarem, para os ímpios manifestarem a sua impiedade e, não se arrependendo, irem para o Inferno.
Christianus alter Christus – o cristão é um outro Cristo. Também nós somos pedra de escândalo posta para a salvação e a perdição de muitos, e para que se revelem as cogitações dos ímpios. A nossa missão é, pois, suscitar nas pessoas a definição, para a salvação dos bons.

(Extraído de conferência de 31/1/1966)

Senso hierárquico e contrarrevolucionário

 

Os sete Santos Fundadores Servitas propagaram uma devoção que prenunciou a da escravidão a Nossa Senhora, pregada por São Luís Grignion de Montfort. O título de “Servos” marca muito bem a diferença entre a boa piedade católica e a Revolução.

A respeito dos Sete Santos Fundadores dos Servos da Bem-aventurada Virgem Maria, cuja festa se comemora no dia 17 de fevereiro, diz Dom Guéranger1:

Aclamados por crianças nas ruas de Florença

Quando, no século XIII, o funesto cisma instigado por Frederico II2 e as sangrentas facções dividiam os povos mais civilizados da Itália, a previdente misericórdia de Deus suscitou, dentre pessoas ilustres pela santidade, sete nobres florentinos, de cuja união na caridade iria dar um memorável exemplo de amor fraterno.
No ano 33 desse século, no dia da Assunção da Bem-aventurada Virgem, rezavam eles fervorosamente na piedosa confraria “Laudesi”, a Mãe de Deus apareceu exortando-os a abraçar um gênero de vida mais santo e mais perfeito.
Tendo, pois, conversado previamente com o Bispo de Florença, estes sete homens logo disseram adeus à sua nobreza e riquezas. Eles tomaram como vestimentas hábitos vis e usados, e, por baixo destes, cilícios. Estabeleceram-se num lugar retirado fora da cidade no dia 8 de setembro, pois queriam colocar sob os auspícios de Maria Santíssima esta nova existência, no mesmo dia em que Ela, nascendo entre os homens, começava sua santíssima vida.
Deus mostrou por um milagre o quanto esta decisão lhe foi agradável. Com efeito, pouco depois os sete atravessaram Florença mendigando de porta em porta. Aconteceu que de repente as vozes das crianças, entre as quais São Felipe Benzini com apenas cinco meses, os aclamaram como servos, “servitas”, da Bem-aventurada Virgem Maria. Seria com este nome que a partir de então deveriam ser conhecidos.

 

A Virgem lhes mostra o hábito que deveriam trajar

Depois deste prodígio, o amor que eles tinham pela solidão os levou a evitar o contato com as pessoas, escolheram se retirar ao Monte Senário. Lá, entregando-se a uma vida inteiramente celeste, moravam nas cavernas. Contentando-se com água e ervas como alimento, castigavam seus corpos com vigílias e outras macerações. A Paixão de Cristo e as dores de sua aflitíssima Mãe eram o objeto de suas contínuas meditações.
Numa sexta-feira santa em que meditavam fervorosamente nessas considerações, a Bem-aventurada Virgem lhes apareceu uma segunda vez, indicou-lhes o hábito negro de que deveriam se revestir e lhes disse que seria muito do seu agrado que eles fundassem uma nova Ordem regular cuja missão seria venerar e promover sem cessar o culto das dores por Ela suportadas ao pé da Cruz do Senhor.
Na constituição desta Ordem sob o título de Servitas da Bem-aventurada Virgem, eles tinham o apoio de São Pedro mártir, ilustre dominicano, que se tornou íntimo amigo dos Santos fundadores a quem, numa visão particular, a Mãe de Deus revelou seus desígnios sobre esta fundação.
A Ordem foi aprovada pelo Soberano Pontífice Inocêncio IV.

 

Saúde espiritual, virtude, alta civilização

Nessa narração há vários fatos magníficos como índice de saúde espiritual, de virtude, de alta civilização, que ocorriam outrora, mas em nossos dias não se dão mais, o que indica a profunda putrefação na qual se encontra o mundo moderno.
Analisemos ponto por ponto. Primeiro, existia em Florença uma confraria em honra de Nossa Senhora que impedia os progressos da heresia cátara. Será que em nossos dias se fundaria uma confraria em honra da Santíssima Virgem para impedir o progresso de qualquer heresia? Onde tal confraria encontraria aceitação?
Em determinado momento, essa confraria admitiu sete membros da aristocracia. Ora, hoje em dia vemos como é árduo o apostolado junto às elites.
Certa ocasião, os sete rezavam juntos. Que coisa linda encontrar sete aristocratas orando juntos! Foi quando, Nossa Senhora lhes apareceu exortando-os a abraçar um gênero mais perfeito de vida. Eles decidiram, então, retirar-se à solidão.
Depois de algum tempo voltaram para a cidade e aconteceu algo maravilhoso pelo qual as pessoas louvavam a Deus e as crianças gritavam: “Eis os servidores de Maria!” A admiração da cidade por jovens que abandonam tudo por amor de Deus, e quando voltam são recebidos calorosamente, isso acontece hoje em dia? Vemos, assim, como tudo mudou, a fonte mesmo do bem parece estar estancada, enquanto a do mal afigura-se ter atingido o auge de sua miserável fecundidade.
O título de servidores de Maria deixou-os jubilosos e decidiram se dedicar ao culto da Mãe de Deus. Portanto, Nossa Senhora falou pela boca dos inocentes e lhes deu um nome, o qual eles aceitaram com alegria.

Em nossos dias, vasta conspiração contra a Igreja

 

Então a Santíssima Virgem lhes apareceu mais uma vez e lhes deu a missão de honrar especialmente a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo e as tristezas de Maria ao pé da Cruz. É o attendite, et videte – parai e vede se há uma dor semelhante à minha – que se canta na Semana Santa.
Aos pés da Cruz, Nossa Senhora sofria em união com os padecimentos de seu Divino Filho, não só por causa dos pecados que ali estavam sendo cometidos, mas pelos pecados de todos os tempos. Portanto, o imenso pecado de apostasia – o pior de todos os séculos – Os afligiu naquele momento. E por uma reversão difícil de entendermos, os atos de reparação feitos hoje por nós consolam a Nosso Senhor e sua Mãe Santíssima no Calvário, porque prevendo essa nossa reparação, Eles se consolaram. Desta maneira podemos consolá-Los e desagravá-Los pelos pecados cometidos hoje.
Assim sendo, o que significa esta expressão do Profeta Jeremias: “Ó vós todos que passais pelo caminho parai e vede se há uma dor semelhante à minha dor?” (Lm 1, 12). O que quer dizer “parai”?

Deixai os vossos negocinhos, as vossas preocupaçõezinhas, não vos preocupeis com vossos interesses pessoais.
Ele não se referia a um caminho material pelo qual talvez as pessoas passassem perto do Calvário, mas é algo imensamente maior, a estrada da História por onde transita toda a humanidade. É um convite a todas as pessoas que passam em todos os tempos.

Num mundo no qual se cometa o pior das ofensas a Nosso Senhor e a Nossa Senhora como jamais se praticou, porque em nenhuma época houve uma tão vasta conspiração contra a Igreja, e que chegasse a uma tão pequena distância da vitória completa, de forma a constituir um superlativo de injúrias.
Então “parai e vede” é a missão dos servos, é a nossa missão em nosso século. Devemos ser almas reparadoras, ter na mente os sofrimentos de Nosso Senhor Jesus Cristo e de sua Santíssima Mãe. Sobretudo com a ideia de estarmos consolando-Os. E se Eles tiveram consolações imensas pela reparação de tantos Santos ao longo da História, é verdade também que receberam uma gota de alívio ao terem o conhecimento de que, neste século de suprema apostasia, essas minhas palavras seriam ouvidas com boas disposições de alma.
Alguém poderia objetar que Nossa Senhora apareceu a eles, mas não a nós. Aqui se aplica o que o Divino Mestre disse a São Tomé: “Tu crestes porque viste; bem-aventurados os que creem sem terem visto” (Jo 20, 29).
Na capela de uma de nossas sedes temos uma relíquia dos sete Fundadores dos Servitas. Certa ocasião, alguém perguntou qual a razão de existir uma única relíquia e serem mencionados os sete Santos.
Foi-lhe explicado, então, que eles foram sepultados juntos, de maneira que, com o passar do tempo, seus restos mortais se confundiram. Essa confusão até do pó desses sete Santos, os quais, em certo sentido, formavam uma só alma e acabaram constituindo uma só relíquia, diz tanto sobre as almas consagradas a Nossa Senhora que mais não poderia dizer.

Prenúncio da devoção ensinada por São Luís Grignion de Montfort

Essa é uma das mais antigas Ordens especialmente fundadas para propagar a devoção a Nossa Senhora. É muito bonito trazerem o título de Servos da Bem-Aventurada Virgem Maria. Como é evidente, esse título prenuncia a devoção de São Luís Grignion de Montfort da escravidão a Nossa Senhora, com um despojamento completo de todos os bens presentes, passados e futuros, inclusive os espirituais, que são os méritos das nossas boas obras, postos nas mãos de Maria Santíssima.
Esse título marca muito bem a diferença entre a boa piedade católica e a Revolução. Há quem o considere como indigno do homem de nosso século, como próprio a ser utilizado no passado, mas não em nossa época em que a escravidão foi abolida, ninguém mais é servo, nem sequer de Nossa Senhora. Assim, em relação a Ela poder-se-á chamar filho, porém não escravo, porque a dignidade humana não comporta tal título, nem em relação à Santíssima Virgem.
Evidentemente, essa é uma afirmação igualitária, de caráter revolucionário.

 

Sendo Nossa Senhora a Rainha absoluta do Céu e da Terra, em relação a Ela todos são servos, e é uma honra sê-lo. Por isso aspiramos e consideramos dever nosso sermos verdadeiros escravos d’Ela, pois assim seremos autênticos filhos. Porque nós A amamos como filhos, queremos servi-La como servos.
Os sete Fundadores dessa Ordem religiosa, à qual quiseram dar o nome de Servos de Maria, a Igreja canonizou, instituindo essa Ordem, aprovando e promulgando suas regras. Assim, o magistério da Igreja, por várias formas, indica que em relação a Nossa Senhora deve-se ser servo.
O espírito demoníaco da Revolução, não querendo nenhuma espécie de superioridade, não se contenta em abolir a hierarquia na Terra – tanto a eclesiástica como a temporal –, mas quer negar até as desigualdades na ordem sobrenatural. Contesta a existência das desigualdades imensas estabelecidas por Nosso Senhor entre a Mãe d’Ele e as demais criaturas, enquanto Rainha de todos os Anjos e Santos e de todo o universo.
Se os sete Santos Servitas ressuscitassem e vissem as abominações proferidas por lábios católicos e amadas por corações católicos, que indignação teriam, que censuras fariam!
Nós devemos pedir a eles que intervenham aqui na Terra e ajudem a estabelecer uma verdadeira devoção a Nossa Senhora entre os homens e, com essa devoção, o senso da hierarquia e da Contra-Revolução.v

(Extraído de conferências de 11/2/1965 e 11/2/1966)

Uma prefiguração dos apóstolos dos últimos tempos

São Paulo era um homem violento e queria exterminar os cristãos. Deus o converteu e lhe concedeu a graça de realizar um apostolado extraordinário, pela qualidade ou quantidade das pessoas que abraçavam a Fé. Ele abriu um sulco sobre o qual a Igreja Católica se desenvolveu, e depois deu o primeiro passo essencial para a derrubada do paganismo no Império Romano.

 

Em 25 de janeiro comemora-se a festa da conversão do Apóstolo São Paulo. No trecho dos Atos dos Apóstolos, lido na Liturgia desse dia, há matéria para comentários.

Respirava ameaças de morte contra os cristãos

Naqueles dias Saulo, respirando ainda ameaças de morte contra os discípulos do Senhor, apresentou-se ao príncipe dos sacerdotes e lhe pediu cartas para a sinagoga de Damasco, a fim de que, se achasse homens e mulheres empenhados naquele caminho, os levasse presos para Jerusalém.
E indo ele andando, aconteceu aproximar-se de Damasco. Subitamente o cercou uma Luz vinda do céu e, caído por terra, ouviu uma voz que lhe dizia: “Saulo! Saulo! Por que me persegues?”
Saulo disse: “Quem sois, Senhor?” E Ele respondeu: “Eu sou Jesus a Quem tu persegues. Duro te é recalcitrar contra o aguilhão.” Então, tremendo espavorido, disse ele: “Senhor, que quereis que eu faça?” E o Senhor lhe respondeu: “Levanta-te e entra na cidade! E aí te dirão o que convém fazer.”
Ora, aqueles que o acompanharam estavam espantados ouvindo a voz, mas sem ver ninguém. Levantou-se então Saulo do chão e, tendo os olhos abertos, nada via.Desta maneira, levado pela mão, o introduziram em Damasco, onde esteve três dias sem ver, sem comer nem beber. Havia em Damasco um discípulo chamado Ananias. E, numa visão, o Senhor lhe disse: “Ananias!”; e ele respondeu: “Eis-me aqui, Senhor!” E o Senhor acrescentou: “Levanta-te e vai à rua que se chama Direita e procura em casa de Judas a um homem chamado Saulo de Tarso! Porque ele lá está orando.”
(Saulo viu também um homem com nome Ananias que entrava e lhe punha as mãos para que ele recobrasse a vista.)

Respondeu Ananias: “Senhor, tenho ouvido falar muito deste homem e do mal que tem feito aos nossos santos de Jerusalém. Aqui mesmo ele tem poder dos príncipes dos sacerdotes para prender todos aqueles que invocam o vosso nome.” Mas o Senhor lhe disse: “Vai porque este é um vaso de eleição escolhido por Mim para levar o meu nome diante dos gentios, dos reis e dos filhos de Israel. Eu lhe mostrarei quanto deverá ele padecer pelo meu nome.”
Partiu então Ananias e entrou na casa. E pondo as mãos sobre ele disse: “Saulo, irmão, o Senhor Jesus que te apareceu no caminho por onde vinhas me enviou para que recobres a vista e sejas cheio do Espírito Santo.” Imediatamente caíram dos seus olhos como que umas escamas e ele recuperou a vista. E levantando-se foi batizado. Tendo tomado alimento ficou confortado. Esteve alguns dias com os discípulos que se achavam em Damasco.
E logo começou a pregar nas sinagogas a Jesus, dizendo que Ele era Filho de Deus. Pasmavam, porém, todos os que o ouviam e diziam: “Pois não é este aquele que perseguia em Jerusalém os que invocavam este nome? E não veio aqui para levá-los presos e entregá-los aos príncipes dos sacerdotes?”
Saulo, porém, se fortalecia cada vez mais e confundiu os judeus que habitavam em Damasco, afirmando que Jesus é o Cristo. (At 9, 1-22).

Homem célebre pela violência

Essa narração é tão rica em pormenores saborosos que se fica em dúvida sobre o que comentar. Mas um dos traços curiosos presente em toda essa história é a violência. É uma história toda ela violenta nas suas linhas gerais e nos seus detalhes principais.

Saulo é um homem violento. Ele toma a iniciativa de pedir às autoridades da sinagoga cartas de perseguição. Vê-se que eram autoridades meio acomodadas, e ele, zeloso, queria acabar com aquilo que reputava uma heresia; então, pede cartas. Portanto, é ele quem desencadeia a ação um tanto indolente das autoridades e põe-se a campo para exterminar, nos seus vários núcleos, a pseudo-heresia nascente. Munido dessas cartas e cheio de violência – está dito que Saulo respirava ameaças de extermínio –, ele vai caminhando para Damasco porque queria acabar com essa nova seita naquela cidade.
Na resposta de Ananias a Deus Nosso Senhor, vê-se que Saulo era célebre pela violência: “Este homem tem uma fama de ser muito violento contra nós.” Quer dizer, era tido como um inimigo capital dos católicos.

Um aguilhão que atuava sobre Saulo: a graça

Saulo caminhava pela estrada de Damasco, e o texto usa até uma expressão curiosa para indicar essa marcha em que ele vai respirando violência. Diz o seguinte: “E indo ele andando, aconteceu aproximar-se de Damasco”. Ou seja, é uma marcha um pouco longa. Tem-se a impressão de que com aquele galopar a raiva se torna cada vez maior, até acontecer que ele se aproximou de Damasco.
Sucede, então, para esse homem violento, um acontecimento violento: uma voz que lhe fala. Quer dizer, é a ordem das coisas invisíveis que se abre para ele e uma advertência: “Saulo, por que me persegues?”
É uma pergunta que importa numa censura violenta. Porque ele estava resistindo a uma violência interior, rejeitando graças: “Duro te é recalcitrar contra o aguilhão” (At 9, 5).
Quer dizer, a graça era um aguilhão que soprava sobre Saulo, e ele rejeitava essa graça. Então, para levar o aguilhão ao máximo há uma violência ainda maior: ele cai do cavalo.
Para alguém que está montado a cavalo, a maior violência possível é cair do cavalo.
E ele sentiu a violência.
— Senhor, o que quereis que eu faça?
A essa queda sucede uma violência pior ainda: a cegueira. A não ser morrer, o pior que poderia acontecer era cair do cavalo e ficar cego. Para um homem do temperamento de São Paulo não há coisa pior, pois a condição humana mais incompatível com a da violência é a de cego. E um outro o levava pela mão; era o único remédio.

Passo essencial para a derrubada do paganismo no Império Romano

Podemos imaginar o que significou para a comunidade católica de Damasco aquele homem ser levado para a casa de Ananias, os comentários ardentíssimos a que essa cena fantástica dava lugar… Com certeza isto circulou rápido e foi muita gente ver Saulo, deitado devido à cegueira, falar com ele. Quer dizer, aquilo deu efervescência.
Trato violento dele consigo mesmo: ficou três dias sem comer nem beber; jejum duro. Depois lhe caíram as escamas dos olhos e ele começou a ver.

A narração explica curiosamente que ele se confortou muito. Ou seja, não estava nem um pouco alquebrado, mas assim que se lhe deu o necessário ele se esticou, se alçou de novo e ficou disposto para a luta. Torna-se um líder que vai para as sinagogas e lugares públicos pregar o nome de Jesus contra o qual o sinédrio se levantara. No diálogo Igreja versus sinagoga houve uma espécie de mudança estrepitosa. É o líder da violência que muda com toda a sua violência para o outro lado.

Então tudo isto é uma operação violentíssima a qual precedeu ao apostolado de São Paulo, que foi o da violência não só por causa do seu feitio que marcou tudo quanto fez, mas porque ele realizou como só um homem capaz de fazer violência a si mesmo realiza. Ele enfrentou riscos que somente o violento enfrenta. Mas tudo isto não é nada perto da ação violenta no mundo antigo que representou o apostolado dele.
Aqui se repete a história: ele era um líder de um lado que parte para o outro. Quer dizer, uma espécie de posição chave que se desloca. Esse homem chave depois vai atuar na posição central do mundo antigo, que é a bacia do Mediterrâneo. E como a palavra de Deus era para ele semelhante a um gládio de dois gumes, que atinge até a juntura da alma com o espírito, Deus lhe tinha dado esta graça de fazer violência às almas e ser capaz de operar conversões extraordinárias, pela qualidade ou quantidade das pessoas que ele convertia, de maneira tal que ele abriu um sulco sobre o qual a Igreja Católica se desenvolveu. Ele depois deu o primeiro passo essencial para a derrubada do paganismo no Império Romano.

O contrário da “heresia branca”

A sua oração final tem algo de santamente violento em relação a Deus Nosso Senhor. Porque ele diz uma coisa que a maior parte dos hagiógrafos e teólogos “heresia branca”1 qualificaria de falta de humildade. Mas como é São Paulo, eles não têm remédio senão ficar quietos.
Na hora de morrer, seria tão legítimo que ele dissesse: “Senhor, tende piedade de mim e segundo a multidão de vossas misericórdias apagai os meus pecados!” Não. Ele afirmou: “Senhor, eu combati o bom combate, dai-me agora o prêmio de vossa glória!” (Cf. 2 Tm 4, 7-8).
É uma espécie de atestado brilhante que ele dá à sua própria fidelidade, e quase como quem diz: “Senhor, o cheque está preenchido e eu estou perto do guichê. Pagai-me! A minha vida valeu o prêmio que vossa justiça me prometeu.” Como um homem de consciência tranquila, ele se apresentou diante de Deus.
Isso tudo é o contrário de uma das facetas que a “heresia branca” mostra. Esta não gosta de conversões violentas, nem de cogitar de conversões de homens sábios ou que mudam as coisas. A “heresia branca” não considera o corpo de Igreja nem a sociedade humana como um conjunto, no qual há homens chaves, mas aprecia umas conversõezinhas individuais que são narradas assim: “Fulano estava com a alma muito agitada. E numa hora em que o rádio estava reproduzindo uma música melosa, com muita suavidade, ele se converteu. Ficou numa paz de alma, se recolheu, afastou-se do bulício de todas as coisas humanas, e agora não faz senão rezar.”

Eu até compreendo que uma conversão pudesse dar-se assim. Porque os caminhos de Deus são muitos. Mas apresentar a conversão como sendo só desse modo não é legítimo.
E essa espécie de trombada dada por São Paulo no adversário: primeiro na sinagoga e depois no Império Romano. A “heresia branca” não gosta dessas trombadas nem dos homens que tenham uma palavra a qual é como uma espada de dois gumes, que atinge a junção da alma com o espírito. Aprecia apenas as pessoas as quais dão uns conselhos que deixam os outros mais tranquilos, mais serenos…

Dom da santa violência

Havia um sacerdote em São Paulo – muito idoso, tipo do homem preclaro – do qual se dizia que era o diretor espiritual dos ateus da cidade. Tratava-se daqueles antigos ateus com um restinho de religião e que, quando ficavam aborrecidos com qualquer coisa, procuravam o padre e diziam-lhe: “Eu lamento não ter fé porque a religião é uma grande coisa.” E depois contavam aos outros: “Que palavra de unção o sacerdote me disse! Eu saí tranquilizado de lá.”
Que dizer, a palavra não é para converter, mas apenas para adoçar, um bálsamo que se esfrega sobre a ferida sem curá-la. É mais ou menos como uma pessoa que está com muita febre, e lhe concedem um torrão de açúcar para chupar; é uma coisa doce que distrai um pouco nas amarguras da febre.
Esse sacerdote atualmente é mais que nonagenário. Segundo uma informação muito segura que eu tive há poucos dias, ele está com o seu clergyman pronto, porque quer ser um dos primeiros padres de São Paulo a tirar a batina e pôr esse novo traje.O que devemos pedir a São Paulo?
É evidente que Nossa Senhora lhe obteve esse dom da santa violência, porque ele se defrontava com muitos obstáculos para derrubar. Naquela época de lutas era preciso derrubar o paganismo. Nós devemos pedir à Santíssima Virgem essa santa violência para destruir a Revolução, que é hoje muito mais poderosa do que foi o paganismo no tempo do Império Romano. De maneira que se pode compreender que os apóstolos dos últimos tempos tenham uma violência à São Paulo.

Aliás, sob alguns aspectos São Paulo pode ser considerado uma prefiguração dos apóstolos dos últimos tempos. Quando lemos aquela Oração Abrasada de São Luís Grignion e comparamos o que ali está dito com São Paulo, as analogias são enormes, uma porção de coisas se reportam umas às outras admiravelmente.

De uma cidade consagrada a São Paulo partiu o movimento contrarrevolucionário

Aqui estão alguns comentários a respeito de São Paulo. Ser-nos-ia lícito acrescentar uma outra consideração.
É uma coisa curiosa que de uma cidade consagrada a São Paulo tenha partido o movimento contrarrevolucionário no Brasil, que está se irradiando agora para outros países. Quer dizer, tem-se a impressão de que o Apóstolo São Paulo deseja que os nascidos na sua cidade tenham essa iniciativa. E por outro lado aquilo que se chamou outrora o espírito paulista tinha qualquer coisa do vigor, da força, da intrepidez, da iniciativa, do senso organizativo próprios àqueles que devem desenvolver uma larga ação de um certo sentido universal e imperialista. Os bandeirantes tinham como que uma prefiguração natural de algumas qualidades as quais um contrarrevolucionário deve possuir no plano sobrenatural.
Devemos hoje nos lembrar particularmente de rezar a São Paulo. É muito natural e justo para que ele nos dê esse seu espírito, ou seja, o dos apóstolos dos últimos tempos.v

(Extraído de conferência de 25/1/1965)

 

 

Mãe do gênero humano

A Redenção operada por Jesus Cristo nos veio através de Maria Virgem, e sua participação nessa obra de ressurreição sobrenatural do gênero humano foi tão essencial e profunda, que se pode afirmar ter Ela cooperado para nos fazer nascer para a vida da graça. Nossa Senhora é autenticamente nossa Mãe.

 

Dada a espessa ignorância religiosa que reina em nossos dias, não falta quem suponha que a Igreja dá a Nossa Senhora o título de Mãe do gênero humano simplesmente para descrever de certo modo os sentimentos afetuosos e protetores que Ela experimenta em relação aos homens. Como estes sentimentos são próprios às mães, por analogia Nossa Senhora seria também a nossa Mãe. E nós seríamos em relação a Ela pobres mendigos que, na sua generosidade, Ela protege como se fossem filhos.

Gravidade do pecado original

 

A realidade, entretanto, é muito outra. Não somos filhos de Nossa Senhora simplesmente por uma adoção afetiva. Ela não é nossa Mãe apenas no terreno fictício ou na ordem sentimental, mas com toda a objetividade na ordem verídica da vida sobrenatural.
Antes do pecado original, nossos primeiros pais, vivendo no Paraíso, foram criados por Deus para a glória celeste, que eles poderiam atingir transpondo os umbrais desta vida em um trânsito que não teria a tristeza tétrica da morte, mas o esplendor de uma glorificação.
O pecado original, entretanto, rompendo a amizade em que o gênero humano vivia com Deus, fechou aos homens a porta do Céu e obstruiu o livre curso da graça de Deus para os homens. Em outros termos, com a punição do pecado original, os homens perderam qualquer direito ao Céu e à vida sobrenatural da graça.
Se bem que não fosse extinto, isto é, perdesse a vida terrena, o gênero humano perdeu, pois, o direito à vida sobrenatural. E ele só poderia readquirir tal vida se apresentasse à justiça divina uma expiação proporcionada à enormidade de seu pecado.
Não vem a propósito, aqui, discutir a natureza deste pecado. É certo que todos os teólogos, sem exceção, afirmam nada ter o pecado de Adão de comum com o pecado da impureza, ao contrário de uma versão muito generalizada no povo. Mas a narrativa bíblica mostra claramente os requintes de rebeldia que agravaram sobremaneira o delito de nosso primeiro pai.
Aliás, um dos elementos para se aquilatar a gravidade de uma ofensa consiste em medir a dignidade da pessoa ofendida. Uma mesma impertinência quando dita a um irmão é muito menos grave do que quando dita a um pai. Um gracejo comum entre colegas poderia constituir uma grave irreverência se fosse feito a um Chefe de Estado, e assim por diante. Ora, Deus é infinitamente grande. Por aí não é difícil avaliar a gravidade do pecado original. Uma ofensa feita ao Infinito só poderia ser convenientemente resgatada por meio de uma expiação infinitamente grande. E não está no poder de homem, ser contingente por natureza e envilecido pelo pecado, oferecer ao Criador um tão valioso desagravo. Os pontos que nos ligavam a Deus pareciam, pois, definitivamente cortados e irremediável a decadência a que se atirara loucamente o gênero humano com o pecado.

 

Nossa Senhora transmitiu ao Salvador a natureza humana

 

Foi para remediar tão insolúvel situação que a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, encarnando-se no seio puríssimo de Maria Virgem, assumiu natureza humana sem nada perder de sua divindade, e o Homem-Deus, assim constituído, Se pôde apresentar à justiça do Pai como Cordeiro expiatório do gênero humano. Efetivamente, como Homem, Nosso Senhor Jesus Cristo podia oferecer uma expiação que fosse realmente humana. Mas em virtude da dualidade das naturezas n’Ele existentes, essa expiação, se bem que humana, tinha um valor infinito, pois que consistia na efusão generosa e superabundante do Sangue infinitamente precioso do Homem-Deus.

Assim, no sacrifício do Calvário, Nosso Senhor aplacou a justiça divina e fez renascer para o Céu e a vida sobrenatural da graça a humanidade, que estava absolutamente morta em tudo quanto se referisse ao sobrenatural. Se Deus, uno e trino, é nosso Criador, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, encarnando-Se, se tornou nosso Pai por um título muito especial, que é o da Redenção. Jesus, morrendo, deu-nos a vida sobrenatural. E quem dá a vida é verdadeiramente pai, no sentido mais amplo da palavra.
Se o gênero humano pôde beneficiar-se da Redenção é porque a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade se fez Homem, pois que o pecado dos homens deveria ser resgatado.

Ora, se Jesus Cristo assumiu natureza humana, fê-lo em Maria Virgem, e assim Esta cooperou de modo eminente na obra da Redenção, transmitindo ao Salvador a natureza humana que nos desígnios de Deus era condição essencial da Redenção. De mais a mais, Maria Santíssima ofereceu de modo inteiro, e sumamente generoso, o seu Filho como vítima expiatória, e aceitou de sofrer com Ele, e por causa d’Ele, o oceano de dores que a Paixão fez brotar em seu Coração Imaculado.
Assim, pois, a Redenção nos veio por Maria Virgem, e sua participação nessa obra de ressurreição sobrenatural do gênero humano foi tão essencial e tão profunda, que se pode afirmar que Maria cooperou para nos fazer nascer para a vida da graça. Pelo que Ela é, autenticamente, nossa Mãe. Autenticamente, acentuo, pois que não se trata aí de divagações sentimentais ou literárias, mas de realidades objetivas que, se bem que sobrenaturais, não deixam de ser absolutamente verdadeiras por isso mesmo são sobrenaturais.
Convidando os fiéis a adorar o Santíssimo Sacramento, a Igreja exclama na Sagrada Liturgia: Quantum potes, tantum aude, isto é, tem o arrojo de amar tanto quanto te permitir o teu coração.

 

Verdade teológica profundamente substanciosa

O mesmo se deve dizer a esta altura. Diante da maravilhosa realidade da maternidade de Maria em relação aos homens, realidade que constitui uma verdade séria, teológica, profundamente substanciosa, o homem deve romper decididamente para que se dilate plenamente os limites acanhados de seu coração, sem susto, e singre sem cuidado pelo oceano de amor que se descortina ante seus olhos. Não são indispensáveis, aí, os artifícios da retórica humana. Uma consideração madura da realidade será suficiente para encher o homem de amor.
De acordo com toda a Doutrina Católica, São Luís Grignion de Montfort aponta para as grandezas de Maria Santíssima. Demonstrando que Ela é Mãe, o que há de mais conveniente e de mais necessário até do que o conhecimento da suprema dignidade e da inexcedível misericórdia que Ela possui?
São Tomás de Aquino diz que Nossa Senhora recebeu de Deus todas as qualidades com que seria possível a Deus cumular uma criatura. De sorte que Ela se encontra no ápice da Criação, firmando seu trono acima dos mais altos coros angélicos e sendo inferior apenas ao próprio Deus, que, sendo só Ele infinito, está infinitamente acima de todos os seres, inclusive de Nossa Senhora.
Costuma-se dizer que Nossa Senhora brilha mais do que o Sol, tem a suavidade da Lua, a beleza da aurora, a pureza dos lírios e a majestade do firmamento inteiro. Muita gente supõe que tudo isso não passa de hipérboles. Entretanto, essas comparações pecam por sua irremediável deficiência. O Sol, a Lua, a aurora e todo o firmamento são seres inanimados e estão, portanto, colocados na última escala da Criação. Não é admissível que Deus os fizesse tão formosos, dando ao homem dons menores. E, por isto mesmo, a mais apagada das almas das pessoas mortas em paz com Deus tem uma formosura que excede incomparavelmente a de todas as criaturas materiais.

Que dizer-se, então, de Nossa Senhora colocada incalculavelmente acima não só dos maiores Santos, mais ainda dos Anjos mais elevados em dignidade junto ao trono de Deus? Um caipira que fosse assistir à solenidade da coroação do Rei da Inglaterra, voltando aos seus pagos natais, possivelmente não encontrasse outros termos para explicar a magnificência daquilo que viu, senão afirmando que foi mais belo do que as festas em casa do Nhô Tonico, o homem menos pobre da zona. Se o Rei da Inglaterra ouvisse isto, que outra coisa poderia fazer senão sorrir? Pois nós, quando procuramos descrever a formosura de Nossa Senhora com os termos escassos da linguagem humana, fazemos o mesmo papel… e Ela também sorri.

Único canal necessário

Não espanta, pois, que seja verdade de Fé que Deus se compraz tanto em Nossa Senhora que um pedido feito por meio d’Ela é sempre atendido, ainda que não conte senão com o apoio d’Ela. E que se todos os Santos pedissem alguma coisa sem ser por meio d’Ela nada conseguiriam. Porque, como diz Dante, querer rezar sem Ela é o mesmo que querer voar sem asas…
Assim, pois, todas as graças nos vêm de Nossa Senhora, e é Ela a Medianeira universal de todos os homens junto a Nosso Senhor Jesus Cristo.
Mas se todas as graças nos vêm d’Ela, e se nossa vida espiritual não é senão uma longa sucessão de graças a que correspondemos, ou renunciamos a ter vida espiritual, ou devemos compreender que esta será tanto mais suave, mais intensa e mais perfeita, quanto mais próximos estivermos junto daquele único canal de graças que é Nossa Senhora. Deus é a fonte da graça, Nossa Senhora o único canal necessário, e os Santos meras ramificações, aliás veneráveis e dignas de grande amor, do grande canal que é Nossa Senhora.
Queremos ter a graça inestimável do senso católico? Queremos ter a virtude inapreciável da pureza? Queremos ter o tesouro sem preço que é o dom da fortaleza, queremos ser ao mesmo tempo mansos e enérgicos, humildes e dignos, piedosos e ativos, meticulosos em nossos deveres e inimigos do escrúpulo, pobres de espírito se bem que jungidos às riquezas do mundo, em uma palavra, fiéis e devotos servidores de Nosso Senhor Jesus Cristo? Dirijamo-nos ao trono que Deus deu a Nossa Senhora, e, no recesso amoroso da Igreja Católica, nossa mãe, peçamos a Nossa Senhora, também nossa Mãe, que nos faça semelhantes a seu Divino Filho.v

(Extraído de O Legionário n. 378 de 10/12/1939)

Auxilium Christianorum na via gloriosa dos becos sem saída

 

Ao considerar a dolorida e gloriosa avenida dos becos sem saída por ele percorrida, Dr. Plinio se perguntava: “Se Nossa Senhora me desse a escolher esta via ou outra qualquer, qual eu preferiria?” E sua resposta seria: “Minha Mãe, se Vós me derdes força, escolho a avenida dos becos sem saída!” Avenida do inexplicável, da aparente catástrofe, da derrota, do arrasamento, mas da vitória que se afirma. Porque todo caso tem saída. Às vezes não vemos a solução, mas Ela está dando uma saída monumental.

Há uma pequena imagem de Nossa Senhora Auxiliadora que nos acompanha desde há muito tempo. Eu a deixava na sede da Ação Católica de São Paulo, enquanto afiávamos os instrumentos para desferir o “Em Defesa da Ação Católica”.

Conduzida à Sede do “Legionário” para que lutasse dentro da trincheira

Não posso me esquecer do salão onde a Ação Católica, a dois passos do meu escritório de advocacia no mesmo prédio, tinha a sua sede. Ali, numa peanha, estava essa imagem a qual eu mesmo comprei e instalei, e que, com minhas próprias mãos, levei depois para a sede do Legionário quando tivemos de entregar a Ação Católica ao adversário, para que a Rainha, saída de seu trono, lutasse dentro da trincheira. Lembro-me, e com quanta emoção, de que, entregue o Legionário, essa imagem foi levada para nossa sede da Rua Martim Francisco, 669, onde ocupávamos exclusivamente o andar térreo e tínhamos no fundo um oratoriozinho, no qual a imagenzinha possuía o seu altar; ali nós rezamos a Nossa Senhora de um modo ininterrupto até que a hora da reconquista começasse.
Tendo sido acrescido o nosso contingente, passamos a ocupar uma sede no sexto andar da Rua Vieira de Carvalho; para lá levamos a imagem, e obtivemos um retábulo que se encontra hoje na capela da Sede do Reino de Maria1. Na sede da Vieira de Carvalho a imagem foi entronizada e diante dela foram rezadas inúmeras Missas, distribuídas Comunhões, num movimento intenso de piedade, até que a reconquista marcou um outro passo.
Deixando dois andares num prédio de apartamentos, passamos para um palacete da Rua Pará. Para essa nova sede, nós mesmos levamos a imagem, à noite, num automóvel, rezando durante todo o tempo do percurso, e a instalamos no seu altar, o mesmo que ela ocupava na Rua Vieira de Carvalho. Ali esteve ela até o momento em que passou para a maior das sedes, até agora, do nosso Movimento, a da Rua Maranhão. Ali ela é objeto de nossa contínua veneração.
Não é uma obra de arte, mas uma imagenzinha de gesso dessas fabricadas em série e que se encontram por toda parte, de um tipo religioso chamado sulpiciano, que é bem conhecido e não vou descrever aqui.

 

Algo de virginal e ao mesmo tempo materno

 

Por que motivo eu julguei fazer um achado encontrando essa imagem? Pareceu-me de uma expressão de fisionomia, de uma serenidade interior toda ela decorrente da temperança. A temperança é a virtude cardeal pela qual se tem por cada coisa o grau de apreço ou de repúdio que é proporcional a todas as circunstâncias. Nunca se quer uma coisa exageradamente nem menos do que merece, e jamais se detesta algo exageradamente nem menos do que merece. A completa execração para com as coisas inteiramente execráveis faz parte da virtude da temperança.
Essa disposição de alma me pareceu reluzir muito nesta imagem. Discretamente, ela é tão calma, tão senhora de si, está de tal maneira pronta a tomar atitude diante de qualquer coisa de modo inteiramente proporcionado, é tão desapegada de si que me pareceu o próprio símbolo do equilíbrio que é o corolário da virtude da temperança. E por isso mesmo com algo de virginal. Ela tem qualquer coisa de puro, de virginal, que me encantou, e ao mesmo tempo algo de materno por onde parece estar olhando para o filho, sorrindo e pronta a acionar o cetro de Rainha decisivo, segundo o pedido que se faça.
Auxílio dos cristãos verdadeiramente e com esta simbologia: Nossa Senhora com a coroa aberta porque em presença do rei ninguém usa coroa fechada. O Menino Jesus está de coroa aberta, mas deveria ser fechada! Ele Se encontra no braço d’Ela com os bracinhos abertos, sorrindo. Vê-se que Maria Santíssima pediu e Ele sorriu, os braços abertos são fruto da prece de sua Mãe. Nossa Senhora está olhando comprazida por ver como o pobre filho d’Ela, ajoelhado ali, se encanta observando o Filho d’Ela por excelência sorrir e abrir os braços. É o auxílio: Aquela que nos consegue d’Aquele que é o Autor, a fonte última de todas as graças, tudo aquilo que nós pedimos. Ela pareceu-me ao mesmo tempo muito régia, mas muito simples. E tudo isto junto de tal maneira que a expressão global da imagem me agradou enormemente.

 

 

Lírio nascido do lodo que floresce à noite, durante a tempestade

 

Por que, falando da devoção a Nossa Senhora Auxiliadora in genere, eu passei, de repente, para as várias etapas dos atos de piedade realizados em função ou em presença desta imagem e, de algum modo, para a história da TFP? A fim de marcar que o sentido profundo de todas as nossas derrotas era um recuo da devoção a Maria Santíssima como fato que se exprimia por todo o Brasil, mas também que a nossa reconquista era uma reconquista da devoção a Nossa Senhora. E temos a alegria de poder afirmar que todo o terreno por nós reconquistado pelo Brasil, passo a passo, foi reconquistado para Ela. Reconquistado para Ela é dizer pouco! Foi reconquistado por Ela! Se a todo momento a Virgem Maria não nos tivesse ajudado, não houvéssemos recorrido a Ela, sentindo o seu apoio maternal, não teríamos feito coisa alguma. Quando a TFP chega aos seus píncaros e, por exemplo, considera os belos resultados que aqui nesta noite foram proclamados, ela deveria dizer que esses são os feitos de Nossa Senhora nas regiões sertanejas do Brasil.
Que espécie de feitos?
Sobretudo, e antes de tudo, os realizados nas nossas próprias almas. Quer dizer, que haja uma organização como a TFP, com um número de membros absolutamente falando reduzido, mas proporcionalmente enorme de sócios e cooperadores, e agora nesta semana a nova onda de correspondentes com esta mentalidade, estes costumes, este estilo de piedade, em toda a borrasca que existe em torno de nós, isto é bem o lírio nascido do lodo que floresce à noite, durante a tempestade. Mas quando se diz “lírio nascido do lodo”, não se recorre à metáfora senão para afirmar que está acontecendo algo de inteiramente inverossímil, inexplicável como a edelvais que brotou no Deserto do Saara. Foi, portanto, a Mãe de Misericórdia, a Medianeira de todos os favores que apresentou nossa prece ao seu Divino Filho e obteve que fosse atendida.

 

Co-Redentora do gênero humano

 

 

Qual prece? Antes de tudo a oração pela qual nós Lhe pedimos que nos dê a graça de cada vez mais amá-La, sermos d’Ela, confiarmos n’Ela, nos unirmos a Ela e que Ela se una a nós. A grande e

fundamental prece é que Maria nos torne devotos d’Ela.

Vejo alguém que poderia dizer: “Mas então fica encaminhado para segundo plano a devoção suprema, o culto de latria a Nosso Senhor Jesus Cristo? Que revolta é esta: o culto de dulia substituindo o culto de latria?”Fico com vontade de responder: “Que asneira é essa?” Nossa Senhora é o canal necessário, único, para chegar a Nosso Senhor Jesus Cristo. E se nós de tal maneira aplaudimos e veneramos a Santíssima Virgem é porque adoramos Aquele a Quem Ela conduz. Ela é o caminho pelo qual Ele veio a nós. N’Ela Jesus Cristo Se encarnou para depois remir o gênero humano; Ela é a Co-Redentora do gênero humano. Quando subiu ao Céu, Ele deixou sua Mãe para atenuar um pouco a tristeza e o imenso vazio que ficara na Terra. Tendo tudo isto em vista, se nos agarrarmos bem a Nossa Senhora, iremos até Ele; se não nos agarrarmos à Santíssima Virgem com todas as forças de nossa alma, aonde iremos? Para baixo! E nós sabemos bem quem está embaixo…

Carta de um sacerdote jesuíta

Lembro-me que nosso Grupo estava num de seus momentos mais cruéis, na luta do “Em Defesa”. Eu tinha tido uma pequena esperança de que uma editora de Montevidéu, de grande expressão naquele tempo, publicasse o “Em Defesa” em espanhol. Ela me enviou uma carta, pedindo licença a fim de traduzir a obra para o espanhol, e eu tinha concordado. Mas a editora me remeteu outra missiva, dizendo que não se interessava mais pela publicação; era naturalmente a “máfia” que havia chegado até lá. Pouco depois recebo outra carta de Montevidéu. Abro-a pensando: Que novo dissabor será esse? Era escrita com uma letra tremida de alguém que parecia enxergar pouco e empunhava mal a caneta.
Tratava-se de um velho sacerdote jesuíta que eu não conhecia, o qual dizia na sua carta, resumidamente, o seguinte: “Por mais que os senhores sejam combatidos, eu os prezo muito e por causa disso lhes dou aquilo que posso conceder: as minhas orações, em primeiro lugar; em segundo lugar, um conselho: Os senhores valem o que valem porque são muito devotos de Nossa Senhora. Sejam cada vez mais devotos e não há bem que não lhes acontecerá; não diminuam jamais em um grau que seja essa devoção, porque do contrário todo o mal poderá vir sobre os senhores!” Eu dobrei a carta e pensei: “Este velho moribundo regou com um pouco de consolo a alma daquele que está em plena luta.”
Quero crer que a piedosa alma desse verdadeiro filho de Santo Inácio esteja aos pés de seu Fundador no Céu, gozando da visão beatífica e olhando para Nossa Senhora. Peço a ele que reze por todos nós, para que sigamos esse conselho. Mas para isso, meus caros, é capital um ponto: não basta não decair na devoção a Nossa Senhora; ou se sobe cada dia mais, ou se para, e aquilo que para decai. Não tenhamos medo de exagerar, desde que fiquemos fiéis à Doutrina Católica em matéria de culto a Santíssima Virgem, porque De Maria nunquam satis, diz São Bernardo: sobre Nossa Senhora jamais há o que baste. Ela saberá depois premiar.

 

Se Judas tivesse procurado Nossa Senhora, Ela o receberia com bondade

 

 

Nossa Senhora Auxiliadora dos Cristãos… Para Maria Santíssima não é glória maior ser Mãe de Deus, Co-Redentora do gênero humano, concebida sem pecado original? É claro! Por que, então, tanta insistência em torno desta invocação Nossa Senhora Auxiliadora?
Compreende-se. Como Ela é Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo e é nossa Mãe, está permanentemente disposta a nos ajudar em tudo aquilo que precisamos. São Luís Maria Grignion de Montfort tem uma expressão que parece exagerada, mas está absolutamente dentro da verdade: ele diz que se houvesse no mundo uma só mãe reunindo em seu coração todas as formas e graus de ternura que todas as mães do mundo teriam por um filho único, e essa mãe tivesse um só filho para amar, ela o amaria menos do que Nossa Senhora ama todos e cada um dos homens. De maneira que Ela é de tal modo Mãe de cada um de nós, quer-nos tanto por desvalido, desencaminhado, espiritualmente trôpego que seja e nada valha, que se nos voltarmos para Ela seu primeiro movimento é de amor e de auxílio. Maria Santíssima nos acompanha antes mesmo de nos voltarmos para Ela, pois tem ciência do que acontece com todos os homens, em todos os lugares. Ela me vê aqui falando d’Ela, e eu ouso esperar que, pela intercessão de nossos Anjos no Céu, Ela sorria. Ela conhece, portanto, nossas necessidades e é por intercessão d’Ela que temos a graça de nos voltarmos para Ela. É Ela que pede a Deus que tenhamos essa graça, e Deus no-la concede. Nós nos voltamos e a primeira pergunta que Ela faz é: “Meu filho, o que queres?”

á vi uma afirmação que não era de um grande teólogo, mas tenho a impressão de que é verdadeira: se o próprio Judas Iscariotes, depois de haver vendido a Nosso Senhor e estar caminhando para o lugar maldito onde ele se enforcou, tivesse tido um momento de devoção para com a Santíssima Virgem e rezado a Ela, teria recebido um apoio. Se houvesse procurado por Ela e dito: “Eu não sou digno de chegar próximo de Vós, de Vos olhar, nem de me dirigir a Vós, sou Judas, o imundo… Mas Vós sois minha Mãe, tende pena de mim!”, Ela teria recebido com bondade o homem cujo nome é sinônimo de torpeza mais baixa e mais asquerosa, e que ninguém pronuncia sem extremos de nojo, por assim dizer, sem esgares de nojo: Judas Iscariotes… Até este!

A bela avenida dos becos sem saída

 

Mas nós sentimos dificuldade em ter isto sempre em vista. Por quê? Porque não vemos e, na nossa miséria, muitas vezes somos daqueles que não creem porque não veem. Nós não duvidamos, mas esquecemos. Sentimo-nos tão deslocados que dizemos: “Mas será mesmo? Aconteceu-me isto, aquilo, aquilo outro. Eu pedi a Ela e não fui socorrido; por que vou crer que agora serei ajudado? Mãe de misericórdia… para mim, às vezes sim, mas às vezes não…”
É nessas horas que se deve dizer: “Auxilium Christianorum, ora pro nobis!” Nos momentos em que não compreendemos, não temos noção de como será a saída do caso,

do que vai acontecer, precisamos repetir com insistência: “Auxilium Christianorum! Auxilium Christianorum! Auxilium Christianorum!” Porque todo caso tem saída. Nós às vezes não vemos a solução, mas Ela está dando ao assunto uma saída monumental.
Quando lembro a história de nossas catástrofes, nossos reerguimentos, nossa dolorida e gloriosa avenida de becos sem saída, voltando-me para trás eu me pergunto: “Se Ela me desse para escolher esta via dos becos sem saída ou outra qualquer das que eu imaginava, qual preferiria?” Eu teria respondido: “Minha Mãe, se Vós me derdes força, escolho a avenida dos becos sem saída!” Avenida do inexplicável, da aparente catástrofe, da derrota, do arrasamento, mas da vitória que se afirma. Como é bela a avenida dos becos sem saída! Por quê? Porque é a avenida triunfal de Nossa Senhora. Ela abre os becos sem saída, transforma esta coisa monstruosa – uma avenida esquartejada em becos – e faz disso uma avenida. Compreende-se a providência de Maria Santíssima. É uma verdadeira maravilha!

Portanto, a esse título muito especial, devemos repetir sempre: “Auxilium Christianorum!” Somos tão poucos, tão perseguidos, tão isolados, muitas vezes tão provados interiormente, há tanta coisa que se passa dentro de nós mesmos, em torno de nós, sentimos tanto adversário que ruge, há toda espécie de distâncias, que precisamos dizer constantemente: “Auxilium Christianorum! Auxilium Christianorum! Auxilium Christianorum!”, para ficar claro que a vitória foi de Nossa Senhora. Nossa insuficiência proclama a vitória d’Ela, canta a glória d’Ela. Como não poderemos ficar entusiasmados com a ideia de que Ela nos fez tão poucos para que Ela fosse tão largamente glorificada? É evidente! Esta prece deve estar nos nossos lábios em todos os momentos: “Auxilium Christianorum, ora pro nobis! Auxilium Christianorum, ora pro nobis! Auxilium Christianorum, ora pro nobis!”

Batalha de Lepanto

Temos um exemplo disso na Batalha de Lepanto, tão ligada à festa de hoje, na qual se deu isto: a esquadra católica estava enormemente desproporcionada em relação à esquadra maometana. Já era uma coisa para não se entender. Não seria mais compreensível que Nossa Senhora tivesse reunido uma esquadra católica potente, magnífica, para esmagar aqueles ímpios seguidores de Mafoma? Porém Ela não fez isso. Era uma esquadra pequena, talvez quase se pudesse dizer raquítica.
Surge a esquadra muçulmana que forma a meia-lua e vai apertando os católicos. A batalha se inicia e há vários reveses dos católicos. Em certo momento, estes pulam para a nau capitânia inimiga e começam a atacar. Há alguns êxitos, a esquadra maometana foge. Eles mesmos não compreendem bem por que fugiam. Mas em anais dos próprios maometanos, que foram encontrados, está escrito: “A esquadra fugiu porque uma Dama terrível apareceu no céu e nos olhava com ar de ameaça tal que…” Não foi bom que os católicos fossem tão poucos, passassem por tantos riscos, lutassem como heróis de um modo mais ou menos inútil porque os outros eram muito mais fortes? Mas eles não deixaram de confiar em NossaSenhora. E o resultado é que a Virgem Maria apareceu e afugentou os inimigos. Não há nada mais belo.

 

 

“Houve um homem enviado por Deus, cujo nome era João”

Encerremos com um dado final. Desviemos nossos olhares de Lepanto e os voltemos para os esplendores do Vaticano. Numa sala, um Papa santo – São Pio V – preside uma reunião de cardeais. Mas o melhor de sua atenção está posto naquela esquadra que, com uma dificuldade diplomática enorme, ele conseguiu reunir. O grosso da esquadra era de naus espanholas, mas que o Filipão2 levou demais tempo em mandar. De outro lado, um pouquinho de navios venezianos, da Sereníssima República de Veneza, e alguns naviozinhos da Santa Sé. Tudo junto colocado sob o comando de Dom João d’Áustria. Os navios da Santa Sé eram comandados pelo Príncipe de Colonna. A esquadra vai para aquelas regiões e o Papa pensa, pensa… Em certo momento, ele se afasta de sua sala aonde estava havendo a reunião dos cardeais e se põe junto à janela, e se vê um tercinho que desce de suas mãos. Ele reza o terço inteiro, volta e diz: “Uma grande vitória foi ganha por Dom João; a esquadra cristã está vencedora!”
Dom João combateu, foi um grande guerreiro, um herói. Em sua sepultura, no Escorial, que eu tive a alegria de ver, está escrita como epitáfio uma frase que São Pio V disse dele: “Fuit homo missus a Deo, cui nomen erat Iohannes!” O que o Evangelho diz de São João Batista, ele aplicou a Dom João d’Áustria: “Houve um homem enviado por Deus, cujo nome era João (Jo 1, 6).”
Mas quem obteve que a Rainha do Céu cortasse as imensidões vazias e com o olhar ganhasse a batalha? O Rosário rezado por São Pio V, que dizia a Nossa Senhora, “Auxilium Christianorum!”
Meus caros: rezemos, portanto, “Auxilium Christianorum! Auxilium Christianorum! Auxilium Christianorum!” em todas as circunstâncias de nossa vida. E na hora de morrer, quando estivermos no último alento e ainda dissermos “Auxilium Christianorum”, daí a pouco o Céu se abre para nós.

 

(Extraído de conferência de 23/5/1984)

1) Situada em São Paulo, na Rua Maranhão, 341, Bairro Higienópolis.
2) Filipe II, Rei de Espanha.

Contemplar o mundo maravilhoso das almas

Comentando alguns aspectos da vida de Santo Ampélio, o Ferreiro, Dr. Plinio mostra a importância de se conhecer as almas para admirar em cada uma aquilo que é reto, segundo Deus, o que ela seria se fosse inteiramente fiel, e o grau de fidelidade que dentro dela existe e a torna um reflexo especial do Criador.

No dia 14 de maio celebra-se a memória de Santo Ampélio, o Ferreiro. Temos para comentar uma ficha sobre a biografia desse Santo1.

Com um ferro em brasa expulsou o demônio

Santo Ampélio, o Ferreiro, século V.
A vida de Santo Ampélio, apelidado “o Ferreiro”, é toda lendária. Conta-se que era originário do Egito, ferreiro de profissão. Desejando a perfeição, procurou os solitários da Tebaida, a eles prestando serviços variados, inclusive de sua profissão.
Certa vez, o demônio transformou-se numa jovem impudica e foi tentá-lo. O ferreiro com um ferro em brasa nas mãos avançou para queimá-la, espantou-a para sempre.
Já velho, deixou a Tebaida e foi para as imediações de Gênova, onde levou vida de santificação e contemplação. Santo Ampélio é o padroeiro dos ferreiros.
Bem entendido, afirmar ser a vida dele toda lendária é um modo de dizer… Se está canonizado pela Igreja, tem-se a certeza de que ele existiu e de fato foi Santo. Muitas vezes aquelas canonizações primeiras não eram feitas regularmente. Havia uma inspiração do Espírito Santo a todos, a qual fazia com que a voz do povo considerasse alguém como santo. E então era de fato santo. Mas aí estava também engajada a autoridade da Igreja, embora sem o processo regular de canonização que se faz hoje em dia.

 

Isolamento, silêncio e estranhos visitantes

Nós podemos imaginar mais ou menos o que seria a vida de Santo Ampélio, como ferreiro ambulante na Tebaida do século V.
Nesse século precisamente a instituição eremítica estava ganhando o seu verdadeiro feitio. Porque durante os séculos anteriores, sobretudo o III e o IV, nos Impérios Romanos do Ocidente e do Oriente se perseguiam muito os católicos. A vida deles era extremamente difícil. E muitos fugiam para o deserto a fim de não serem presos, torturados. Ali eles passavam, às vezes, uma vida longa, até noventa anos ou mais, na tranquilidade absoluta do ermo, rezando a Deus e pedindo pela Igreja Católica de tal maneira perseguida.
Mas nesta Terra o Criador não permite que a vida de ninguém seja sem provações grandes. E até provações heroicas, sofridas por pessoas que Deus ama mais e destina a prestarem um serviço especial à Igreja. Não devemos supor que o único martírio que esses eremitas, indo para a Tebaida, sofriam era o do isolamento e do silêncio, o que constituía um martírio. Pode-se imaginar, no homem com instinto de sociabilidade e, portanto, tendência a comunicar-se, o que representa de sofrimento passar quarenta, cinquenta anos sem ver absolutamente ninguém, a não ser um ou outro raro visitante que aparecia de vez em quando, e que não se sabia bem quem era. Às vezes tratava-se de uma alma necessitada que ouvia falar daquele eremita e, então, empreendia uma viagem arriscada para lhe pedir orações. Porém muitas vezes era algum bandido ou criminoso político que estava fugindo da polícia ou das autoridades, algum lunático, algum maníaco ou até um possesso do demônio que estava correndo por aquelas zonas.

 

O homem é feito para a luta e para a dor

É preciso acrescentar esta coisa curiosa e real. Os lugares muito ermos, isolados, se não são bastante abençoados, às vezes são especialmente infestados pelos demônios. Por exemplo, certos baixios, certas grutas muito profundas, lugares aonde nunca vai ninguém, pântanos, locais malcheirosos, etc., são lugares que facilmente os demônios procuram como permanência habitual, de onde eles saem para fazer infestações. Esses eremitas se situavam onde podiam. Às vezes lugares lindos, às vezes feios, comuns. Eles estavam ali, portanto, sofrendo todos os inconvenientes do isolamento, inclusive certa presença preternatural.

Mas isso não é nada. O homem é de tal maneira feito para a luta e para a dor que quando ele foge delas e se põe no deserto, dentro de sua alma surgem os problemas, nascem a luta e a dor. E acaba, então, havendo as provações interiores que são, muitas vezes, mais terríveis que as provações exteriores.

 

O que é uma provação interior? Um eremita vai para o ermo; nos primeiros tempos uma alegria, uma consolação, as graças de Deus inundam sua alma. Aos poucos aquilo vai se afastando e perde toda a unção primeira, ele se sente isolado, triste, deprimido, abatido e com mal-estar. De repente, começam as tentações a zumbir dentro de sua alma. E com as tentações iniciam-se, às vezes, as infestações diabólicas.

A pior de todas as tentações é a tentação contra a Fé. Ele é convidado pelo demônio a pôr em dúvida a própria Religião Católica. Os demônios aparecem, às vezes, aos eremitas e fingem festins de Roma, de Alexandria e de outros lugares onde eles estão. Os eremitas têm alucinações. Tudo acontece.

Desejo de oferecer a Deus o holocausto e a solidão

No século V, o número de eremitas era muito grande, já não causado pelo medo das perseguições – que acabaram com Constantino, com a invasão de Roma pelos bárbaros –, mas determinado pelo temor de se perderem nas cidades e pela vontade de oferecerem a Deus o holocausto da sua solidão. E houve tantos e tantos nessa época que se chegou a dizer que o deserto estava formigando de eremitas.
Em todas as épocas da Civilização Cristã houve eremitas em grande quantidade. A nossa é a infeliz época sem verdadeiros eremitas.
Costumo ir com frequência, à tarde, na Igreja da Luz, fazendo minhas orações na ida e na volta. E nunca deixo de me lembrar que, nas histórias de São Paulo, se conta ter sido o bairro da Luz povoado por eremitas, que moravam nas voltas e contornos do Rio Tietê, tornadas particularmente poéticas pela névoa que, em certas épocas do ano, existia naquela zona mais úmida, e pela quantidade enorme de garças que voavam de um lado para outro e encantavam Frei Galvão, quando ele passava por lá. Quão diferente é o bairro da Luz de hoje em dia!

 

Conhecedor dos esplendores espirituais do deserto

Os eremitas, tão numerosos no século V, eram servidos, às vezes, por ambulantes que iam levar-lhes coisas, faziam caridade para eles, etc.
E Santo Ampélio, levava uma vida curiosa, com esta forma única de turismo: o das almas. Um homem que é ferreiro de profissão vai gratuitamente ajudar tal eremita; mais adiante há um que fez tal milagre, mais além um outro que se destaca por tal virtude. Assim ele vai conhecendo alma por alma, revisitando os itinerários conhecidos e prestando serviços de bater ferro, ou fazer alguma peça de que eles precisavam para facilitar sua vida material, etc.
Provavelmente sem falar, recebendo apenas do eremita algum conselho – se ele pedisse – para sua própria vida espiritual. E depois seguia adiante. Esse é um verdadeiro Guide Bleu – o grande guia de turismo da Europa – dos esplendores espirituais do deserto. “Se quer conhecer alguém que tem o dom da profecia, vire por ali e desça lá, naquela gruta há um velho que possui esse dom; se deseja conhecer um que é heroico nas penitências, suba até o alto daquele morro onde vive um jovem que se flagela de um modo admirável. Mais adiante um eremita que se levanta do solo, quando saúda Nossa Senhora, ao meio-dia. E ao chegar a noite, vai ver tal eremita dormir na serenidade, enquanto uivam as feras lá fora; trata-se do grande eremita tal, cujo sono é edificante e traz paz a todo mundo que o contempla.”

Os verdadeiros monumentos deste mundo são as almas

 

Provavelmente Santo Ampélio, com seus dons de ferreiro, foi um visitador, um turista da santidade pelos desertos. E era movido, com certeza, pelo encanto, pelo entusiasmo que lhe causava o contato com almas tão extraordinárias.
Se essa hipótese – perfeitamente plausível – é verdadeira, então nós sabemos qual virtude podemos imitar de um Santo tão desconhecido no geral de sua biografia. Devemos pedir-lhe que nos obtenha uma dupla graça: termos discernimento para perceber como são as almas, e admirar em cada alma aquilo que é reto, segundo Deus, o que ela seria se fosse inteiramente fiel e o grau de fidelidade que dentro dela existe e a torna um reflexo especial do Criador. Saber também discernir nas almas o que é ruim e, a contrario sensu, ficar amando o que é bom.
Eu lhes garanto que se uma pessoa passasse sua vida apenas estudando e conhecendo as almas, levaria uma vida muito mais entretida do que se fizesse qualquer outra coisa. Certamente mais do que tomar um avião e ir para Nova Deli, de lá para Xangai, depois a algum ponto da América do Sul, do Norte ou da Suécia, entrando em aeroportos, hospedando-se em hotéis, vendo monumentos e ficando com a alma vazia. Os verdadeiros monumentos deste mundo são as almas dos homens. E não há nada mais belo, mais interessante, mais atraente do que conhecer as almas.

 

Conhecer os homens “sem alma”

Confesso que o pouquinho que a experiência do contato com as almas me tem proporcionado faz com que, nas poucas viagens que fiz, o que me interessa mais é conhecer as almas; inclusive as almas dos homens “sem alma”, pois até essas são interessantes de conhecer, a contrario sensu.
Lembro-me que uma vez viajei do Rio para Paris, ao lado de um holandês que vinha da Indonésia e ia descer em Londres, e que não tinha alma.
Olhei para ele de soslaio e pensei: “Mas que horrível. Isso é uma longilínea posta de carne, ele não tem alma! O que é esse homem?!”
Deve ser interessante conversar para conhecer a alma de um homem “sem alma”. Então eu fiz um comentário com ele a respeito de qualquer coisa sobre a rapidez do avião, e conversamos em alguns trechos da viagem. Fiquei vendo o vazio de um homem completamente sem alma que se sentia bem no corpo – porque era evidente que ele tinha uma invejável saúde, e fazia disso sua alegria –, mas ficava sempre comprimindo uma alma que persistia em voltar e dizer-lhe que não estava satisfeita. De maneira que havia nele, ao lado de muita saúde, horas de tanta tristeza, de tanta amargura e de tanto vazio, que disso fiz para mim um tema de meditação e – eu lhes garanto – entretenimento.
Mais ainda, quando converso com uma pessoa, com duas, às vezes com duzentas, eu me entretenho em olhar para as almas. Sempre aprendo alguma coisa e saio com melhor capacidade de conhecer a minha alma, conhecendo a alma dos outros.
Então, aqui está um convite para todos começarem a ser amatoris animarum, da categoria de gente que ama as almas, gostando de conhecê-las.

 

Alegria de Nosso Senhor quando olhava para a Santíssima Virgem

 

Haveria algo na vida de Nosso Senhor que seria um exemplo adequado para isso?
Toda a vida do Redentor é isso. Em todas as coisas que fazia, nota-se um conhecimento perfeito das almas com as quais Ele tratava, e tudo ajustado às condições e às necessidades dessas almas.
Quer dizer, Ele estava continuamente com a mente posta no Padre Eterno e nas almas com as quais tratava, considerando-as logo no primeiro olhar, como, por exemplo, aquele moço rico. Diz o Evangelho que Nosso Senhor o olhou e o amou. Quer dizer, viu a alma dele e o amou por causa da sua fidelidade. Quando Jesus tratava com os fariseus, era a alma que Ele via e conhecia até o fundo. E por isso, com sua sabedoria, sua santidade infinita, remexia até o fundo os acontecimentos dos povos com que Ele tomava contato.
Podemos imaginar qual era a alegria de Nosso Senhor quando olhava para Nossa Senhora e via a alma perfeitíssima d’Ela. Não conseguimos ter ideia do gáudio que Ele tinha com isto. Entretanto, podemos ter uma noção indireta ao ver a imagem de Nossa Senhora de Fátima peregrina na Sede de seu Reino, quando reflete algo da alma da Santíssima Virgem. De tal maneira ela encanta que atrai multidões. Na Venezuela, quarenta mil pessoas foram ver a imagem, não certamente para olhá-la na sua materialidade, mas para observarem uma expressão de alma numa imagem.

 

Devemos amar as almas desinteressadamente e acabar com o “eu, eu, eu”

 

Se víssemos Nossa Senhora pessoalmente, qual seria nossa impressão, nossa sensação? É algo simplesmente incalculável!

Isso – num grau levado a que auge? – Nosso Senhor tinha quando olhava para a Santíssima Virgem. E Nossa Senhora tinha também quando olhava para Ele. E quando os olhares se encontravam, Ele dizia: “Minha Mãe!” e Ela: “Meu Filho!” O que entrava ali de comércio de almas! É a relação mais nobre, mais alta, mais perfeita havida em toda a História. Foi essencialmente uma relação de almas.
Então, procurem conhecer as almas, interessar-se por elas.

Existe um obstáculo para isto? Existe. É quando estamos tratando com os outros e não pensamos nas almas deles, mas em nós mesmos; aí ficamos incapazes de conhecê-los. Quando a pessoa analisa os outros, não para ver como são, mas para observar que efeito está produzindo neles, se a estão considerando prestigiosa, fina, inteligente, enfim a cavalcata das vaidades, ela desce um véu, só olha para si e não conhece ninguém.
É preciso amar as almas desinteressadamente, querer conhecê-las como reflexo de Deus, acabar com o “eu, eu, eu”, com a ideia fixa de si mesmo. Contemplar esse maravilhoso mundo das almas, do qual Santo Ampélio, o Ferreiro, foi muito presumivelmente um modelo, é o tema da meditação de hoje.

(Extraído de conferência de 14/5/1976)

De inquisidor a apóstolo do Peru

Felipe II, tendo conhecido um homem bom e virtuoso como São Toríbio de Mongrovejo, retirou-o das doçuras da sua piedade e nomeou-o Presidente da Inquisição na Espanha. Exercendo tão bem o seu cargo, foi sagrado Bispo de Lima, no Peru, onde combateu os costumes devassos e tornou-se o açoite dos maus padres.

No dia 23 de março comemora-se a festa de São Toríbio de Mongrovejo, cujos dados biográficos a seguir sintetizamos.

 

Em Granada, foi Presidente da Inquisição por cinco anos

São Toríbio nasceu em 1558 em Mayorga, Espanha, de uma nobre família. Desde a infância revelou amor pela virtude e um extremo horror ao pecado, ao lado de uma grande devoção à Santíssima Virgem. Cada dia recitava seu Ofício e o Rosário, e aos sábados jejuava em sua honra.
Com inclinação para os estudos, fê-los em Valladolid e Salamanca. Felipe II veio a conhecê-lo e, notando suas qualidades, o nomeou primeiro magistrado de Granada e presidente do Tribunal da Inquisição dessa cidade, cargo que exerceu de forma excepcional durante cinco anos. Vagando a Sé episcopal em Lima, no Peru, o soberano chamou-o para o cargo apesar de seus veementes protestos. Foi sagrado sacerdote e bispo, e assumiu o seu posto aos 43 anos de idade.
Sua diocese era imensa e os costumes dos espanhóis e outros conquistadores, ao lado do clero, deixavam muito a desejar.

Os selvagens por sua vez estavam abandonados ou eram perseguidos. São Toríbio não se deixou desanimar e resolveu aplicar as decisões do Concilio de Trento para reformar a região.

Em Lima, começou sua ação pela reforma do clero

Dotado de excepcional prudência, bem como de zelo ativo e vigoroso, começou pela reforma do clero, mantendo-se inflexível para qualquer escândalo que daí viesse. Tornou-se açoite dos pecadores públicos e protetor dos oprimidos. Foi duramente perseguido por isso.
Como alguns cristãos dessem à Lei de Deus alguma interpretação que favorecia os pendores desregrados da natureza, mostrou-lhes que Cristo era a Verdade e não um costume, e que em seu tribunal nossos atos seriam pesados não pela falsa balança do mundo, mas pela balança do Santuário.
Conseguiu o nosso santo o que queria e voltou-se à prática das máximas evangélicas com enorme fervor, principalmente com a chegada do virtuoso Vice-Rei Dom Francisco de Toledo.
Infatigável pela salvação da menor das almas de seu rebanho, não poupava nenhum trabalho. Protegeu os índios chegando a aprender, em idade avançada, vários de seus dialetos para poder ensinar-lhes o Catecismo. Toda essa atividade era iluminada por intensa vida de piedade, Missa, longa meditação, confissão diária, longas horas de oração e severas penitências. Sua prece era contínua, pois a glória de Deus era o fim de todas as suas palavras e ações.
São Toríbio caiu doente em Sana, uma cidade distante de Lima. Previu sua morte e distribuiu seus bens aos seus criados e aos pobres, repetindo sem cessar as palavras de São Paulo: “Desejo ser libertado dos laços de meu corpo para unir-me a Cristo.” Morreu dizendo com o profeta: “Senhor, em tuas mãos entrego meu espírito.” Era 23 de março de 1606, quando expirou o grande apóstolo do Peru.

 

Saiu das doçuras da sua piedade para ser o açoite dos hereges

É uma tão bonita biografia que quase não dá vontade de fazer comentários. Em todo caso, vamos tomar alguns aspectos desse assunto e considerá-los.
O primeiro deles, naturalmente, é a excepcional devoção desse Santo a Nossa Senhora. Todos nós sabemos bem que sem veneração enlevada à Virgem Maria não há santidade, a qual de algum modo existe na medida da devoção a Nossa Senhora. Passemos um pouco para a consideração de coisas do tempo.
Tão logo o Rei Felipe II notou esse homem tão piedoso, chamou-o para exercer o Poder Judiciário.
Imaginem que, em nossos dias, fosse publicada uma notícia dizendo: “O Presidente Fulano esteve em tal lugar e, ouvindo falar de um homem muito religioso que jejuava, fazia penitência todos os sábados, rezava o Ofício Parvo de Nossa Senhora, exclamou: ‘Oh, aqui está o magistrado!’” Ninguém acreditaria nessa notícia porque todo o mundo sabe que nenhum Chefe de Estado contemporâneo seleciona os homens verdadeiramente piedosos e religiosos.

Ora – maravilha das maravilhas! –, Felipe II encontrou um homem piedoso que não era, todavia, “heresia branca”1, e esse Monarca – também ele bem o contrário da “heresia branca” –, vendo

esse homem tão bom, chamou-o para um ramo especial do Judiciário que é a nossa bem-amada “Inquisição contra a perfídia dos hereges”. Ei-lo, então, transformado em perseguidor dos hereges. Esse varão sai das sombras do santuário, das doçuras da sua piedade, para ser o açoite dos hereges. E exerce tão bem o seu cargo que é nomeado Bispo de Lima, no Peru.

Isto significa, afinal de contas, toda uma atmosfera de uma época na qual a virtude era procurada, galardoada e considerada como um instrumento para o bom andamento do governo de um reino.

Implantou e consolidou os fundamentos do Reino de Cristo no Peru

Vê-se qual era o pensamento de Felipe II ao mandar para o Peru um homem como esse. O Rei, compreendendo muito bem toda a corrupção a que uma nação colonial estava sujeita, com a presença da elite na Espanha ou em Portugal e a vinda da borra para a América do Sul, sua preocupação foi a de tomar um homem eminente para implantar e consolidar os fundamentos do Reino de Cristo no Peru.

Essa atitude nos faz perceber melhor como havia da parte de Felipe II verdadeiro zelo na propagação da Fé. Há uns patoteiros por aí que dizem que Espanha e Portugal, quando fizeram o descobrimento, só se interessavam por dinheiro. O que lucrava monetariamente Felipe II em mandar um homem deste valor para o Peru, a fim de fazer uma reforma de caráter espiritual? Nada!
São Toríbio começa a agir e, porque é um Santo autêntico, sabe vergastar quando necessário e se transforma no açoite dos maus padres, reformando o clero. Sua ação é prestigiada por outro homem de altas virtudes, que Felipe II manda para o cargo de Vice-Rei do Peru: Dom Francisco de Toledo.Vemos, portanto, o grande Monarca, a quem Santa Teresa chamava de “nosso santo Rei Felipe”, nomear um santo bispo inquisidor e um virtuoso vice-rei. Quem é que ouve falar dessas coisas nos dias de hoje? Como nós caímos! Estamos numa tal decadência que achamos natural que esses excêntricos estejam por aí governando, dominando, mandando, falando, dirigindo…

Nós não compreendemos o fundo do abismo em que estamos, porque o normal é que um bispo seja como São Toríbio de Mongrovejo, e o poder político esteja entregue a um rei ou a um vice-rei virtuoso, não à “mercadoria” que vemos por aí. Mas nós até já perdemos a noção disso.
Então, devemos pedir a São Toríbio de Mongrovejo que nos obtenha a graça de lutar ativamente para derrubar esse estado de impiedade em que a normalidade parece um conto da carochinha, e esse horror que se vê por aí passa a ser o normal.
É, pois, a derrota da ordem revolucionária e o triunfo da Contra-Revolução que devemos rogar a este Santo que, como inquisidor, tanto lutou pela causa contrarrevolucionária. Do alto dos Céus, certamente ele ouvirá com benignidade e alegria a nossa prece.

(Extraído de conferência de 22/3/1966)

1) Expressão metafórica criada por Dr. Plinio para designar a mentalidade sentimental que se manifesta na piedade, na cultura, na arte, etc. As pessoas por ela afetadas se tornam moles, medíocres, pouco propensas à fortaleza, assim como a tudo que signifique esplendor.

O apóstata que se tornou Santo

São Guchiatazade era católico e ocupava alto cargo no Império Persa. Entretanto, por medo da perseguição, renunciou à Fé. Um bispo, seu grande amigo, ao ser conduzido à prisão, passou diante dele e, para não ver o apóstata, desviou os olhos com horror. Esta muda repreensão tocou-o profundamente e, pela graça divina, converteu-se inteiramente e foi martirizado. 

 

O nome do santo que vamos comentar hoje é Guchiatazade, mártir. Deve ser alguma coisa muito pouco comum essa biografia, tirada do livro Les Saints militaires – Os Santos militares –, do Abbé Profillet.

Um católico que ocupava alto cargo no Império persa

A Religião Católica fora pregada com êxito na Pérsia por São Mateus e São Bartolomeu. Os cristãos nesse país eram profundamente convictos. Assim, foram sem conta os mártires feitos pelo Rei Sapor II, quando este iniciou terrível perseguição contra seus súditos que não adoravam, como ele desejava, o disco solar.
O culto do Sol era a religião imemorial dos persas, desde os tempos da sua pré-História. De maneira que eles haviam de querer sujeitar os católicos à adoração do Sol.
Por esse motivo, o soberano mandou encarcerar o Bispo Simeon.
O prelado era amigo de Guchiatazade, um eunuco do palácio, homem que ocupava alto cargo e muito considerado no reino, mas que, temendo a perseguição, abjurara sua Fé. Ao ser conduzido à prisão, Simeon passou diante do eunuco que o saudou, mas o santo Bispo, para não ver o apóstata, desviou os olhos com horror. Esta muda repreensão tocou profundamente Guchiatazade, fazendo-o chorar dias seguidos e dizer de si para si: “Se um homem que foi meu amigo concebeu contra mim tal indignação, o que não fará Deus a Quem traí?”
Pensando desse modo, o eunuco abandonou suas roupas suntuosas e cobriu-se de luto, assim comparecendo ao palácio. Essa atitude encheu a todos de assombro e o soberano chamou-o logo à sua presença para perguntar porque lançava, daquele modo, presságios funestos sobre o reino, ao que o eunuco respondeu: “Enlutei-me por causa de minha dupla perfídia contra meu Deus e contra vós; contra meu Deus porque violei a Fé que jurara, preferi vossos favores à verdade; contra vós mesmo porque, obrigado a adorar o Sol, eu o fiz com hipocrisia; meu coração internamente protestava contra minha conduta.”
Ameaçado por Sapor II, Guchiatazade permaneceu inalterável em sua posição, sendo condenado à morte. Antes do suplício, contudo, pediu uma última graça ao Rei dizendo-lhe: “Vós sempre me elogiastes pelo zelo e devotamento com que servi a vós e a vosso pai. Agora eu vos rogo: concedei-me a mercê de um arauto bradar a todos que Guchiatazade é conduzido ao suplício não por ter traído os segredos do Rei, nem por se ter envolvido em alguma conspiração, mas porque é cristão e recusou renegar a seu Deus. Minha apostasia foi conhecida de toda a cidade, e talvez minha fraqueza tenha afetado a muitos. Se agora conhecerem meu suplício e ignorarem a causa, ele não servirá de exemplo aos fiéis. Mas, ao contrário, se souberem de minha penitência e de que eu morro por Cristo, eu os fortificarei; suas almas ficarão mais firmes e seu ardor reacendido. A voz do arauto será como uma trombeta de guerra, que dará aos atletas da justiça o sinal do combate e os prevenirá para que preparem as armas.”
Assim se fez e São Guchiatazade foi morto na Quinta-feira Santa do ano de 342.

 

Por medo de ser executado renegou a Fé

Lindíssima narração!

É conhecido o sistema bárbaro, contrário à Doutrina Católica, adotado em muitos países pagãos e na Antiguidade em geral, em que eram mutilados certos meninos, já na primeira infância, para que eles não tivessem a potência varonil, de maneira que pudessem tomar conta dos haréns, dos lugares onde estavam as várias esposas dos reis, sem que estes tivessem, assim, alguma preocupação. Só isso já mostra a debilidade das instituições pagãs antigas que alguns historiadores querem apresentar como tão fortes. Eram monarquias que se constituíam exclusivamente sobre o medo, a coerção. A esposa do rei só podia estar em segurança diante de homens mutilados. Se ela tivesse nas suas proximidades homens não-mutilados, o rei, apesar de todo o seu poder, podia dessa esposa recear tudo.

Compreende-se o clima de uma civilização que isso supõe e a repercussão lúgubre para todas as instituições políticas, sociais, econômicas. Quando nós estudamos a Idade Média vemos isto: o vínculo que propriamente une, coordena os elementos constitutivos de uma instituição medieval é o de fidelidade, a ideia de que é ponto de honra de ambas as partes, do menor como do maior, observarem as obrigações recíprocas, de maneira tal que invadir os direitos do outro é uma vergonha muito mais para quem lesa do que para quem é lesado. E se é uma coisa infamante para um homem que a sua esposa o logre, era considerado, a justo título, muito mais infamante lograr seu senhor ou o seu vassalo, roubando-lhe a esposa. Notem que outra elevação tem a Civilização Católica, e em que lodaçal de baixeza se afundava o mundo antigo.
De qualquer forma, acontece que esses homens assim mutilados tinham muita possibilidade de entrar em contato com os reis, os soberanos, por causa daquela intimidade de palácio. E como eram indivíduos que muitas vezes – mas não sempre – não se entregavam às orgias, nem às desordens dos homens comuns, eles liam muito mais, eram mais estudiosos e frequentemente mais inteligentes do que os outros. O resultado é que eles, com muita frequência, eram guindados aos mais altos postos do Estado: confidentes de reis, de governadores de província, generais – alguns deles famosos –, todos eles com muita projeção no respectivo país.
Temos, então, o caso desse personagem que, nessas condições, tornou-se eminente em um dos maiores impérios da Antiguidade, que foi o império persa. Ele era católico, tinha se convertido em razão da presença, séculos antes, de São Bartolomeu na Pérsia, e começou a praticar a Religião. Mas veio o Rei Sapor II que promulgou um decreto de condenação à morte de todos os católicos. E ele, de medo de ser executado, renegou a Religião. Um outro Santo que era Bispo, do qual tinha sido antigamente amigo, passou perto de Guchiatazade e nem o olhou. O apóstata o cumprimentou, mas o Prelado desviou os olhos e continuou caminhando para o martírio.

Bela e pitoresca teatralidade do Oriente

Vejam como são diferentes as vias da graça. Nosso Senhor encontrou São Pedro, deitou-lhe um olhar de bondade e o converteu para todo o sempre. Dir-se-ia que esse Santo Bispo deveria imitar o Divino Salvador e dirigir um olhar de bondade a este apóstata, pois assim o converteria. Mas o Espírito Santo sugere atitudes diferentes, de acordo com as diversas vias que Ele tem para conduzir essas ou aquelas almas. Aconteceu que o Santo passou perto do apóstata, se encheu de horror e desviou os olhos com indignação. O apóstata, em vez de ficar revoltado, foi tocado pela graça por causa desse gesto e fez este raciocínio: “Se esse homem que foi meu amigo me despreza e me odeia tanto pelo mal que eu fiz, que dirá Deus diante do Qual um dia vou ter que comparecer?” E então ele resolveu mudar de vida.
Uma primeira observação a que se presta esta ficha diz respeito à variedade pela qual Deus toca as almas e inspira o apostolado de cada um. A uns o Criador dá o amor contagioso, penetrante que, pela doçura, leva à união com Ele; a outros concede a cólera sacrossanta, sublime, que purifica como um fogo e ordena a Deus as almas que são objeto dessa cólera.

De qualquer forma, temos aqui uma bela e profundíssima conversão. Como São Pedro, embora por vias diferentes, ele chorou intensamente o seu pecado e caminhou para o martírio.
Como ele caminhou? A coisa tem aquela bela e pitoresca teatralidade do Oriente de que eu gosto tanto. Quer dizer, normalmente, em termos ocidentais, ele escreveria uma carta para o Rei, dizendo: “Vós sabeis onde eu moro, querendo podeis mandar pegar-me.” Ou deixava uma missiva em casa, fugia e desaparecia, o que no mundo antigo era relativamente fácil porque a polícia tinha muito mais dificuldade de se mover, e um criminoso ou um rebelde levava uma vida relativamente folgada. Assim, ele poderia ter entrado perfeitamente numa ermida, numa tebaida qualquer, ou passado para outro país onde a Religião Católica já estivesse estabelecida, portando riquezas, joias, e levar uma vida tranquila.
Não, ele resolveu enfrentar o martírio. Mas, em vez de escrever uma carta, sentiu, na sua alma de oriental, a necessidade de exprimir por símbolos aquilo que dizia também por palavras. Então, ele, o homem poderoso, apresenta-se diante do Rei todo trajado de luto. Não sei como seria o luto de um persa, se o traje era preto, violeta ou de outra cor; enfim, ele se apresentou todo vestido de luto para produzir efeito teatral. E produziu.

 

“Pequei contra Deus e contra ti!”

Vendo assim trajado o maior dignatário do Império, as pessoas, assombradas, perguntam-lhe: “Estás de luto? Como se explica isso?”
Podemos imaginá-lo com a fisionomia sinceramente compungida, porque teatro nem sempre é hipocrisia, muitas vezes é a manifestação bela, esplêndida, da verdade. Ele, então, solenemente, com os olhos encovados de dor e de tristeza, disse: “Eu quero falar com o Rei.”
Guchiatazade, então, penetra nos jardins do palácio imperial. Há um pátio com aquelas esculturas de touros – não propriamente touros alados, à maneira dos assírios, porém era mais ou menos desse gênero que usavam os persas –, leões, etc. Isso é muito mais bonito que a matéria plástica. Existe também uma fonte que jorra. Imaginem como romperia a poesia desse ambiente se um telefone tocasse…
Mais à frente, ouve-se o burburinho proveniente de uma antecâmara, onde as pessoas esperavam para ser chamadas pelo Imperador. Guchiatazade é introduzido no palácio do Sapor. Podemos imaginá-lo atravessando várias salas, com escravos se curvando à sua passagem, não olhando a nada e tendo apenas diante de si, enlevado, a sublimidade do furor do Bispo que não o olhou ao ser conduzido à prisão. Fascinado por aquela fisionomia de uma cólera fulgurante e deslumbrante, ele chega até o quarto do Rei, que lhe pergunta: “Que é isso? Tu prognosticas o luto no Império de teu senhor?”
Dito isto do alto de um trono, com uma voz cantante, diante de um homem que se apresenta de luto alguns degraus abaixo, numa sala magnífica, com alguns escravos segurando flabelli, mais adiante um tocador de flauta com uma serpente na sua frente e um incenso que sobe.
Há, então, o diálogo. Diante dos escravos estupefatos, ele diz a Sapor: “Eu pequei contra vós, ó meu Deus; mas pequei também contra ti, ó Rei, porque te menti quando fui adorar o Sol. Meu coração inteiro repelia aquela adoração que eu fazia.”
Pode-se imaginar a raiva do Sapor, que o condena à morte, e ele aceita a sentença com toda a serenidade, dignidade, placidez.

A graça suscitava heróis até mesmo da argila fraca de apóstatas

 

Vem, então, a última petição. Pode-se supor com que poesia, com que atitude, com que gestos foi dito: “Ó Rei, ainda tenho um pedido para te fazer!” Sapor treme de ódio, mas o Santo não treme

diante do ódio do Rei. Ele tremia face ao ódio daquele olhar que não via mais, daquele coração que não pulsava mais, tremia de entusiasmo diante da sublime intransigência do homem que o tinha repudiado.

São Guchiatazade disse: “Eu tenho um pedido a fazer.” Foi um pedido magnífico. Ele não rogou a vida. Alegou a sua antiga fidelidade, mostrou que não tinha feito nada contra o Rei, nem contra o

Império, e que até havia servido lealmente o pai do Sapor. E a esse título, pedia apenas uma coisa: que arautos percorressem toda a cidade de Susa, capital do Império, para comunicar que ele morria porque era cristão. Queria, por essa forma, desfazer o escândalo que muitos cristãos teriam tido pelo fato de saberem que Guchiatazade havia apostatado, logo ele que era a alegria e a honra de seus irmãos pela alta situação que ocupava nos momentos em que se celebrava a Santa Missa. E o Rei, apesar de todo o seu furor, atende esse pedido. Por fim, ele caminha para a morte, é estraçalhado.

Momentos depois, a cidade de Susa ouve os arautos que proclamam por toda parte: “Morreu o poderoso Ministro, o sustentáculo do trono foi derrubado porque perseverou em ser católico e não aceitou o culto do Sol que todos nós prestamos.” Podemos imaginar os católicos no meio da multidão, enlevados com o acontecimento, se olhando apenas e combinando secretamente encontros na primeira morada ou primeiro esconderijo, para comentarem o novo triunfo da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo e se alimentarem nesse exemplo na certeza de que a Religião Católica não morreria, porque a graça suscitava heróis de tal maneira invencíveis, mesmo da argila fraca de apóstatas. Calculem o entusiasmo que isso deveria provocar.

Devemos caminhar para o nosso futuro com alegria, calma e confiança

Uma aplicação imediata desses fatos é esta: para as situações mais tristes e de maior debilidade da alma humana, há sempre um remédio, um auxílio da graça, desde que se peça. Com certeza Nossa Senhora rezou por esse homem que havia caído numa apostasia completa, tinha tantos liames que o prendiam ao mundo, era um ministro poderoso e fruía de uma porção de vantagens na codireção de um dos maiores impérios da Terra; ele, portanto, estava tão longe da Santíssima Virgem, mas por uma prece foi convertido.
O encontro dele com aquele mártir que caminhava para o último sacrifício e recusou olhá-lo evidentemente foi preparado pela Providência. O mártir teve aquela reação inspirado pela graça porque, nas condições em que Guchiatazade se encontrava, era o que lhe faria bem. Uma recusa de olhar bastou para regenerar um homem que tinha abusado de tantas graças anteriores. Vemos um miserável apóstata, que até pouco tempo antes despertava horror, transformado de repente em um Santo da Igreja Católica, cujo nome mencionamos com respeito.
Devemos ter, na nossa vida espiritual, uma confiança inquebrantável na misericórdia de Nossa Senhora, na onipotência das súplicas que Ela faz. E por essa forma nos mantermos sempre animados e perseverantes, como diz a Escritura: Ainda que caíssem mil à minha esquerda e dez mil à minha direita, eu continuaria a lutar (cf. Sl 90,7). O que no sentido espiritual quer dizer o seguinte: Ainda que apostatassem mil à minha esquerda e dez mil à minha direita, eu continuaria a esperar. E no nosso caso esperar que Maria Santíssima, em determinado momento, reze; e daquelas mesmas almas, a respeito das quais tivemos desapontamentos, tristeza, frustração, suba novamente para Deus o aroma da contrição e do louvor perfeito.
Assim, devemos caminhar para o nosso futuro com alegria, calma e confiança. Não sabemos o dia de amanhã, que provações e que batalhas trará para nós. Não sabemos se mesmo à nossa direita e à nossa esquerda teremos decepções. Não sabemos se seremos chamados para o martírio. Uma coisa sabemos: seremos chamados mais de uma vez para expormos a nossa vida. Não tenhamos medo de nosso medo. É um erro ter-se medo do medo. Devemos ter medo de não rezar, de não recorrer a Nossa Senhora. Se rezarmos e recorrermos à Santíssima Virgem, seremos apoiados, protegidos e cumpriremos nosso dever.

O único temor que devemos ter é de não estarmos unidos a Nossa Senhora

O único medo que devemos ter é de não estarmos unidos a Ela. Mesmo para esse medo há uma súplica que eu acho muito bonita, a oração Anima Christi, que se aplica inteiramente a nós: “Alma de Cristo, santificai-me; Corpo de Cristo, salvai-me…” Em certo momento, há este pedido belíssimo: “Não permitais que eu me separe de Vós” – Ne permittas me separari a Te. Então devemos dizer: “Minha Mãe, sei que sou tal que, se for só por mim, eu acabo me separando de Vós. Mas sei que sois tão insondavelmente boa e poderosa que podeis como que me proibir, me impedir de me separar de Vós. Então, a minha confiança em ser fiel resulta, minha Mãe, essencialmente disto: não permitais que jamais me separe de Vós. Tenho certeza de que, como nunca se ouviu dizer que tendo alguém recorrido à vossa proteção, implorado o vosso auxílio, fosse desamparado, essa minha súplica também não deixará de ser ouvida.”

E quanto mais os castigos se aproximarem, quanto mais sentirmos os perigos se avolumarem em torno de nós, tanto mais devemos dizer ao Imaculado Coração de Maria: “Não permitais que nos separemos de Vós!” Ela jamais o consentirá e, assim, nunca permitirá que nos apartemos de Nosso Senhor Jesus Cristo, para o Qual Ela é nosso traço de união.
Esta é a conclusão que devemos tirar à vista dessa manifestação de poder da graça. Nossa Senhora não permitiu que esse Santo se separasse d’Ela. Ele chegou a apostatar, mas num determinado momento Ela o chamou e ele brilha no Céu entre os Bem-aventurados. É um Santo canonizado pela Santa Igreja Católica que, mais do que apregoar a sua penitência para todos os habitantes de Susa, proclama, pelo seu exemplo, a confiança na misericórdia da Santíssima Virgem a todos os homens, enquanto o mundo for mundo. Peçamos a ele que reze por nós e que, quando chegarmos ao Céu, o encontremos lá bem unido a Nossa Senhora no resplendor de sua glória para, em união com ele, amarmos a Mãe de Deus e a Nosso Senhor Jesus Cristo por toda a eternidade.v

(Extraído de conferência de 12/6/1971)