Santa Teresinha era singularmente bela, de traços regulares, olhar luminoso e vasto, porte firme e semblante resoluto; sua fisionomia deixa transparecer qualidades que parecem opostas – ao menos segundo a mentalidade revolucionária –, como a bondade e a firmeza, a distinção e a simplicidade, o perfeito e absoluto domínio de si e a mais atraente naturalidade.
Santa Teresinha do Menino Jesus é, a bem dizer, uma Santa de nossos dias. Celebraremos daqui a pouco o cinquentenário de sua morte, e muitas das pessoas que ainda temos a ventura de possuir entre nós são absolutamente contemporâneas da jovem carmelita que expirou aos vinte e quatro anos.
Procuraram ocultar o sentido profundo, admirável, heroico de sua existência
Felizmente, a fotografia já estava inventada em dias dela, pelo que conservamos o retrato autêntico da grande Santinha: singularmente bela, de traços regulares, olhar luminoso e vasto, porte firme e semblante resoluto, sua fisionomia deixa transparecer qualidades que parecem opostas entre si – ao menos segundo a mentalidade liberal –, como a bondade e a firmeza, a distinção e a simplicidade, o perfeito e absoluto domínio de si e a mais atraente naturalidade.
Se não possuíssemos fotografias da “Santa rosa do Carmelo”, que ideia teríamos dela? A que nos apresentam muitas de suas imagens: doce, de uma doçura sentimental e quase romântica; boa, de uma bondade puramente humana e sem o menor sopro de sobrenatural; enfim, uma jovem de boas inclinações, embora exageradamente sensível, nunca uma autêntica e genuína Santa, um luzeiro cintilante no firmamento espiritual da Igreja do Deus Verdadeiro. Certa iconografia, sem alterar os traços da Santa, alterou, contudo, sua fisionomia.
Certa literatura sentimental-religiosa, sem adulterar propriamente os dados biográficos de Santa Teresinha, encontrou meios de interpretar tão unilateral e superficialmente determinados episódios de sua vida, que chegou a desfigurar de algum modo seu significado. As deformações iconográficas e biográficas se fizeram todas em uma mesma direção: ocultar o sentido profundo, admirável, heroico da existência da imortal Santinha.
No cinquentenário de sua morte alguém que muito e muito lhe deve procurará saldar com respeitoso amor parte desta dívida, fazendo um comentário doutrinário à sua vida.
O tesouro da Igreja
O pecado original cometido por Adão e os pecados posteriormente praticados pela humanidade constituem ofensas a Deus. Para resgatar essas ofensas e aplacar a ira divina era preciso que a humanidade expiasse. Esta expiação era como que o pagamento de um preço que compensasse a falta cometida. Há nisto, de certo modo, uma restituição. Pelo pecado, o homem como que se apropriou indebitamente de prazeres, vantagens, deleites a que não tinha direito. Para reparar a justiça, era preciso que ele abandonasse, imolasse, sacrificasse tudo isto. O sacrifício reparador toma, assim, o aspecto de um preço de resgate pelo qual se repara a falta cometida. Para resgatar esses pecados, a Santa Igreja dispõe de um tesouro. Vejamos de que natureza ele é.
Evidentemente, não se trata de um tesouro de riquezas materiais. É moral e espiritual, como exige a natureza moral das faltas que se trata de resgatar. Ele se compõe, antes de tudo e essencialmente, dos méritos infinitamente preciosos de Nosso Senhor Jesus Cristo, que no momento da Santa Morte do Salvador foram aceitos por Deus e produziram a Redenção da humanidade. Os sofrimentos, as virtudes, as expiações dos homens pecadores seriam totalmente incapazes de aplacar a cólera divina. O Santo Sacrifício do Homem-Deus bastaria plenamente para tal. Mais ainda: uma simples gota do precioso Sangue bastaria para redimir a humanidade inteira.
Contudo, por desígnios insondáveis da Providência Divina, de fato a Redenção não se operou no momento em que se verteu o primeiro Sangue do Redentor, mas só quando ele expirou por nós na Cruz, depois de um dilúvio de tormentos. Por uma disposição igualmente misteriosa, Deus não Se contenta com o sacrifício superabundantemente suficiente do Redentor. A humanidade está redimida, e em si mesma a obra da Redenção está concluída, mas para salvar os pecadores, para expiar seus pecados atuais, para que as almas transviadas aproveitem o Sacrifício do Homem-Deus é necessário que também nós alcancemos méritos.
Papel da graça divina
O tesouro da Igreja se compõe, pois, de duas parcelas. Uma, infinitamente preciosa, superabundantemente suficiente e eficaz: é a dos méritos de Nosso Senhor Jesus Cristo. Outra pequeníssima, insignificante: é a dos méritos dos homens, adquiridos ao longo da vida multissecular da Igreja. A parte pequena só vale em união com a parte infinita. Mas – mistério de Deus –, apesar de perfeitamente dispensável em si mesma, esta parte é indispensável porque Deus o quis: “Quem te criou sem ti, não te salvará sem ti”, diz Santo Agostinho. Deus nos criou sem nossa cooperação, mas para nos salvar Ele quer nossa cooperação. Cooperação de apostolado, sim, mas também na prece e no sacrifício. Sem os méritos dos homens, o tesouro da Igreja não estará completo e a humanidade não aproveitará inteiramente os frutos da Salvação.
Visto o assunto de outro ângulo, devemos lembrar o papel da graça para a salvação. Nenhum homem é capaz do menor ato de virtude cristã sem que seja chamado a isto pela graça de Deus, e por ela ajudado. Em outros termos, a primeira ideia, o primeiro impulso, toda a realização do ato de virtude sobrenatural se faz com o auxílio da graça. Isto de tal maneira que ninguém poderia praticar o menor ato de virtude cristã – nem sequer pronunciar com piedade os Santíssimos Nomes de Jesus e Maria – sem o auxílio sobrenatural da graça. Tudo isto é verdade de Fé, e quem o negasse seria herege. Nossa vontade coopera com a graça, e sem o concurso dela não há virtude possível, mas por si só, sem a graça, ela é absolutamente incapaz de praticar a virtude sobrenatural.
Ora, como sem virtude ninguém agrada a Deus nem se salva, sendo a graça necessária para a virtude, é fácil perceber que ela é necessária para a salvação.
Todos os homens recebem graças suficientes para se salvar. Também esta é uma verdade de Fé. Porém, de fato, pela maldade humana, que é imensa, muito poucos seriam os homens que se salvariam só com a graça suficiente. É preciso que a graça seja abundante para vencer a maldade do abuso do livre-arbítrio humano. A abundância dessa graça, como obtê-la de Deus, justamente irado pelos pecados dos homens? Evidentemente com o tesouro da Igreja.
Entretanto, como vimos, esse tesouro se compõe de duas parcelas, uma das quais perfeita e imutável, a de Deus, e outra mutável e imperfeita, a dos homens. Quanto mais a parte humana do tesouro da Igreja for deficiente, tanto menos abundantes serão as graças. Quanto menos abundantes forem as graças, tanto menos numerosas serão as almas que se salvam. De onde decorre que um elemento capital para que as almas se salvem é que o tesouro da Igreja esteja sempre cheio de méritos produzidos pelos homens. Os grandes pecadores são filhos doentes para cuja cura se prodigalizam os tesouros da Igreja. Os grandes Santos são os filhos sadios e operosos, que repõem a todo momento, nesse tesouro, riquezas novas que substituam as que se empregam com os pecadores.
Tudo isto nos permite estabelecer uma correlação: para grandes pecadores, grandes gastos no tesouro da Igreja. Ou estes grandes gastos são supridos por novos lances de generosidade de Deus e das almas santas, ou as graças se vão tornando menos abundantes, e o número de pecadores aumenta.
Jamais fazer a vontade própria
Daí se deduz que nada mais necessário para a dilatação da Igreja do que enriquecer, sempre e sempre, seu tesouro sobrenatural com novos méritos.
Evidentemente, podem-se adquirir méritos praticando a virtude por toda parte. Mas há no jardim da Igreja almas que Deus destina especialmente a este fim. São as que Ele chama à vida contemplativa, em conventos reclusos, onde certas almas de escol se dedicam especialmente em amar a Deus e a expiar pelos homens. Estas almas corajosamente pedem a Deus que lhes mande todas as provações que quiser, desde que com isso se salvem numerosos pecadores. Deus as flagela sem cessar, de um modo ou de outro, colhendo delas a flor da piedade e do sofrimento, para com estes méritos salvar novas almas. Consagrar-se à vocação de vítima expiatória pelos pecadores: nada há de mais admirável. E isto tanto mais quanto muitos há que trabalham, muitos que rezam; mas quem tem a coragem de expiar?
Este é o sentido mais profundo da vocação dos trapistas, das franciscanas, dominicanas e carmelitas entre as quais floriu a suave e heroica Teresinha.
Seu método foi especial. Praticando a conformidade plena com a vontade de Deus, ela não pediu sofrimentos, nem os recusou. Deus fizesse dela o que entendesse. Jamais pediu a Deus ou a suas superioras que dela afastassem qualquer dor, qualquer mortificação. Submissão plena era o seu caminho. E, em matéria de vida espiritual, plena submissão equivale à plena santificação.
Seu método se caracteriza ainda por outra nota importante. Santa Teresinha não praticou grandes mortificações físicas. Ela se limitou simplesment
e às prescrições de sua Regra. Mas esmerou-se em outro tipo de mortificação: fazer a toda hora, a todo instante, mil pequenos sacrifícios. Jamais a vontade própria. J
amais o cômodo, o deleitável. Sempre o contrário do que os sentidos pediam. E cada um destes pequenos sacrifícios era uma pequena moeda no tesouro da Igreja. Moeda pequena, sim, mas de ouro de lei: o valor de cada pequeno ato consistia no amor de Deus com que era feito.
E que amor meritório! Santa Teresinha não tinha visões, nem mesmo os movimentos sensíveis e naturais que tornam, por vezes, tão amena a piedade. Aridez interior absoluta, amor árido, mas admiravelmente ardente, da vontade dirigida pela Fé, aderindo firme e heroicamente a Deus, na atonia involuntária e irremediável da sensibilidade. Amor árido e eficaz é sinônimo, em vida de piedade, de amor perfeito.
Grande caminho, caminho simples. Não é simples fazer pequenos sacrifícios? Não é mais simples não ter visões, do que as ter? Não é mais simples aceitar os sacrifícios em lugar de os pedir?
Caminho simples, caminho para todos. A missão de Santa Teresinha foi de nos mostrar uma via em que pudéssemos todos trilhar. Oxalá ela nos auxilie a percorrer esta estrada real que levará aos altares não apenas uma ou outra alma, mas legiões inteiras.
(Extraído de O Legionário
n. 790, 28/9/1947)