São João de Deus – Extraordinária força de alma

São João de Deus foi fundador de uma Ordem religiosa famosa, tornando-se um dos homens mais conhecidos de seu tempo.

Sua fisionomia é toda marcada pelo olhar. Os traços são comuns, regulares, não dizem nada de especial. O bigode, muito fininho, ralinho, com certeza fazia parte dos costumes do tempo; e a barba aparada, cobrindo quase todo o rosto. Caixa ocular bem feita, com certa profundidade, mas nada de extraordinário. Nariz, sobrancelhas, testa e carnatura comuns. Entretanto, tudo sai do banal por causa desses olhos escuros e profundos.

Olhar pensativo e analítico, ao mesmo tempo de um místico e teólogo, cogitando em algo muito elevado que o toma por inteiro. Uma força de alma verdadeiramente extraordinária.

Quando consideramos um semblante como este, devemos compará-lo com as fisionomias que encontramos nas ruas. Quantas caras comuns existem pelas vias públicas! Mas este olhar, onde encontraremos?

Compreendemos assim o trabalho da graça, colhendo um homem que provavelmente foi comum, tornando-o uma grande alma e fazendo, através dele, uma grande obra.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 17/1/1986)

Revista Dr Plinio 252 (Março de 2019)

Ascese da Companhia de Jesus – I Vigoroso torreão da Cidade de Deus

Em 1941 celebrou-se o IV centenário da fundação da Companhia de Jesus por Santo Inácio de Loyola. No marco das comemorações pela efeméride, foi Dr. Plinio convidado a falar para um seleto público na Sala João Mendes Júnior, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, em 22 de maio. E o fez com o eloquente desembaraço de quem conhecia de perto a obra e a fisionomia moral jesuíticas, à luz da grandiosa missão para a qual os filhos de Santo Inácio foram suscitados.

 

Pretendo tratar daquilo que o espírito da Companhia de Jesus tem de mais essencial, íntimo e caracteristicamente seu, isto é, da ascese inaciana.

Num mundo em crise, surge a Companhia de Jesus

O ambiente em que nasceu a Companhia de Jesus é assaz conhecido. Ninguém ignora as profundas comoções de ordem intelectual, artística, social, política e econômica que assinalaram a passagem da Idade Média para os Tempos Modernos. As novas concepções religiosas, pretendendo proclamar a independência do homem perante a autoridade infalível da Igreja, sujeitaram a doutrina bíblica aos caprichos da livre-interpretação. E, através dessa fenda imensa, aberta na armadura psicológica da Europa católica, não houve erro nem rebeldia que não se mostrassem à luz do sol, ataviando-se com os ilusórios enfeites de uma teologia ou de uma filosofia errônea. Seria, entretanto, manifestar singular superficialidade de espírito, pretender que o surto tumultuário de idéias subversivas, ocorrido na Renascença, constituísse um movimento de completa anarquia doutrinária. No entrechoque dos pensamentos diversos e dos extremismos que entravam em colisão, havia uma nota constante e uniforme, que atraía o desejo dos reis, príncipes, burgueses e plebeus, para uma ordem de coisas que mais abertamente lisonjeasse seu amor-próprio e suas vantagens indivi­duais. O mesmo surto de egoísmo que levava os soberanos a favorecer os propugnadores da monarquia absoluta, levava os burgueses a investir contra as desigualdades que beneficiavam a aristocracia, e a baixa plebe a se revoltar contra a diferença de fortunas.

À ordem política e social da Idade Média, caracterizada pela distribuição equitativa dos deve­res e direitos entre as várias ordens e classes do corpo social, sucedia uma ruptura profunda, em que cada classe ou indivíduo optava pela doutrina unilateral que mais abertamente ­favorecesse seus interesses. No mais profundo do homem, a causa das desordens se estabelecera. O mesmo non serviam orgulhoso, que explodira nas fileiras angélicas, se manifestava agora na Terra. A crise da pseudo-Reforma e da Renascença não foi meramente especulativa. Os debates a que ela assistiu não foram simples entrechoques de idéias. Havia na Renascença uma crise de mentalidade, e não só na inteligência, mas também na vontade o veneno penetrara.

O modo de agir da Contra-Reforma

Evidentemente, a Contra-Reforma deveria solucionar esta crise de duas maneiras: em primeiro lugar, tonificando e restaurando o vigor das convicções católicas, nos países atingidos pela influência paganizante e naturalista da Renascença; além disso, coordenando os recursos de todas essas nações para conter as investidas da heresia, e, quiçá, eliminá-la inteiramente.

A terrível parábola do Evangelho do sal insípido que não tem outra serventia, senão o ser atirado pela janela e calcado aos pés pelos transeuntes [Mt 5, 13], não se aplica exclusivamente ao cumprimento dos deveres do clero. Quando em um país as convicções, os sentimentos, o teor de vida, as camadas mais profundas da personalidade como da vida social, estão impregnadas de Catolicismo autêntico e sem restrições, não há heresia que prevaleça nem erro que logre infiltrar-se. Pelo contrário, se a debilidade das convicções, a superficialidade dos sentimentos, a incoerência da vida social com a doutrina da Igreja, fazem de um país outrora católico uma coletividade apenas relativamente católica, não há perigo que não se possa recear para ele no dia de amanhã.

O trabalho de tonificação, radicalização, restauração, revigoramento do espírito da Igreja nos países católicos se impunha, portanto, para Inácio e todos os paladinos da Contra-Reforma, como a grande condição essencial de qualquer triunfo sobre a heresia.

Com isto, o espírito da Companhia de Jesus estava definido. Na Santa Igreja de Deus, naquela época como hoje, não faltavam instituições admiráveis que, produzindo os mais autênticos frutos de contemplação e apostolado, constituíam a alegria das almas santas e o terror dos homens pérfidos. A Companhia não vinha, própria e essencialmente, fazer uma obra diferente. Estudos, colégios, congregações, missões, tudo isto não é exatamente a finalidade da obra de Santo Inácio, mas apenas seus principais e mais constantes meios de ação, quites para ela se valer também de quaisquer outros recursos lícitos, desde que úteis à maior glória de Deus. O programa próprio da Companhia de Jesus, sua finalidade suprema que, insistimos, não é exclusivamente dela, consiste essencialmente nesse empenho pela autenticidade da vida católica nos países e nos ambientes católicos, não só pelo bem que daí decorre, como ainda para a dilatação generosa e invencível desse sadio, autêntico e sólido catolicismo, nas regiões assoladas pela heresia ou pelo paganismo.

Esposo místico da dama Ortodoxia

A Companhia teria falhado em sua missão se tivesse apenas promovido obras geralmente compreendidas e aplaudidas, afirmado as verdades por todos aceitas e apregoadas, ou recomendado os preceitos comumente observados e cumpridos. Por isso ela se esmerou sobretudo em promover, diretamente ou através de terceiros, as obras que o espírito do mundo não pode nem compreender nem aplaudir; defender, com amor particularmente ardente e insistência especialmente apostólica, as verdades que o orgulho humano mais facilmente nega ou deturpa; inculcar o cumprimento dos deveres mais freqüentemente sujeitos à revolta da carne ou da cobiça. Na Cidade de Deus, não veio a Companhia para ser somente um novo palácio, e sim ocupar lugar entre as obras de vanguarda, sendo mais um vigoroso bastião na muralha fortíssima, contra a qual se devem quebrar todas as investidas da cidade do demônio. São Francisco de Assis, sem ter nem pretender o monopólio — aliás, austero — da renúncia às riquezas, foi o trovador e o esposo místico da dama Pobreza. Santo Inácio de Loyola, sem ter nem pretender o monopólio da verdade, foi o esposo místico da dama Ortodoxia.

Grande sentinela dos perigos que ameaçam a Igreja

Evidentemente, não quer isto dizer que a Companhia de Jesus tenha exclusividade em tão alta e nobre tarefa. O jesuíta não possui o privilégio da ortodoxia, como o franciscano não tem o da pobreza, o beneditino o da piedade, o trapista o do recolhimento, ou o dominicano o da ciência. Assim como cada uma dessas Ordens tem sua missão própria, sua faceta mais saliente, sua espiritualidade peculiar, e serve de meio providencial para a manifestação de especiais grandezas e bondades de Deus, a Companhia de Jesus é destinada a ser a grande sentinela dos perigos, mormente daqueles que ninguém ainda vê; o grande remédio dos males, especialmente daqueles que ainda ninguém discerne; o martelo das heresias, sobretudo daquelas cujo murmúrio incipiente ou cuja germinação imperceptível, escapa aos olhos da maior parte dos observadores. Contra a malícia humana e o espírito das trevas, que procuram desnaturar ou falsear nos homens os conceitos das verdades que ainda não conseguiram arrancar, a Companhia de Jesus é o vigia avançado, a muralha resistente, a torre elevada, que permite discernir de longe o inimigo, e quebrar o ímpeto de suas primeiras e mais fortes investidas.

Sendo essa a missão do jesuíta, tal deverá ser sua mentalidade.

(Continua em próximo artigo.)

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio (Março de 2007)

(Extraído dos “Anais do IV centenário da Companhia de Jesus, Ministério da Educação e Saúde, Serviço de Documentação, 1946, pp. 369-382.)

 

Na Anunciação, grandeza e humildade de Maria

Como já o temos afirmado, engana-se quem pensa que os temas preferidos de Dr. Plinio eram de natureza social e política. Seriam, então, os históricos e os culturais? Ou os puramente filosóficos? Nenhum desses. Conquanto seja verdade que navegava por todos eles com desembaraço, discernimento e sabedoria — disto é prova o rico leque de  matérias publicadas nesta revista — os temas com os quais especialmente se regalava eram de índole teológica: a infinitude das perfeições de Deus, as relações entre as três  Pessoas divinas, o Sagrado Coração de Jesus, a santidade da Igreja Católica, etc.

Em conferências que mais pareciam meditações em voz alta, tinha ele predileção em discorrer sobre a Mãe de Deus. Agradava-lhe imaginar, por exemplo, como teriam sido as trocas de olhares entre Jesus e Maria, na gruta de Belém, na casa de Nazaré, no Calvário, no primeiro encontro após a Ressurreição. Ou conjecturar sobre as cogitações que povoavam a alma de Nossa Senhora nas várias circunstâncias de sua vida.

E quais terão sido os pensamentos d’Ela na Anunciação? Sobre este tema, oferecemos nestas páginas ao leitor algumas considerações feitas por Dr. Plinio:

A Anunciação é a festa em que celebramos este fato culminante da história do mundo: Deus, através do Arcanjo São Gabriel, comunica a Nossa Senhora que a Segunda  Pessoa da Santíssima Trindade haveria de assumir nossa natureza, a fim de resgatar o gênero humano.

As circunstâncias em que se realizaram esses eternos desígnios do Altíssimo não poderiam ser mais singelas nem mais maravilhosas.

Em sua modesta casa de Nazaré, uma Virgem, há pouco desposada com um varão igualmente virgem, encontrava-se imersa em subidas contemplações. De modo muito piedoso e razoável, supõe-se que Maria, com base no Antigo Testamento, procurava meditar e imaginar como seria o Messias, de cuja mãe desejava ser a mais dedicada das  servas.

Pode-se conjecturar que, ao completar Ela no seu espírito a composição da figura do Salvador, apareceu-Lhe o Anjo dirigindo-Lhe as célebres palavras: “Ave, ó cheia de graça, o Senhor é contigo; bendita és Tu entre as mulheres”.

E Maria se perturbou, perguntando-se o que significava aquela saudação. Um Anjo tão eminente, tão extraordinário, aparecer a Ela, tão pequena! (a seus próprios olhos), e   chamá-La “cheia de graça”? Ela estava, então, repleta dos dons divinos? “Bendita sois Vós entre as mulheres”, quer dizer que, em meio a todas as filhas de Deus que houve, há e haverá até o fim dos tempos, Ela seria a bendita por excelência? Existiam tantas mulheres santas no Antigo Testamento, e quantas outras ainda viriam pela história afora, e justamente Ela era a escolhida? Na sua humildade, Maria ficou perplexa: “Como é isto? É um Anjo que está falando, mas não compreendo como suas palavras se podem aplicar a mim”.

O celeste mensageiro, por sua vez, responde de forma curiosa, pois assim começa: “Não temas, Maria”. O que indica que Ela manifestara um certo temor. Mas, concebida sem  pecado original, sem ter sombra da menor imperfeição, como poderia Nossa Senhora ter medo de São Gabriel e do que este Lhe dizia?

Na verdade, na presença de um Anjo, e sobretudo na de um Arcanjo, a criatura humana está colocada diante de um ser de tal densidade que este lhe causa não pequeno susto. Anjos houve que, aparecendo a homens, foram por estes tomados como o próprio Deus. E Nossa Senhora, na sua sensibilidade imaculada e perfeita, sentiu essa presença angélica de forma impressionante.

Além disso, recebendo aquela saudação inusitada, prenúncio dos altíssimos planos do Senhor para com Ela, pode-se bem conceber que em sua humildade tenha temido não   dar cabo da extraordinária missão que Lhe seria confiada.

Perplexidade e receio que só aumentaram, quando São Gabriel, a princípio tranquilizando-A, prosseguiu no seu anúncio: “Não temas, Maria, porque achaste graça diante de Deus. Eis que conceberás em teu seio, e darás à luz um Filho…”, etc.

Ela havia feito voto de virgindade perpétua e, segundo a tradição católica, entendera- se com São José para que ambos permanecessem fiéis aos seus propósitos de castidade  perfeita até o fim da vida. Entretanto, chega-Lhe agora da parte de Deus um aviso que contraria de frente seus mais entranhados anseios. Nova indagação: “Como se fará  isso?”

O Anjo Lhe explica ser a vontade de Deus que d’Ela nasça o Messias, concebido pela ação do próprio Espírito Santo no seu claustro imaculado. Tudo se esclarece. A serenidade e a paz reinam no coração da Santíssima Virgem, que pronuncia então esta frase admirável: “Ecce ancilla Domini; fiat mihi secundum verbum tuum” — “Eis a Escrava do Senhor; faça-se em mim segundo a vossa palavra!”

Quer dizer, esse anúncio era uma palavra vinda de Deus, da qual Ela não podia duvidar. Assim sendo, estava inteiramente à disposição. E desse diálogo, cuja beleza e simplicidade nos deixam abismados, resultou a Encarnação do Verbo!

Mãe de Deus, Esposa do Espírito Santo

Com efeito, a maior parte dos intérpretes afirma que, às palavras “Eis aqui a Escrava do Senhor…”, nesse preciso momento, pela ação do Espírito Santo, Jesus foi concebido no seio puríssimo de Maria.

Quem pode imaginar a fisionomia esplendorosa d’Ela, nessa hora em que a Terceira Pessoa da Santíssima Trindade se tornou seu Esposo, e Ela engendrou o Menino Jesus?!

A adoração que teve pelo Divino Filho, logo no primeiro instante em que, de seu sangue e carne virginais, Ele começou a ser formado? Maravilha tanto mais inimaginável  quanto Jesus, Homem-Deus perfeitíssimo, assim que passou a viver encarnado em Maria, conheceu-A e amou com uma insondável dileção. E os dois começaram a se querer num mútuo amor que durará por toda a eternidade.

Oh assombroso convívio de almas! Por outro lado, devemos considerar o relacionamento d’Ela com o Espírito Santo, seu Divino Esposo. Em geral, no ato dos desponsórios,  costuma o marido oferecer à sua consorte um presente tão rico e magnífico quanto esteja ao alcance de suas posses. Pensemos então no valor das prendas com que o Todo-Poderoso terá adornado a alma de sua fidelíssima Esposa! Que acúmulo de graças e de esplendores! Mais ainda. A partir do Mistério da Encarnação, Nossa Senhora passou a receber d’Ele orientações, diretrizes, atos de amor e consolações de uma sublimidade indizível, que tinham nexo com as relações entre Ela e Deus Pai, entre Ela e seu  adorável Filho. Assim se estabeleceu um convívio altíssimo, em que Maria era, a um título único e muito especial, a Filha do Pai Eterno, a Mãe do Verbo Encarnado e a    Esposa do Divino Espírito Santo.

Virgindade, humildade e grandeza

Analisado esse comércio de almas entre Nossa Senhora e a Santíssima Trindade, voltemos nossos olhos para as virtudes e predicados marianos que transparecem de modo  singular na Anunciação.

Em primeiro lugar, a pureza. Ela é a Virgem das virgens, e o foi antes, durante e depois do parto, não perdendo sua integridade um só instante. E todo o procedimento d’Ela  durante o fato da Encarnação revelou-se perfeitamente virginal.

De outro lado, consideremos a humildade de Nossa Senhora; como Ela se fez pequena em toda a medida, ao se ver abençoada pelo Altíssimo de uma forma tão extraordinária. Era Ela quem Deus havia destinado, desde todo o sempre, para ser sua Mãe, porque A julgou digna de semelhante missão. Ele preparou a alma e o corpo  d’Ela, para que em tudo fosse inteiramente proporcionada — tanto quanto o pode ser uma criatura humana — à honra da maternidade divina. Porém, Ela que era digna por  excelência, não fazia de si uma alta ideia, nem se deixava levar por conceitos enfatuados de sua própria pessoa. Não! Pelo contrário, ficou perturbada, pois julgava aqueles elogios feitos pelo Anjo inteiramente descabidos para Ela. Mas, bastou que São Gabriel Lhe convencesse de que tal anúncio vinha de Deus, para Nossa Senhora se submeter.

Assim, da humildade e da pureza conjugadas em Maria Santíssima, resultou sua aceitação dos desígnios do Pai Eterno a respeito de seu Divino Filho.

Terceiro predicado a se ressaltar: no momento em que concebeu o Verbo Encarnado, Ela inteira foi elevada a uma condição superior a todos os Anjos e a todos os Santos  reunidos. Ou seja, se somássemos toda a santidade que houve, há e haverá em todos os Anjos e Santos, desde o começo até o fim do mundo, e comparássemos esse resultado  com a perfeição de Nossa Senhora, Ela se mostraria incomparavelmente mais santa do que toda essa montanha de virtude que Deus foi suscitando na Igreja ao longo dos  séculos!

O que significa não podermos ter noção de qual foi e é a grandeza espiritual da Santíssima Virgem. Se Moisés, ao suplicar a Deus a graça de poder vê-Lo, ouviu esta resposta:  “Tu não me podes ver, porque, se me vires, morrerás”, somos levados a cogitar no que nos aconteceria, se nos fosse dada a suprema felicidade de contemplar nesta vida a face  de Nossa Senhora, com todo o seu esplendor e formosura. Quem sabe, não morrer íamos também…

Na Paixão de Jesus, outro “fiat mihi” Agora, a esse momento de submissão e grandeza de Maria, no início da existência terrena de Jesus, corresponde outro ato de suma  humildade d’Ela — não menos grandioso — quando seu Divino Filho estava prestes a expirar na Cruz. Ele viera ao mundo a fim de resgatar as criaturas humanas do pecado, obter- lhes o perdão do Pai, e abrir novamente as portas do Céu. Essa augusta missão do Filho de Deus estava presente no fundo de quadro das meditações de Nossa  Senhora, e Ela provavelmente compreendeu que a Anunciação do Anjo comportava tudo isto: as promessas, o futuro, a glória, mas também o preço da glória: a dor!

Assim, chegado o tempo da Paixão, Deus quis o consentimento da Santíssima Virgem para que o Filho d’Ela fosse imolado, e Ela mesma O oferecesse como vítima expiatória por nossas culpas. Se outros fossem os desejos de Nossa Senhora, Jesus não sofreria a morte, Deus o libertaria das mãos de seus inimigos, e sua vida teria um rumo diverso.

Contudo, a humanidade não seria resgatada. Por isso Nossa Senhora consentiu no holocausto do Divino Redentor. Ela O contemplava estertorando na Cruz, Ela o ouvia exalar esse brado lancinante: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?”, e aceitava que tudo isso acontecesse, para o gênero humano ser redimido e as almas poderem entrar na bem-aventurança eterna.

Como era desígnio de Deus que Ela quisesse, Ela quis! E foi este o seu outro “ecce ancilla Domini, fiat mihi secundum verbum tuum”, de extrema e verdadeira beleza.

Imitemos Nossa Senhora da Anunciação

Para encerrar, recolhamos um fruto concreto dessas reflexões. Encarnando-se no seio de Maria Santíssima, no momento da Anunciação, Jesus se deu a Ela com um tal amanhecer de alma, com um espírito tão cheio de louçania, que não se tem palavras para descrever a felicidade que nesse dia inundou a pessoa de Nossa Senhora.

As promessas eram superlativas! Nada menos que o resgate do gênero humano. Entretanto, o próprio fato da Redenção, com os sacrifícios indizíveis que comportaria para  Mãe e Filho, indica bem como caminham as promessas de Deus: passam pelas esperanças mais alegres e pelos desmentidos aparentes mais terríveis. E a alma tem de ir se  habituando às promessas, às alegrias e aos pretensos desmentidos, como o fez Nossa Senhora. Ela disse “sim” a tudo, e dessa inteira submissão Lhe adveio toda a sua gloriosa  dignidade.

Pois a verdadeira glória consiste, antes de qualquer coisa, em aceitar e fazer sempre a vontade de Deus.

Eis a conseqüência que para nós devemos tirar: nos momentos de alegria e, sobretudo, nos de dor e provação, saibamos imitar Nossa Senhora, dizendo “sim” aos desígnios de  Deus a nosso respeito.

À maneira de uma gota de orvalho em que se reflete o sol, saibamos espelhar em nós as virtudes de Nossa Senhora da Anunciação, isto é, sejamos humildes, pequenos, mas  fortes, puros e confiantes. Que do entusiasmo de nossa pureza, de nossa força e de nossa confiança partam contínuos atos de amor e glorificação a Nosso Senhor Jesus Cristo, a Maria e à Santa Igreja Católica Apostólica Romana!

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Santo Agostinho – Águia de Hipona

A águia, no momento em que está levantando seu voo, é muito bonita.

Porém, ainda mais belo é o pensamento humano, quando expresso de tal modo que se possa perceber o seu voo. Assim é Santo Agostinho: em seus ímpetos de alma, mostra um voo incomparável.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

São José – Modelo de castidade e de força

Para se formar uma ligeira ideia de quem foi São José, dever-se-ia tomar a Divina Face do Santo Sudário de Turim e deduzir, à maneira de suposição, a fisionomia moral do homem escolhido para ser o pai adotivo de Quem tem aquele rosto sagrado, do homem que foi o esposo da Mãe d’Ele, Aquela que era a sede da Sabedoria e o espelho da  Justiça.

Pai do Leão de Judá e consorte de Nossa Senhora, São José teria de ser um modelo de fisionomia sapiencial, modelo de castidade e de força. Um varão de santidade  inimaginável, a quem coube a sublime missão de governar o Filho de Deus e a Santíssima Virgem.

Plinio Corrêa de Oliveira

São José

Depois de Maria Santíssima, São José foi o mais elevado expoente de virtudes da humanidade. Brilha nele a chama da caridade. Um intenso amor de Deus, uma  espiritualidade e uma vida interior admiráveis fazem de sua alma objeto da complacência da Santíssima Trindade.

Este homem humilde foi chamado a participar de acontecimentos dos quais decorreram os mais notáveis fatos da história do mundo. Pela sua admirável correspondência à graça, São José colaborou de modo eminente no plano divino da Redenção e, desse modo, é merecedor de grande parcela da glória que, legitimamente, cabe ao Divino  Salvador, pela imensidade de benefícios com que nos cumulou.

Plinio Corrêa de Oliveira

Santo Eulógio – Lutou como um leão

Em todas as perseguições sofridas pela Igreja, existiram duas correntes entre os católicos: a do heroísmo e da acomodação. Santo Eulógio, mártir, lutou valentemente contra os acomodatícios, tendo uma forma de coragem mais meritória do que a própria coragem do martírio.

 

A respeito de Santo Eulógio, diz o Martirológio Romano:
Santo Eulógio foi presbítero e mártir, e na perseguição dos sarracenos foi açoitado, esbofeteado e degolado à espada, em consequência de sua intrépida e gloriosa confissão de Cristo. Foi quem descreveu o martírio de vários santos de Córdoba, durante esta cruel perseguição. Século IX.

Perseguido pelos muçulmanos e pelos cristãos acomodados

Em Rohrbacher(1) encontram-se os seguintes dados biográficos sobre este Santo:
No ano de 850, desencadeou-se em Córdoba violenta perseguição muçulmana contra os cristãos. Dentre as várias vítimas destaca-se o sacerdote Eulógio, pertencente a uma das famílias mais consideradas da cidade, e que escreveu os combates gloriosos daqueles que morreram pela fé. Será o defensor de vários cristãos que se apresentaram voluntariamente ao martírio, e por isto foram criticados como temerários.

Os muçulmanos, espantados de ver tantos cristãos correr ao martírio, temeram uma revolta e o fim de seu domínio. O califa Abdéramo reuniu os conselheiros e ficou resolvido que prenderiam ou matariam quem quer que falasse contra o profeta.

Os cristãos então se esconderam e vários fugiram, durante a noite, disfarçados e mudando, muitas vezes, de esconderijo. Outros, não querendo fugir nem esconder-se, renunciaram a Jesus Cristo e perverteram os outros.

Vários, tanto sacerdotes como leigos, que antes louvavam a constância dos mártires, mudaram de opinião e passaram a tratá-los de indiscretos, alegando mesmo a autoridade da Escritura para sustentar suas opiniões.

Estes, que desde o começo desaprovaram o comportamento dos mártires, queixavam-se amargamente de Santo Eulógio e de outros sacerdotes, os quais, encorajando-os, haviam atraído a perseguição.

O califa fez reunir em Córdoba os metropolitanos de diversas províncias e estabeleceu-se um concílio para acharem um meio de apaziguarem os infiéis. Na presença dos bispos, um escrivão riquíssimo, cristão, mas que tinha medo de perder o que possuía, atacou rijamente o sacerdote Eulógio. Ele havia sempre censurado tais mártires e pressionava os bispos a pronunciarem um anátema contra os que quisessem imitá-los.

Por fim, o concílio publicou um decreto que proibia dali em diante que alguém se oferecesse ao martírio. Mas em termos alegóricos e ambíguos, segundo o estilo da época, de sorte que servia para contentar o califa e o povo muçulmano, sem todavia censurar os mártires, quando se penetrava o sentido das palavras do decreto.

Santo Eulógio não aprovava tal dissimulação. Lutou contra ela durante muito tempo, duramente perseguido pelos muçulmanos, mas também pelos cristãos acomodados.

Finalmente, firme na defesa dos mártires voluntários — no que teria um fiel aliado, séculos mais tarde, na figura de São Francisco de Sales —, foi decapitado no ano de 859.

Um problema moral

Havia aí dois problemas: o moral e o político.

Antes de considerar o problema moral, analisemos uma situação psicológica.

Para muitas pessoas é um tormento insuportável passar uma vida de corre-corre e de foge-foge. É-lhes muito duro estar de um lado para outro, fugindo da morte que os espreita. É-lhes mais suave — nas horas de maior dificuldade e quando têm coragem — se apresentarem às autoridades e dizerem que são mesmo cristãos, e assim resolver o caso.

Essa situação psicológica, que em última análise é compreensível, traz consigo um problema moral: ou a pessoa não se defende com todas as possibilidades que tem, ou até se apresenta à autoridade que vai matá-la. Isso não constitui um suicídio?

É uma questão moral que se compreende.

Santo Eulógio era de opinião — assim como depois São Francisco de Sales — que isto não constitui suicídio, e que o modo de proceder dos católicos que estavam neste caso era correto. Por causa disso, vários católicos se apresentaram ao martírio e foram mortos. E isto induziu o sultão de Córdoba a perceber que o número de católicos residentes nessa cidade ainda era muito grande, e a desejar, portanto, exterminá-los.

Essa atitude feroz do sultão teria sido então, em parte, desencadeada por causa do procedimento de Santo Eulógio e dos católicos radicais.

E um problema político

Aparece, então, o problema político. A Espanha fora, no tempo dos visigodos, uma nação católica, e a massa da população espanhola continuava católica. Havia uma grande quantidade de mouros ali residentes, mas também um número enorme de católicos, e era até tolerada a Religião católica. Tolerada, naturalmente, com a condição tácita que todas as tolerâncias impõem, e que é a seguinte: a não permissão de que os católicos empreendessem uma ação muito vivaz. E como consequência, os bispos seriam acomodados, tolerantes e dispostos a aceitar tudo, de maneira tal que guiassem os católicos numa política de submissão e de capitulação, a qual ao longo dos decênios haveria de produzir uma debilitação, e quem sabe até um eventual desaparecimento da Fé em terras de Córdoba.

À vista da multiplicação dos católicos que se apresentavam para o martírio, as autoridades maometanas resolveram convocar um concílio, para que este concílio de bispos acomodados condenasse os católicos vigorosos e, pela voz dos bispos, os bons ficassem desmoralizados.

Santo Eulógio certamente tinha muito maior facilidade em pregar contra Maomé do que contra os bispos acomodados, que o desmoralizariam. Realizou-se o concílio, e um escrivão, que era muito rico — em geral os homens muito ricos não querem ouvir falar em morrer e nem em martírio —, fez um discurso em que acusava Santo Eulógio e seus companheiros. Terminado o discurso, o concílio condenou os acusados. Mas esta condenação evidentemente era falsa, não tinha fundamento, e Santo Eulógio continuou valentemente a sustentar seu ponto de vista. Tal foi sua intrepidez, que acabou ele sendo decapitado, morrendo mártir.

Duas correntes: a do heroísmo e a da acomodação

Qual a lição que devemos tirar daí? Que em todas as épocas da Igreja, e em todas as perseguições que ela sofreu, existem duas correntes: a que quer ser fiel, e a corrente acomodatícia, daqueles que preferem um negócio qualquer com o qual a Fé sofra prejuízos, mas que eles possam morrer tranquilamente nas suas camas, levando uma vida tanto quanto possível agradável.

Existem, portanto, a corrente do heroísmo e a corrente da acomodação, do pacto, da traição.

Há católicos, por exemplo, que dentro do mundo revolucionário de hoje querem precisamente uma acomodação, em vez da luta contra o espírito do mundo.

Santo Eulógio lutou como um leão e passou pela dura provação de ser condenado pelo episcopado. Pode-se imaginar quanto isto deve doer na alma de um Santo! Entretanto, ele soube resistir também a isto, e nos deu um exemplo de que devemos amar tanto a Igreja e as instituições eclesiásticas, que estejamos dispostos a sofrer, por amor e fidelidade a elas, a pior das coisas, que é a oposição, e eventualmente até a condenação de autoridades eclesiásticas acomodadas as quais combatem, dentro da Igreja, o filão áureo do heroísmo e da dedicação total.

Devemos pedir a Santo Eulógio esta forma especial de coragem, muito mais meritória do que a própria coragem do martírio.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 10/3/1967)

 

1) Cf. ROHRBACHER, René François. Histoire Universelle de l’Église Catholique. 3ª ed. Vol. 12. Paris: Gaume Fréres, Libraires-éditeurs, 1857. p. 40, 52, 53, 233 e 242.

Fundador da Ordem de Cister

Santo Estêvão Harding, juntamente com dois outros bem-aventurados, fundou a Ordem de Cister como reação contra a decadência da Ordem dos beneditinos. Cister teve um enorme progresso com a entrada em suas fileiras de São Bernardo, o homem da mortificação e da polêmica, que esteve em luta estrênua contra todos os adversários da Igreja do seu tempo.

 

Pretendo fazer um comentário em torno de alguns dados biográficos(1) sobre Santo Estêvão Harding.

Origem da Ordem de Cister

Estêvão Harding, filho de um gentil-homem inglês, consagrou-se muito jovem à vida monástica, na Abadia de Sherborne, em Dorset. Enviado à França, na Universidade de Paris cursou brilhantemente Humanidades e Filosofia.

Terminando os estudos teológicos, foi para Roma em peregrinação. Voltando à França, decidiu conhecer Molesmes, atraído pela reputação dessa casa. Molesmes, embora dirigido por São Roberto e o Bem-aventurado Albéric, decaíra sensivelmente, talvez pelas riquezas que então possuía. Os dois santos acabaram abandonando a comunidade e, conjuntamente com Estêvão e com o apoio do Duque Eudes, de Borgonha, decidiram fundar outro mosteiro.

Essa foi a origem da célebre Ordem Beneditina de Cister, da qual Estêvão foi o prior em 1099 e o redator dos Estatutos, aprovados por Pascoal II.

Em 1109, Santo Estêvão tornou-se abade da nova casa; lutando com ingentes dificuldades para levar os religiosos à vida perfeita e recebendo pouquíssimos noviços, começou a duvidar se seu instituto era do agrado de Deus e rezou para ser esclarecido.

Recebeu então uma resposta que o encorajou e à pequena comunidade que ali vivia.

De Borgonha chegava um gentil-homem acompanhado de trinta companheiros, pedindo admissão naquela casa. Esse nobre é São Bernardo. No ano de 1115, Santo Estêvão construiu Claraval, cujo primeiro abade foi São Bernardo.

E de Claraval surgiram mais oitocentos mosteiros. Nosso Santo veio a falecer em 1134, dizendo não ir para Deus senão com o temor de servo inútil que nada tinha feito de bom. Se o Criador lhe concedera algum dom, temia não ter feito dele todo o uso para o qual o recebera.

Vicissitudes que ocorrem nas Ordens religiosas

Encontramos aqui um desses fatos frequentes na vida das Ordens religiosas, que é a fundação de novos ramos provenientes da Ordem antiga.

Com efeito, há uma dualidade de modos de proceder da graça em relação às Ordens religiosas: todas são dotadas, na sua origem, das graças necessárias para cumprirem a missão que Deus tem em relação a elas; e em geral, pelo menos na primeira fase de sua existência, elas cumprem essa missão.

Porém a partir de certo momento, como acontece em todas as coisas humanas frequentemente – eu não digo por uma fatalidade, nem por uma regra geral que não comporte exceções, mas por uma dessas regras gerais que admitem algumas brilhantes exceções –, as Ordens religiosas passam, depois da era heroica do fundador, dos grandes Santos, dos grandes feitos, por um período de arrefecimento. E esse arrefecimento ou é cortado por alguns novos Santos que aparecem e inspiram, comunicam à Ordem um impulso novo, ou então ela vai lentamente declinando para a decadência. Quando chega a determinado ponto da decadência, abre-se outra alternativa: ou a Ordem religiosa se fecha, ou floresce dando origem a um novo ramo.

Em geral, acontece que quando o ramo novo se forma, ele resplandece com um brilho igual ao da Ordem nos seus melhores dias, e o ramo velho acaba se deixando contagiar pelo ramo novo, e vai acompanhando-o um pouco de longe, como um irmão meio envelhecido acompanha, a duras penas, a marcha do irmão mais novo, mas termina se contagiando mais ou menos e se regenerando, acaba arrastando uma certa vida daí para a frente.

Por que Deus permite que algumas Ordens religiosas morram e por que Ele faz com que outras tenham a sua existência maravilhosamente prolongada, ou por uma continuidade gloriosa que, por vales e montes e sem fundação de novos ramos, marca sempre a sucessão de novas graças dentro do mesmo instituto religioso, ou, porventura, pela abertura de novos ramos? Por que então Deus a umas fecha, ou permite que se fechem, e a outras Ele guia de modo tão maravilhoso?

É que há certas Ordens religiosas, para considerar um aspecto da questão – a qual não se esgota nisso –, que têm um papel perene dentro da Igreja Católica. Elas devem irradiar um determinado perfume do qual Deus não quer que a Igreja seja privada nunca mais, para que tenha sua fisionomia, de maneira que então, de um modo ou de outro, Deus conserva aquilo.

Existem outras Ordens que Deus, na sua infinita sabedoria, julga que não são indispensáveis à economia geral da Igreja. E Ele, então, permite que elas decaiam e desapareçam.

A continuidade da Ordem do Carmo

Entre essas Ordens eu creio que nenhuma apresenta uma continuidade tão maravilhosa quanto a Ordem do Carmo.

Segundo uma tradição muito respeitável – que há todas as razões para se admitir como verdadeira –, a Ordem do Carmo, fundada por Santo Elias, passou por muitos revezes e episódios brilhantes antes da vinda de Nosso Senhor até o aparecimento de São João Batista, o qual, segundo essa tradição, foi essênio e, portanto, pertencia àquele eremitério nas encostas do Monte Carmelo, onde os sucessores de Santo Elias cultivavam a vida religiosa. São João Batista teria sido, então, o maior dos sucessores de Santo Elias.

Com o advento do Novo Testamento e a dispersão do povo hebraico, esse núcleo se transformou na Ordem do Carmo. Depois de muitas vicissitudes, ela foi transladada para o Ocidente devido às perseguições que os maometanos desferiram contra os Lugares Santos.

No Ocidente ela esteve para se fechar, quando Nossa Senhora apareceu a São Simão Stock e lhe revelou a devoção do escapulário – ele era o Geral da Ordem – e veio então uma torrente de graças. Ela decaiu de novo no período de Santa Teresa de Jesus, mas esta e São João da Cruz reformaram de novo a Ordem do Carmo que continuou a brilhar até, pelo menos, a produção de uma de suas mais altas e belas flores, que foi Santa Teresinha do Menino Jesus.

Houve depois o fenômeno da decadência que todos conhecemos. Entretanto, a Providência quis conservar essa Ordem até agora e, segundo profecias privadas dignas de crédito, ela nunca desaparecerá e continuará sempre, de glória em glória, como também de provação em provação, até que volte à Terra o seu fundador, Santo Elias, que deve estar presente nos últimos dias da História do mundo, e lutar contra o Anticristo, ser morto por ele, e ressuscitar.

Há um mistério de união, de sagrada escravidão com Nossa Senhora, e de assistência d’Ela a essa família espiritual, pelo qual ela tem uma longevidade maior do que todas as outras, não só se consideramos sua origem, mas seu futuro também.

Não obstante, foi necessária a reforma empreendida por Santa Teresa de Jesus, que não foi acompanhada por todos, dando origem a dois ramos: os Carmelitas Descalços e os Calçados, entre os quais não faltaram rivalidades ao longo da História. Entretanto, no tempo em que começamos a frequentar a Ordem Terceira do Carmo, edificava-me ver na Igreja do Carmo um altar a Santa Teresinha do Menino Jesus e outro a Santa Teresa de Jesus, que os antepassados espirituais deles de tal maneira tinham combatido.

Assim, dentro da grande paz e cordura interna da Igreja Católica, essa animadversão terminou e as duas Ordens se reconciliaram, e todo o perfume do ramo reformado passou, ao menos de algum modo, para o antigo. A Ordem do Carmo rebrilhou no todo com a glória de Santa Teresa e de São João da Cruz.

Ação que se irradiava à distância

Nós encontramos um fato semelhante na mais antiga das famílias espirituais, não do mundo, mas do Ocidente: os beneditinos.

São Bento foi o Patriarca dos monges do Ocidente, pois o monaquismo ocidental nasceu dele. Ele fundou uma Ordem religiosa gloriosa que se estendeu por toda a Europa, e produziu a conversão de bárbaros numa das situações mais duras da vida da Igreja Católica, que se encontrava internamente devorada por germes de corrupção do paganismo romano, ao qual ela mesma havia combatido. Ademais, esse próprio mundo pagão era hostilizado pelos bárbaros invasores do Império Romano do Ocidente, os quais eram arianos pervertidos por um bispo, Úlfilas, ou completamente pagãos; mas a um ou outro título ambos inimigos da Igreja.

Quando se deu o estrépito tremendo da invasão do Império do Ocidente pelas hordas bárbaras, foram os frades beneditinos que trabalharam para a conversão dos bárbaros, sobretudo na parte mais difícil, ou seja, onde não houvera Império Romano, o Cristianismo não tinha penetrado e se tratava de trabalhar em plena selva.

A conversão da Inglaterra, da Irlanda, depois da Alemanha, da Suécia, da Noruega, da Dinamarca, da Boêmia, da Áustria, em parte da Hungria também, deveu-se ao impulso dessa imensa família religiosa dos beneditinos que trabalhou de um modo altamente prestigioso.

Aliás, prestígio e beneditinismo são coisas quase que indissociáveis. Em toda a vida da Igreja, a Ordem beneditina conservou uma espécie de prestígio e de categoria que ainda tem um perfume do feudalismo medieval. Como eles trabalhavam? Um missionário ia para os povos infiéis, pregava e fundava um convento, em geral edificado em um lugar ermo, onde os monges começavam a cantar, a praticar a Liturgia, a distribuir esmolas aos pobres, a derrubar florestas, a secar pântanos e fazer plantações regulares. Por causa do prestígio que a virtude deles lhes conferia sobre as almas, as populações iam se constituindo em torno dos conventos. Mesmo quando permaneciam solitários, dos povoados iam pessoas visitá-los, e a ação deles se irradiava à distância sobre as cidades, e ajudava a ação do clero secular que nelas se fixava. Era, portanto, uma preciosidade para uma cidade estar a certa distância de um mosteiro beneditino.

Com efeito, não era próprio dos mosteiros beneditinos instalarem-se dentro das cidades. Eles estabeleciam-se sempre fora, até o momento em que as cidades se constituíram em seu entorno e eles não puderam fugir. Mas, propriamente, a ação deles era esse prestigioso apostolado à distância e de atração, que se põe longe a luzir com todo o seu brilho, atrair com todo o seu perfume, e os povos vêm, então, ao encalço do apostolado beneditino.

Enquanto os beneditinos por essa forma convertiam a Europa pagã, os monges de Cluny – que não era um ramo dos beneditinos, mas uma federação de abadias beneditinas autônomas na Europa – preparavam o florescimento espiritual, cultural, artístico, político, militar da Idade Média.

Cluny foi a alma da Idade Média. Não um ramo novo, mas como que um canteiro o qual, de repente, se pôs a deitar perfumes especiais dentro da família beneditina e se irradiou por toda a Europa.

Santo Estêvão funda Cister, Nossa Senhora lhe envia um sinal equivalente ao nascer de um sol

Mas depois de uma gloriosa dinastia de abades, de ter dado ao mundo papas como São Gregório VII, os cluniacenses começaram a decair também. Neste contexto se insere esse episódio acima narrado, de Santo Estevão Harding. Um Santo que procede da Inglaterra e entra num convento beneditino em decadência, onde encontra dois outros Santos; eles não conseguem reerguer os beneditinos decadentes.

Então saem e formam outro ramo, já com uma disciplina muito mais estrita e severa que a dos beneditinos. Começa um apostolado tão pequeno, tão incerto que até o Superior ficou na dúvida se era vontade da Providência que aquilo florescesse ou não, e pediu um sinal.

Nossa Senhora, Mãe de todas as boas iniciativas da Igreja, deu, risonha, o mais belo dos sinais. Chega um cavaleiro, São Bernardo, acompanhado de trinta outros, para enriquecer essa abadia. Mas acontece que chegar São Bernardo não é uma coisa qualquer, é como nascer um sol. Ele é um dos sóis da Igreja Católica, de toda a devoção mariana. O “Doctor mellifluus”(2) que como ninguém elogiou a bondade e a misericórdia da Santíssima Virgem. Por excelência o homem da penitência, da mortificação e da polêmica, que esteve em luta estrênua com todos os adversários da Igreja do seu tempo, principalmente com o homem que pode ser considerado, a meu ver, o vanguardeiro do progressismo; uma figura imunda, heterodoxa, asquerosamente sentimental: Pedro Abelardo.

São Bernardo, com os trinta cavaleiros, deu tal estímulo a esse ramo beneditino novo, que o antigo ficou mais ou menos para trás, e começou o florescimento da Ordem beneditina sob um novo aspecto.

Esse ramo o que fazia? O que realizam ainda hoje os cistercienses: silêncio completo, trabalho manual, estudo, clausura total, apenas saindo de vez em quando para missões, perfumadas com toda a beleza e unção da vida de clausura e que trazem uma densidade de riqueza espiritual especial por causa do caráter contemplativo daqueles missionários. Eles fazem uma missão e voltam de novo para o mosteiro.

Imaginem a sensação de um povo vendo entrar na igreja, subir à tribuna um frade o qual, conforme explicou o vigário que o antecedeu, é um homem que não fala nunca, mantendo um silêncio perpétuo, um prisioneiro voluntário e nunca sai das paredes de seu próprio mosteiro. Um homem, portanto, que ao falar incute susto a milhares de pessoas, uma vez que o silêncio perpétuo é uma coisa que assusta muito, e a reclusão voluntária é uma espécie de imagem da reclusão involuntária e traz consigo as mortificações desse estado.

O homem sobe ao púlpito trazendo uma túnica branca – o contrário dos beneditinos que estão sempre vestidos de preto –, e um escapulário negro, com a tonsura característica, trazendo na face aqueles traços típicos do contemplativo verdadeiro, e que se põe a falar coisas extraordinárias, verdades elevadas, a dizer ao povo, de frente, quais são os seus vícios, a invectivá-los, a estimular à virtude, a polemizar com os adversários. Terminado o sermão, o povo vê com assombro esse homem montar num cavalo ou num burrico e partir sozinho para seu convento, deixando atrás de si as multidões atônitas. Compreende-se qual é o valor e o prestígio desse apostolado.

O reerguimento das várias congregações beneditinas

A Ordem beneditina recebeu de Cluny a sua fisionomia verdadeira. É uma ordem muito pomposa. O Abade de Cluny é um verdadeiro príncipe, usando mitra e báculo como os bispos. Dentro do seu convento, não estava sujeito às ordens do bispo diocesano, mas diretamente ao papa, e ele gozava ali de honras parecidas com a do bispo: usava cruz peitoral, anel, tinha o direito do tratamento de excelência, as pessoas se ajoelhavam para beijar sua mão; era uma miniatura de bispo.

Abadias magníficas com um cerimonial faustoso, a liturgia beneditina é riquíssima, com os objetos mais preciosos, nas igrejas os vitrais mais magníficos. Para a vida privada dos seus monges, as abadias beneditinas eram muito austeras: longos corredores com bancos de pedra, celas pobres. Mas no que diz respeito ao culto divino e à pompa com que se cercava o abade havia o maior esplendor.

Entretanto isso degenerou em abusos. E sempre que um abuso se acentua num sentido, a graça realça a nota no sentido oposto. Então apareceu a Ordem de Cister praticando a pobreza muito mais carregadamente noutro sentido. O abade cisterciense gozando de honras análogas ao abade beneditino, mas cercado de muito menos pompa. Toda a vida cisterciense era muito mais pobre. A reação contra a riqueza tomou tal porte que os cistercienses não usaram mais os vitrais coloridos que os beneditinos utilizavam, achando que aqueles vitrais eram um fator de riqueza contra o qual era preciso reagir.

Então, passaram a usar apenas uns vitrais de tons esbranquiçados para proteger contra a luz. Mas a Igreja Católica, ainda involuntariamente, sempre produz a beleza. Usando esse tipo de vitrais, os monges cistercienses arranjaram jeito de fazer vitrais com cores opalinas lindíssimas. É uma forma de beleza discreta tal que esses vitrais brancos, com tons opalinos, disputam em formosura, junto aos colecionadores e especialistas, com os vitrais policrômicos dos beneditinos da antiga observância.

O que resultou daí? Aos poucos, um reerguimento das várias congregações beneditinas. Quase todas elas receberam uma respiração nova. Apenas não recebeu, é duro dizer, a congregação de Cluny. Ela foi decaindo continuamente até a Revolução Francesa, durante a qual do grande mosteiro de Cluny não restou pedra sobre pedra(3). A cólera de Deus caiu sobre aquilo e ficou completamente arrasado. Existem apenas as relíquias dos Santos fundadores dessa Ordem religiosa e, na cidade de Cluny, alguns edifícios auxiliares – parece-me que restos de estrebaria, outras coisas assim do antigo convento beneditino; o resto desapareceu completamente.

Mas a Ordem Beneditina permaneceu, e os beneditinos da antiga observância ficaram também. Cluny, que era uma federação de conventos, desapareceu. Mas uma porção de conventos continuaram e a Ordem Beneditina começou a apresentar essa diversificação magnífica que faz dela como que um leque com várias cores: os beneditinos antigos, com toda a sua pompa, sua dignidade, com todo o seu esplendor; os cistercienses que eu acabo de descrever; os trapistas, aos quais pertencia Dom Chautard(4), que não são missionários, nem saem jamais do convento, e mantêm um silêncio que nunca interrompem. São as várias modalidades da aplicação da Regra de São Bento.

Uma das glórias da Ordem de Cister

Uma palavra sobre São Bernardo e Pedro Abelardo. São Bernardo era, ao mesmo tempo, um homem dulcíssimo e uma tocha ardente. Ninguém sabia falar de Nossa Senhora com tanta unção quanto ele. São Luís Grignion de Montfort o cita várias vezes e com os maiores elogios.

De outro lado, ele era um polemista tremendo. E como viveu numa época em que a Idade Média já decaía e as heresias se multiplicavam, ele travou tantas polêmicas com pessoas daquele tempo, que um dos papas sob cujo pontificado ele reinou – não me lembro qual – deu a ele uma ordem de voltar a seu convento e não se meter em mais nada, porque estava ateando fogo na Cristandade inteira. Ao que São Bernardo respondeu de modo muito pitoresco que não havia coisa melhor para ele do que isso, porque havia se metido nessas polêmicas apenas para servir a Igreja, mas que não queria outra coisa senão a cela dele, agradecia ao papa a reclusão que lhe impunha, e tinha a consciência tranquila porque estava obedecendo.

Era dele, se não me engano, aquela máxima: “o beata solitudo, o sola beatitudo” – ó bem-aventurada solidão, ó única bem-aventurança. Ele queria realmente apenas a solidão. Como polemista tremendo, alcançou sucessos extraordinários.

Uma vez ele esteve na Alemanha, numa cidade onde se encontrava também o Imperador do Sacro Império Romano Alemão, o mais alto dignatário temporal da Cristandade. São Bernardo entrou na cidade e a fama de santidade e das virtudes dele era tal que o povo foi todo correndo ao seu encontro. E ele teria sido esmagado pela multidão se o próprio Imperador não o tivesse tomado pelos braços e feito montar nele. De maneira que foi um Santo que se apresentou à veneração do universo, montado num imperador. Glória extraordinária para uma época que possuía, muito mais do que outras, o sentido do valor simbólico dessas coisas.

Esse Pedro Abelardo, que foi o maior inimigo de São Bernardo, era um tipo asqueroso. Tornara-se frade e ficara apaixonado por uma freira, uma tal Heloísa. E tinha por ela uns desses amores sentimentais, românticos, que já prenunciam toda a choradeira do século XIX.

Era um homem que queria encontrar o meio-termo entre o bem e o mal, entre a verdade e o erro. Por ser um antecessor da Revolução, os escritores revolucionários o admiram muito. E não ousando atacar São Bernardo de frente, fazem insinuações usando fórmulas como, por exemplo: “Pedro Abelardo teve de sofrer a oposição fogosa e implacável de São Bernardo; precisou aguentar os raios que São Bernardo deitava contra ele”. Mas ele apanhou de fato e foi derrotado pelo santo Abade de Claraval. Por causa disso a luta contra ele representa uma das glórias da Ordem de Cister.            v

 

Plinio COrrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 17/4/1971)

Revista Dr Plinio 264 (Março de 2020)

 

1) Não dispomos dos dados bibliográficos da obra citada.

2) Do latim: Doutor melífluo.

3) Posteriormente reconstruída.

4) Jean-Baptiste Chautard (*1858 – †1935). Abade de Sept-Fons, França, autor da obra A alma de todo apostolado.

Castidade comunicativa

São Casimiro era tão casto, que comunicava aos outros o desejo de serem puros. É bonito este fato, porque muitas vezes encontramos pessoas puras, mas a quem a Providência não deu esse dom de tornar comunicativa sua pureza. Sabe-se que são puros, admira-se, presta-se homenagem, mas sua virtude não é comunicativa.

Ora, uma das melhores formas de fazer apostolado é ter essa virtude comunicativa que passa de uma pessoa a outra como que por osmose. Às vezes isto acontece, e castidade comunicativa é um dom enormemente precioso para se fazer apostolado.

Mas como Deus está irado com o mundo, dons como esse se tornam raríssimos. Por isso precisamos recorrer a um São Casimiro no século XV para compreender o que é a pureza convidativa e irradiante, a qual atrai as pessoas para a virtude que é o contrário da impureza, da voluptuosidade também conquistadora, a qual arrasta para o mal.

A virtude arrastando para o bem é algo que pouco se vê em nossos dias e, no entanto, dá tanta glória a Nossa Senhora!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 3/3/1967)

Divina seriedade de Nosso Senhor

Os algozes fizeram terríveis brutalidades contra Nosso Senhor, por ódio à virtude que n’Ele transparecia de modo tão magnífico. Quem chegasse perto do lugar onde Jesus estava sendo flagelado, ouviria lancinantes brados de dor, entretanto, mais harmoniosos e belos  que os sons de qualquer orquestra.

Se considerarmos Nosso Senhor ao longo da sua peregrinação durante os três anos da sua vida pública, de um lado para outro pregando às multidões, quer no primeiro ano  que foi gaudioso, em que a obra d’Ele iniciou-se e mais ou menos encantou todo o povo de Israel; quer no segundo, quando as dificuldades começaram a aparecer; quer no  terceiro, o qual foi dramático, chegando até o Gólgota e o “Eli, Eli lammá sabactâni” (Mt 27, 46) – Meu Deus, Meu Deus, por que Me abandonaste? –; em quaisquer desses  anos, como imaginaríamos Nosso Senhor?

Majestosa e serena tristeza de Nosso Senhor

Andando alegre de um lado para o outro, satisfeito, com a fisionomia contente, comentando despreocupadamente e de modo agitado os aspectos engraçados das coisas? Ou  com um fundo de tristeza amenamente presente na sua personalidade, marcando seus divinos olhares e tudo quanto Ele dizia e fazia, exprimindo-Se aos homens em termos de um tratamento afável, doce, bondoso, mas também com um fundo de tristeza não dramática, nem lancinante, mas habitual, estável – para empregar uma comparação  que não me satisfaz inteiramente, mas que diz algo –, um olhar que tivesse algo de luminoso, resplandecente, de tristonho como o luar?

Sem dúvida, esse olhar assim tristonho, mas resignado, atento, afável, bondoso, exprimiria o fundo da alma d’Ele.

Trata-se de saber por que essa majestosa, serena, imensa, afável tristeza de Nosso Senhor enchia de tal maneira  a alma d’Ele. Começo por me perguntar que relação há entre esse olhar e a seriedade, e concluo ser esta a própria seriedade do Redentor. Não havia outro modo de ser sério. Ora, se era essa a seriedade d’Ele, não deve ser também  essa a nossa seriedade?

Se isso é assim, devemos nos indagar qual a razão pela qual sua tristeza era tão grande quanto a amplidão de suas vistas.

Na divindade d’Ele não podia haver tristeza. Deus é de tal maneira perfeito, excelso, admirável, que n’Ele não cabe consternação. Havia tristeza na humanidade santíssima de Nosso Senhor. Mas essa natureza humana estava ligada hipostaticamente à Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, constituindo uma só Pessoa continuamente na visão  direta de Deus, no oceano de suas perfeições e de sua felicidade infinita e imperturbável por todos os séculos dos séculos sem fim.

Logo, essa tristeza não poderia vir de Deus, mas só do Homem. Porque Nosso Senhor veio à Terra como Redentor e se encarnou para nos resgatar, morrendo na Cruz como   Homem-Deus e fazendo, portanto, que um Homem oferecesse um sacrifício infinitamente precioso que perdoasse o pecado original e os pecados posteriores, e abrisse o Céu.

Então, torna-se claro que esse sofrimento só poderia vir do Homem. Como um Ser que era Deus, e de tal maneira participava dessa felicidade infinita do Onipotente, podia ter tanta infelicidade, tanta tristeza a propósito dos homens que são tão menos do que Deus?

Dir-se-ia que seria mais ou menos como se eu – vou falar em termos mundanos – recebesse de repente de herança uma fortuna inestimável, imensa, e no mesmo dia, ao  partir uma fruta, corto um pouquinho o dedo. Aqui está um pequeno incômodo que coincide com uma causa de felicidade extraordinária, mas nem se pensa nele. Se à noite   o dedo estiver molestando, começa-se a dar conta de que nele houve um corte de manhã, porque se pensou o dia inteiro na felicidade e na alegria em ter ganho uma fortuna.

Com a devida reverência aplicada à comparação, poder-se-ia dizer que a tristeza causada pelos homens em Deus seria pequena perto de sua infinita jubilação. Isso se explica  da seguinte maneira: Deus ama os homens com amor infinito, e por causa disso Ele quer ter o amor dos homens. Um amor deseja a paga, a retribuição, e quando não é  retribuído sofre de um padecimento tão profundo, que chegava a penalizar desta maneira o Verbo de Deus encarnado. Ele possuía um conhecimento direto, imediato de  todas as coisas. Olhava para todos os homens e conhecia – nem sei se se pode chamar discernimento dos espíritos – os estados de espírito deles.

Ponto de gravidade em torno do qual todos os homens devem girar

Deus via essa atitude dos homens que era de não O amarem: o povo eleito voltado completamente para as abominações que conhecemos; os outros povos para idolatrias e  pecados que enchiam todo o mundo de então. E Ele se sentia não retribuído no seu amor infinito, que não é o sentimento comum, por exemplo, de um professor que se  dedica muito aos alunos e vê que estes não reconhecem.

É uma coisa muito diferente. Sendo Deus, Ele era infinitamente digno do amor dos homens; e estes, recusando o amor do Redentor, ficavam péssimos, totalmente  recusáveis, porque o ponto de gravidade em torno do qual todos os homens, e cada homem em concreto, devem  girar é Ele, que é infinitamente bom, infinitamente santo, e  em função do qual todos nós devemos fazer gravitar a nossa vida. Ele é o Astro divino, o Sol divino. Nós somos os planetas que satelitizam em torno do Sol, e não olhamos  para Ele, nem queremos olhar. Vendo assim as criaturas que Nosso Senhor ama tanto, chega a causar n’Ele essa tristeza.

É uma tristeza por ver a falta de virtude; dos homens o Criador só quer virtude. O homem pode ter o que quiser, se não possuir virtude, por assim dizer, não interessa a Deus. E se Ele toma posição face ao homem é apenas com desejo de que se torne virtuoso e semelhante a Deus para se amarem. Ele rejeitado, a sua tristeza enche a Terra, mais ou  menos como  a luz do luar cobre de tristeza o céu.

Devemos querer que tudo seja semelhante a Jesus Cristo

Isto é um dos traços da divina seriedade de Nosso Senhor Jesus Cristo. E nós vamos ver que os Apóstolos, os mais chegados a Ele, antes de Pentecostes estavam cheios de  coisas destas.

Prestavam atenção em coisas terrenas, humanas, e tendo entre eles Nosso Senhor Jesus Cristo, levaram um tempo enorme para perceber e reconhecer que Ele era o  Homem-Deus, simplesmente porque não tinham apetência daquelas virtudes, não as amavam, e por isso seu entusiasmo não era ascendente, alpinístico, não escalava os cumes. Mas era um entusiasmo dos charcos, dos pântanos. Por exemplo, quando os Apóstolos caminhavam com Jesus para o Horto das Oliveiras, é possível que Ele os tenha  repreendido, dizendo: “Daqui  a pouco iremos orar e vocês vão dormir, enquanto o Filho de Deus começará a padecer.” Naturalmente, os Apóstolos, ligados a   brincadeiras e coisas semelhantes, dormiram. Depois, o resto nós conhecemos… Vamos transladar isso para nós.

Somos meras criaturas. Não temos, portanto, a união hipostática com Deus, mas fomos batizados e em consequência do Batismo começou a viver em nós a graça, que é uma participação criada na própria vida incriada de Deus. E há alguma coisa que não deixa  de ter vaga semelhança com a união hipostática. Nós somos os templos do Espírito  Santo. Isto posto, a grande preocupação nossa na vida é de notar na Igreja Católica, nos  Santos que Ela gerou, nos seus Institutos, nas páginas luminosas de sua História, aquilo que é santo e, portanto, lembra a Deus, a Nosso Senhor Jesus Cristo, porque nós amamos o que é parecido com Ele. Isso é o mais importante de nossa existência, como para Ele o centro da vida terrena era viver  na união hipostática e querer que os   homens recebessem a graça e O adorassem como Homem-Deus.

E, portanto, a nossa grande alegria – se somos fiéis ao nosso Batismo e coerentes na nossa Fé – deve ser ver que os homens estão amando Nosso Senhor, e que tudo no  mundo se passa de acordo com o Espírito, a Lei d’Ele, como se Jesus estivesse presente. Não queremos para nós outra coisa: que tudo seja semelhante a Ele.

Devemos ter um fundo de seriedade luminosamente triste

Sem dúvida, eu admiro Paris, descontados todos os aspectos mundanos. Porém, se me dessem para escolher entre viver naquela cidade, onde o pecado deixou tantas marcas e o amor de Deus algumas coisas tão maravilhosas – a Catedral de Notre-Dame, por exemplo –, ou numa localidade habitada pelo povo mais vulgar, mais desvalido, mais inculto da Terra, mas onde todos  amassem verdadeira e sinceramente a Deus, eu preferiria viver naquele povo, e sairia de Paris voando.

Porque, embora Paris seja tudo quanto é, e Notre-Dame signifique tanto para mim, prefiro ver almas e não apenas pedras, inteiramente segundo Deus, que amam o Criador em espírito e verdade, e tratando com elas tenho a impressão fundada e viva de discernir o Espírito Santo presente em cada uma. Por isso, quero ir para lá ainda que as  pessoas só usem uns tecidos grosseiros feitos de palmeira, comam apenas uns peixes ordinários que se pescam no rio local. Se nelas estais Vós, meu Senhor e meu Deus, é lá que eu quero estar!

Não sei se cada um de nós teria a mesma reação, e se faz assim de Deus o sol de sua própria seriedade.

Mas o fato concreto é que na alma do católico deve haver um fundo de seriedade, vaga e luminosamente triste pelas condições abjetas, altamente censuráveis do mundo  contemporâneo. Nós devemos nos sentir censurados, rejeitados, detesta odiados, e – oh, dor! – não porque é nossa pessoa, que pouco vale, mas porque rejeitam o Espírito  Santo que está em nós, recusam em nós a condição de membros do Corpo Místico de Cristo, que é a Santa Igreja Católica Apostólica Romana.

Se conhecessem os meus defeitos e me rejeitassem por essa causa eu os amaria, mas eles têm conhecimento de minhas qualidades e me recusam; então eu me sinto rejeitado no que é mais internamente  meu, naquilo por onde sou mais eu e pertenço a Nosso Senhor como ente batizado e que tem Fé, membro da Santa Igreja Católica. E então há em mim um fundo constante de tristeza, de seriedade triste.

Em Jesus, a seriedade não excluía, por exemplo, que Ele fosse de vez em quando à casa de Lázaro para tomar alguns dias de sossego, de tranquilidade, de bem-estar, de sentir o amor por Ele. Santa Maria Madalena O adorava, como sabemos, Marta O queria, Lázaro O amava e isso Lhe enchia a alma. Mas por toda parte, assim como a lua acompanha os passos do homem que anda pela noite, via-se a tristeza enluarada: “Os homens não querem a Mim porque não amam a Deus. Isto é uma espada que Me vara de alto a baixo.”

Gemidos de Jesus por causa de nossa indiferença

Se nós, uns nos outros, procurássemos apenas o amor de Deus e nos regozijássemos sempre, pensando nesse amor que há em nós, e quando notássemos em alguém uma falta de amor de Deus nos entristecêssemos, como Nosso Senhor, de uma tristeza cheia de amor, de vontade de extravasar- se para aquele a fim de trazê-a Deus; se assim   agíssemos, como a atmosfera em nossas Sedes seria, então, mais próxima do ideal de seriedade que tomamos quando nós participamos de um Retiro, como compreenderíamos mais completamente o que é a seriedade!

Não é porque desejamos que queiram odiassem, eu lhes oscularia as mãos e os pés e lhes agradeceria, porque  execro os meus defeitos. Mas essa gente, que tem a proibição de escrever o meu nome num jornal, odeia o que eu tenho de bom; isso me faz sofrer, me indigna. Não por mim, mas por Nosso Senhor, porque é Ele que estão rejeitando.

Aqui está a matéria-prima, a tintura- mãe de nossa seriedade. Entrando agora na Semana Santa,  contemplaremos as brutalidades, a injustiça, a crueldade que tiveram para com Ele, e teremos presente o tempo inteiro que fizeram isso por ódio à virtude que em Nosso  Senhor transparecia de um modo tão magnífico.

De maneira que, por exemplo, se algumas pessoas chegassem perto do lugar onde Jesus estava sendo flagelado, ouviram lancinantes gritos de dor d’Ele. Mas esses gritos eram mais  harmoniosos e mais bonitos que os sons de qualquer orquestra, mais atraentes que as exclamações de qualquer orador, por mais famoso que fosse.

Ele naquela púrpura de seu sangue, jorrando sobre todo o seu Corpo sagrado, era mais majestoso do que um rei na púrpura de seu manto real. Os carrascos viam isso e O  flagelavam porque queriam a vulgaridade, a indecência, a imoralidade. Então mais flagelavam, e Jesus gemia. Gemia por seu Corpo sagrado – um homem geme quando  sente isso –, porém muito mais por causa das almas tão ruins que O açoitavam, como Ele via o que aconteceria até o fim dos séculos.

Nosso Senhor nos olharia passando a  Semana Santa indiferentes aos gemidos, às dores d’Ele, e diria: “Até vós, a quem Eu chamei para um amor especial? Vós ouvis os meus gemidos, Me contemplais coroado de espinhos, como em outros episódios da minha Paixão, e também sois indiferentes!” E Jesus dando brados e gemidos por causa de nossa indiferença.

Maria Santíssima, fixai em mim as chagas do Crucificado!

Pensem na tristeza de Nossa Senhora diante disso. Provavelmente Ela sofria porque tinha algum conhecimento do que se passava com Jesus. Em suas santas intuições,  contemplando cada brado, cada gemido d’Ele, cada pedaço de carne que os açoites arrancavam e jogavam no chão – a união hipostática continuava com aqueles pedaços de  carne –, Ela, completamente transida de dor, sabia como seria a nossa Semana Santa. Quantas vezes, no lugar onde deveria estar o amor a Ele está o amor a outras coisas, ou quiçá a outras pessoas. Para pegar exemplos que não sejam amizades e afetos de si pecaminosos, suponhamos um amigo de quem gostamos porque é engraçado; de outro  porque é prestigioso e nos prestigia; de um terceiro porque nos admira. São essas as razões pelas quais se deve gostar dos outros, ou é porque eles se parecem com Nosso Senhor?

São Tiago era, por uma razão natural de parentesco intencionada por Deus, muito parecido com Nosso Senhor. De maneira que quando os algozes tiveram medo de errar na escolha e pediram para Judas indicar quem era, ele disse: “Aquele que eu oscular, esse é o Homem” (cf. Mt 26, 48).

Por isso, após a morte de Nosso Senhor havia quem percorresse distâncias enormes para ver o Apóstolo que se parecia com o Redentor. Ora, nós temos a Ele presente na  Sagrada Eucaristia… É Semana Santa. O que fazemos? O que isso arranca de nossas almas? Nós rezamos a Nossa Senhora pedindo- Lhe que ponha em nós as disposições de  alma d’Ela para vivermos a Semana Santa como deveríamos viver?

Há um hino da Liturgia que diz: “Sancta Mater, istud agas, crucifixi fige plagas” – Santa Mãe, fazei isso, prendei em mim as chagas do Crucificado. Isso nós deveríamos  afirmar durante  a Semana Santa. E quando chegar as três horas da tarde de Sexta-Feira Santa e adorarmos a Nosso Senhor na Santa Cruz, pensemos na seriedade e  procuremos sentir fixas em nós as chagas do Divino Redentor. Então peçamos a Nossa Senhora que faça de nós homens que vivam da tristeza de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 29/3/1988)

Revista Dr Plinio 240 (Março de 2018)