A propósito de episódios ocorridos em sua infância, Dr. Plinio pondera como esta vida é um vale de lágrimas, onde os sofrimentos, dramas e problemas são inúmeros e muitas vezes procuram nos abater.
Na Salve Rainha, esta vida recebe o título de “vale de lágrimas”. Quando eu era jovem, ouvia na recitação da “Salve Regina” as palavras “in hac lacrimarum valle — neste vale de lágrimas”, e imaginava os vales que eu via frequentemente na serra existente no caminho de São Paulo a Santos, que naquele tempo se percorria de trem e não de automóvel.
São serranias altíssimas e, às vezes, se via no cimo de um morro brotar uma mina de água de dentro de uma pedra, a qual percorria a superfície da pedra vagarosamente, sem pressa, formando pela espuma como que uns babados de cortina. Tinha-se a impressão de uma cortina de prata com uns bordados de renda, que descia do alto do morro até embaixo.
Eu me lembrava do vale de lágrimas, e pensava: “Então essa vida é como a considera o autor da Salve Rainha(1)? Mas afinal de contas, se eu conseguir coisas desejáveis desta vida: ficar rico, ir à Europa para ver os monumentos do passado da Cristandade, a nobreza do presente, tomar contato com pessoas inteligentes e interessantes, que levam um tipo de existência toda especial, contemplar e oscular o caixão onde está sepultado Carlos Magno, ir à Place de la Concorde, em Paris, onde um amigo me mostrará qual o lugar exato onde estava a guilhotina em que Luís XVI e Maria Antonieta foram decapitados, rezar por eles, fazer um ato de execração contra o crime que então se cometeu, e de desagravo a Deus pelo horror desse crime, e depois continuar o passeio, isso não proporciona felicidade? É um vale de lágrimas ir a Paris, a Roma ou a Madri? Ou, pelo contrário, a afirmação que se faz na Salve Rainha, é equivocada?”
Quando fiquei um pouco mais velho, compreendi.
Tudo na Terra é efêmero e passageiro
Não é que a todo o momento esteja acontecendo uma coisa que nos arranque lágrimas; isso evidentemente não é verdade, graças a Deus. Mas quando ficamos um pouco mais velhos, começamos a pensar no passado e percebemos as ciladas pelas quais passamos já quando éramos meninos. Quantas ilusões, quantas desilusões, quantos “bluffs”, quantas esperanças rachadas!
Mais tarde conhecemos pessoas — será um colega, um parente, um vizinho — que nos parecem pessoas perfeitas, e pensamos: “Se ficar amigo deste, eu terei a minha alma completamente satisfeita.” Aproximamo-nos dele e começamos uma amizade. De repente vemos que tudo é ilusão.
Por quê? Como? Ele, de quem sou tão amigo, é de fato meu amigo? Ou, pelo contrário, quando vê qualquer coisa em mim um pouquinho superior a ele, fica ácido comigo? Se fosse meu amigo, se contentaria, se alegraria em ver-me superior a ele em algum ponto. Mas não: ele começa a querer mesquinhar o que estou fazendo ou dizendo, a caçoar, debicar e, sob pretexto de brincadeira, saem coisas amargas. Esse não é meu amigo, vou procurar outro; e constatamos que tudo é ilusão.
O tempo passa e nos lembramos da expressão francesa: “Tout passe, tout casse, tout lasse… et tout se remplace — Tudo passa, tudo se quebra, tudo enfastia… e tudo se substitui”. Quer dizer, tudo é efêmero. A previsão do futuro aliada à lembrança das desilusões do passado constitui um vale de lágrimas.
Uma desilusão nos tempos de infância
Lembro-me de um episódio de meu tempo de menino de colégio, e que me marcou profundamente. Eu vinha do Colégio São Luís, situado na Avenida Paulista, descendo a pé pela Avenida Angélica até minha casa nos Campos Elíseos, conversando com um colega de minha idade que me parecia um bom rapaz.
Por uma razão da qual não me recordo, nós tínhamos sido os primeiros a sair do colégio, de maneira que íamos na frente; depois outros grupos de alunos vinham descendo por aquela avenida. De repente ouço, bem atrás de nós, um menino que chamava por aquele que estava ao meu lado:
— Fulano! Fulano!
Olhei com o canto dos olhos para o que vinha ao meu lado, para ver o que ele fazia. Ele não respondia e fingia que não estava ouvindo. Mas o outro corria, enquanto nós dois não estávamos correndo, porque nunca gostei de andar muito depressa; eu caminhava devagar, e ele acertava o passo pelo meu.
Resultado: a voz do menino chamando pelo meu companheiro era cada vez mais insistente. Percebia-se que se tratava de um amigo que gostava muito dele e queria estar com ele para conversar. Poderíamos perfeitamente descer conversando os três, é uma coisa banal. Eu nem tinha notado aquele menino no Colégio São Luís, no meio daquela multidão de alunos, mas pouco me incomodava; e pensava: “Deixa entrar um outro na conversa, não tem importância nenhuma”.
O meu amigo, afinal, quando notou que a voz estava se tornando mais próxima, parou, voltou-se de costas e disse num tom amargurado:
— Hum! Mas que pressa e que mania de falar comigo, que coisa cacete! O que quer comigo esse tipo?
Pensei: “Mas ele retribui uma simpatia desta maneira? Amanhã vai chegar minha vez. Ele de repente fica saturado da minha companhia como se saturou daquele menino. Isso é um amigo?”
E o que se deu foi o contrário: antes dele se saturar da minha companhia, eu me saturei da dele e rompi as relações com ele como se arranca uma folha morta de uma árvore.
Quando se vai ficando moço compreende-se como as dificuldades, as incompreensões e as incompatibilidades pelas quais passam os adultos são ainda mais difíceis. Mesmo no seio de uma família feliz aparecem problemas que preocupam o esposo ou a esposa.
Tudo isso se dá porque a vida é um vale de lágrimas. Lágrimas ora pelo que está acontecendo, ora na previsão do que pode vir a suceder.
O tormento trazido por uma doença
Por exemplo, as doenças. Às vezes ouvimos falar de alguém que contraiu um horrível mal, que o faz sofrer muito. São verdadeiros fantasmas. Precisamos entender que de um momento para outro uma doença dessas nos agride.
Algo assim se passou comigo quando eu era pequeno. Acordei fraquíssimo pela manhã. Isso não acontecia comigo; como todo menino, eu acordava alegre, me levantava, ia dizer bom-dia a papai, mamãe, aprontava-me e começava a vida. Nesse dia eu não conseguia nem sentar-me na cama.
Sendo meu quarto contíguo ao dos meus pais, pus-me a chamar:
— Mamãe, mamãe — e ela veio.
Eu disse a ela:
— Estou me sentindo muito mal. Não sei o que eu tenho.
— O que você sente?
— Uma dor de garganta horrorosa.
Ela mandou-me abrir a boca, viu que eu estava com uma inflamação medonha na garganta e chamou o médico. Este era homeopata. Tratava-se de um homem alto, teso, saudável, rubicundo, vermelho, tendo num dos dedos um anel com uma esmeralda linda. A esmeralda era o distintivo dos médicos. Eu, que gosto muito de pedras, quando estava com ele nunca perdia oportunidade de olhar para a esmeralda.
Ele entrou no meu quarto, examinou-me e saiu com mamãe.
Eu não fiquei sabendo o que eu tinha, e estava piorando cada vez mais.
Logo depois, ela veio e me contou que o médico disse a ela o seguinte: “A senhora dê para o Plinio tais remédios de hora em hora. Pouco antes das três da tarde, esteja próxima a ele com uma toalha no colo, pois nesta hora ele deve expelir da garganta uma membrana infeccionada. Ele está com uma doença chamada crupe ou angina diftérica. Se ele expelir a membrana, está curado. Quando ele a expelir, feche a toalha porque a membrana está infeccionada; e mande queimar a toalha com a membrana e tudo o mais. Aí o Plinio está salvo. Se não for assim, terá que se fazer uma operação muito dolorida e perigosa”.
Quando chegou mais ou menos três horas, comecei a dar sinais de mal-estar, inquietação. Ela, que era muito previdente, tinha mandado abrir no quintal da casa uma espécie de tumulozinho para essa membrana. Os micróbios ficariam sepultados ali debaixo da terra.
Quando afinal de contas expeli a membrana, ela mandou uma criada ir correndo jogar nesse lugar a toalha com a membrana e pôr terra em cima, o que foi feito rapidamente. Depois ela foi falar pelo telefone com o médico, para contar que estava tudo em ordem.
Quando o médico atendeu desde o seu consultório, mamãe disse a ele:
— Dr. Murtinho…
— Não precisa me dizer o resto porque pela sua voz eu já vejo. A senhora está contente porque a membrana foi expelida.
— Muito obrigada, foi um alívio.
Pode-se imaginar o que ela sofreu durante essas horas. Sofreu muito mais do que eu —não tem comparação! —, na previsão do que podia acontecer. Essa previsão é um tormento, a vida é mesmo um vale de lágrimas.
Por isso, a única esperança verdadeira que o homem tem nesta vida é a de, no momento em que fechar os olhos com a consciência em paz, alcançar a felicidade eterna. v
Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 24/9/1994)
Revista Dr Plinio 174 (Setembro de 2012)
1) A autoria da Salve Rainha é atribuída ao monge Germano Contracto que a teria escrito por volta de 1050, no mosteiro de Reichenan, na Alemanha.