O espírito pagão leva as pessoas a considerarem a dor como um azar. Entretanto, cada sofrimento pelo qual passamos pode ser comparado a um golpe de cinzel dado por Deus que, à maneira de um escultor habilíssimo, nos modela para o nosso bem, segundo sua infinita sabedoria.
Sois membros de Jesus Cristo. Que honra! Mas quanta necessidade de sofrer por causa disto! A cabeça está coroada de espinhos e os membros estariam coroados de rosas? A cabeça está escarnecida e coberta de lama no caminho do Calvário, e os membros estariam no trono, cobertos de perfumes? A cabeça não tem um travesseiro para repousar e os membros estariam delicadamente deitados entre plumas e arminho? Seria monstruosidade inaudita.
O homem que não se mortifica tem ódio do crucificado
Nós poderíamos aplicar esse trecho da Carta Circular aos Amigos da Cruz(1) – escrita por São Luís Maria Grignion de Montfort – à situação atual da Igreja, Corpo Místico de Nosso Senhor Jesus Cristo do qual somos membros, e que, estando ela coroada de espinhos, poderíamos estar coroados de rosas? Em nossos dias, a Igreja Católica está escarnecida e coberta de lama, no caminho do Calvário; podem seus membros ocupar um trono coberto de perfumes?
Não, não vos enganeis; estes cristãos que vedes de todos os lados, enfeitados na moda, maravilhosamente delicados, excessivamente educados e circunspectos, não são verdadeiros discípulos nem verdadeiros membros de Jesus Cristo crucificado; faríamos injúria a essa cabeça coroada de espinhos e à verdade do Evangelho se acreditássemos o contrário.
Ao se referir aos cristãos excessivamente educados e circunspectos, São Luís Grignion põe o dedo na chaga de um dos aspectos do “Ancien Régime”. A escola de educação e de circunspecção daquela época é uma verdadeira maravilha, mas chegou a um exagero, evidentemente. Porque reduzir todo o convívio social a um perpétuo sorrir e a um mútuo lisonjear contínuo é uma coisa contrária à verdade, à seriedade e à compostura que a vida deve ter, e preparava o rugido da Revolução Francesa, exatamente por esse excesso.
Ah, meu Deus, quantos fantasmas de cristãos se consideram membros do Salvador e são seus mais traiçoeiros perseguidores, porque, enquanto fazem com a mão o sinal da cruz, são, de coração, seus inimigos!
Como nós poderíamos dizer isso hoje! Quantos indivíduos são inimigos da Cruz! Quando alguém está nessas condições, não é só inimigo da Cruz porque não se deixa crucificar, mas há uma coisa sutil: é que o homem imortificado tem ódio do crucificado e da mortificação. Vendo outro que se crucifica, ele se indigna, e quando lhe falam de cruz fica extremamente irritado.
Deus faz com as almas como o pedreiro com suas pedras
Se sois conduzidos pelo mesmo espírito, se viveis da mesma vida que Jesus Cristo, vosso Chefe coberto de espinhos, não espereis senão espinhos, chicotadas, pregos – numa palavra, cruz –, porque é necessário que o discípulo seja tratado como o Mestre e o membro como a cabeça. E se o Chefe vos apresentar, como a Santa Catarina de Sena, uma cora de espinhos e outra de rosas, escolhei com ela a de espinhos, sem hesitar, e ponde-a na cabeça para vos assemelhar a Jesus Cristo.
Não ignorais que sois os templos vivos do Espírito Santo e que deveis, como outras tantas pedras vivas, ser colocados pelo Deus de Amor no edifício da Jerusalém celeste.
A Jerusalém celeste tem aqui na Terra a sua prefiguração na Igreja Católica que, considerada no seu conjunto, pode ser vista como um Templo do qual cada um de nós é uma pedra viva.
Disponde-vos, pois, a ser trabalhados, cortados e cinzelados pelo martelo da Cruz; de outra maneira permaneceríeis como pedras brutas que em nada são empregadas, que são desprezadas e repelidas para longe.
A ideia dele é muito bonita: Deus faz com as almas como o pedreiro com suas pedras: as que deseja aproveitar ele talha, corta, martela, fere de mil modos para adequá-las às finalidades que tem em vista. Enquanto na pedra que o pedreiro rejeita, ele não mexe, não toca. Assim também os homens que sofrem são os que serão aproveitados para a Igreja. Portanto, quando vemos um homem sofrer muito, devemos dizer: “Este é uma pedra que o construtor vai aproveitar.” E o instrumento para talhar as pedras, o modo pelo qual se faz o martírio do homem, é a Cruz. São os sofrimentos sucessivos que sobre a pessoa devem cair.
Tende cuidado para não opor resistência ao martelo que vos bate; prestai atenção ao cinzel que vos talha e à mão que vos molda! Talvez o hábil e amoroso arquiteto queira fazer de vós uma das primeiras pedras de seu edifício eterno e um dos mais belos retratos de seu Reino celeste.
Exatamente as pedras mais lavradas são as que na arquitetura têm mais importância. Também as almas mais sofredoras são as mais aproveitadas para o edifício de Deus.
Devemos aceitar, com amor, a dor inexplicável
Deixai-o fazê-lo, pois. Ele vos ama, sabe o que faz, tem experiência; todos os seus golpes são hábeis e amorosos, nenhum é falso, a menos que o inutilizeis pela vossa impaciência.
Esse é um ponto que muito especialmente nos deve consolar na hora do sofrimento. Muitas pessoas com espírito pagão em face da dor têm uma mentalidade pela qual consideram o sofrimento um azar que desabou em cima delas. Uma coisa que podia não ter caído, mas caiu, e não deve fazer para eles bem nenhum. É um puro horror que aconteceu, está acabado. Nós, pelo contrário, sabemos que Deus nos faz sofrer para o nosso bem. Mas, sobretudo, o que devemos ter em mente é que cada sofrimento pelo qual passamos corresponde a um golpe de cinzel dado por um escultor, um pedreiro habilíssimo que nos toca no ponto que vai nos fazer bem naquela hora. Assim, o sofrimento mais estúpido, mais imprevisto é, entretanto, o melhor para a nossa alma, naquela hora e daquele jeito. Nesse sentido, não é nenhuma forma de azar, mas, pelo contrário, é por excelência a aplicação daquilo que Nosso Senhor diz no Evangelho: a Providência toma conta de cada homem a ponto de até os fios de cabelo de nossa cabeça não caírem sem o seu consentimento (Lc 21,18).
Às vezes vemos acontecerem coisas das quais se diria: “Mas, meu Deus, o menos arquitetônico, o mais maluco é isso! Tudo podia me acontecer, mas isso eu não compreendo”.
Ora, na aparência anti-arquitetônica do que aconteceu talvez esteja o mais arquitetônico. Precisamente aquilo que Deus nos pede, daquele jeito que não quereríamos imaginar, é o que nos deve fazer bem. Neste sentido, Deus é como um cirurgião exímio que nunca corta a não ser onde é preciso. Ademais, ainda que o cirurgião faça um talho enorme, sabemos que foi o menor possível. Conosco também, às vezes, não entendemos bem tanta coisa. Ainda aí foi a mão de Deus que abriu o menos possível, mas nossa alma precisava daquilo e daquele tamanho. Entretanto, tudo foi feito com muito amor, muita consideração e muito propósito.
Portanto, devemos aceitar, ainda que não entendamos, porque o melhor está em não entender a dor inexplicável, o sofrimento que vem sem eira nem beira e cai em cima de nós, mais ou menos como se entrasse de repente aqui um cachorro bravo e mordesse alguém. É esse o melhor sofrimento, com o qual Deus fere aqueles a quem Ele mais quer salvar.
Quem suporta o sofrimento é um elemento escolhido da Igreja
O Espírito Santo compara às vezes a cruz a uma peneira, que purifica o grão da palha e das escórias: sem resistir, deixai-vos, pois, sacudir e agitar como o grão na peneira; estais na peneira do Pai de família e dentro em pouco estareis em seu celeiro.
Aqui também, a expressão é muito bonita. Porque a única seleção verdadeira é a que se pode fazer na dor. Aquele que suporta o sofrimento é o elemento selecionado da Igreja de Cristo. Aquele que não tem padecimento nenhum, afinal de contas, o que vale diante de Deus? Nada, pois não passou por provação nenhuma.
Outras vezes Ele a compara ao fogo que tira a ferrugem do ferro pela vivacidade de suas chamas. Nosso Deus é um fogo que, pela cruz, permanece numa alma a fim de purificá-la, sem a consumir, como outrora na sarça ardente. Outras vezes a cruz é comparada ao cadinho de uma forja, onde o ouro bom se afirma e o falso desaparece na fumaça: o bom sofrendo pacientemente a provação do fogo, o falso erguendo-se como fumaça contra as chamas. É no cadinho da tribulação e da tentação que os verdadeiros amigos da Cruz se purificam pela paciência, enquanto que seus inimigos desaparecem na fumaça por causa de suas impaciências e murmurações.
O papel da tentação aí é muito grande. Tenho encontrado muitas dificuldades em fazer aceitar isso pelas gerações mais novas, que sempre tomam a tentação como sinal de decadência na vida espiritual. É automático: “Fui tentado; logo, estou apetecendo coisas ruins. Se estou apetecendo coisas ruins é porque piorei.” Não é verdade. A tentação pode atingir um santo. Ademais, ela é uma das modalidades mais duras de sofrimento e, por isso mesmo, uma forma de cruz que devemos amar. Nós devemos pedir para a tentação passar, mas nos alegrar por termos sido tentados, e até mesmo pelo fato de a Providência não tirar a tentação de nossa alma, desde que seja desígnio d’Ela. Até lá precisamos chegar.
Embora esses conceitos sejam conhecidos, é sempre bom lembrá-los. Quem de nós não tem algo que o faça sofrer? Oxalá seja uma só coisa… Como receberíamos melhor esse sofrimento se nos lembrássemos do que acabo de dizer, da mão de Deus que deu aquele sofrimento para ser recebido daquele jeito, naquela hora. É evidente.
Inclusive no apostolado o sofrimento é necessário, inteiramente indispensável. Que o apostolado nos traga aborrecimentos, amarguras, é normal. O apostolado que não acarrete aborrecimentos e amarguras não é abençoado por Deus.
Por vezes, as dificuldades no apostolado são tais que nos dão a impressão de abandono de Nossa Senhora. Se nos dedicamos inteiramente a uma obra de apostolado, basta dar início que começam a se multiplicar em torno de nós as dificuldades, às vezes completamente inesperadas, imprevistas.
Pedir o espírito de cruz
Olhai, meus queridos Amigos da Cruz, olhai diante de vós uma grande nuvem de testemunhas que provam, sem nada dizer, o que vos digo. Vede, de passagem, o justo Abel assassinado por seu irmão; o justo Abraão estrangeiro na terra, o justo Ló expulso de seu país; o justo Tobias atingido pela cegueira; o justo Jó empobrecido, humilhado e coberto, dos pés à cabeça, por uma chaga.
Olhai tantos Apóstolos e Mártires cobertos com a púrpura de seu sangue; tantas Virgens e Confessores empobrecidos, humilhados, expulsos, desprezados, que com São Paulo exclamam: “Olhai nosso bom Jesus, autor e consumador da fé que temos n’Ele e na sua Cruz; foi preciso que Ele sofresse a fim de, pela Cruz, entrar em sua glória.”
Vede ao lado de Jesus Cristo um agudo gládio que penetra, até o fundo, no coração terno e inocente de Maria, que nunca tivera qualquer pecado, original ou atual. Como me pesa não poder estender-me falando sobre a Paixão de um e de outro, para mostrar que o que sofremos nada é em comparação do que sofreram!
Depois disto, qual de vós poderá eximir-se de levar sua cruz? Qual de vós não voará depressa para os lugares onde sabe que a cruz o espera? Quem não exclamará, com Santo Inácio mártir: “Que o fogo, o patíbulo, as feras e todos os tormentos do demônio desabem sobre mim, para que eu possa gozar de Jesus Cristo!”?
Essas são considerações muito sabidas, mas que convém sempre relembrar. O que mais me empolga é precisamente a ideia de que o sofrimento foi medido, adequado para mim, embora eu não perceba e, portanto, daquilo nada se perderá.
Para cada pessoa haverá outras dificuldades e soluções a considerar em face do problema da dor. Mas pelo menos quando sabemos que aquilo tem uma utilidade superior, sentimo-nos bem.
Que Nossa Senhora nos dê esse espírito de cruz para nos consagrarmos adequadamente ao Coração Imaculado d’Ela. v
Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 30/9/1967)
Revista Dr Plinio 258 (Setembro de 2018)
1) Os trechos comentados por Dr. Plinio nesta conferência correspondem aos números 27 a 32.