Fortaleza e suavidade

São Pio X realizou maravilhosamente, em sua vida, a síntese de dois aspectos do Catolicismo: fortaleza e suavidade. Acolhedor e afável para os bons e os verdadeiramente arrependidos, foi o martelo inexorável das heresias, não regateando os golpes com que feriu os propagandistas do erro. É este mesmo Papa doce e amável quem acumula, em suas encíclicas, as expressões duras e contundentes contra os semeadores da mentira e da discórdia. Ainda aí havia a inenarrável suavidade do pastor que, por amor de suas ovelhas, acomete corajosa e intrepidamente, sem cuidar de si, a matilha dos lobos esfaimados.
O Modernismo, por exemplo, se apresentava com esta nota inédita: a primeira heresia que não abria luta declarada contra a doutrina oficial, mas se confundia habilmente em manejos tortuosos, procurando aninhar-se no seio da Igreja. Foi São Pio X quem, de espada em punho, saiu a desentocar essa serpente.
Entretanto, embora ferido de morte, o Modernismo ainda continua a empestar os ambientes católicos. Certas mofas contra o valor da apologética, a incoerência em que se diluem os conceitos mais elementares e principalmente tanto laxismo que corre o mundo sob capa de caridade não passam de autêntico Modernismo.
Que as virtudes do grande Papa sejam um estímulo e exemplo para os que combatem os erros da era presente.
(Extraído de O Legionário n. 488, 18/1/1942)

Mãos para confortar quem sofre e esmagar as heresias

São Pio X era para todos os que o visitavam o pai por excelência, de coração inexprimivelmente suave e compassivo. Aconselhou a Comunhão quotidiana e a das crianças, incentivou a devoção a Nossa Senhora e também condenou o modernismo. Fez ver a todos os fiéis que se as mãos de um Papa e de um Santo são maternais para cicatrizar as feridas de quem sofre, sabem esmagar os erros e as heresias.

De origem humilde e não tendo passado pela admirável escola de formação política que é a carreira da diplomacia pontifícia, o Santo Padre Pio X teve de arcar com a sucessão do Papa Leão XIII.

Igreja ameaçada por uma das crises mais complexas e graves

 

Quando este último ascendeu ao trono pontifício, encontrou a Igreja em situação delicadíssima, ameaçada de todos os lados por uma das crises mais complexas e graves de sua História. Desenvolvendo qualidades de inteligência, habilidade e zelo que assombraram o mundo inteiro, Leão XIII, durante um longo pontificado que foi uma série ininterrupta de triunfos, alterou profundamente esta situação crítica.
Com tudo isto, sua personalidade marcantíssima de tal maneira assombrou os contemporâneos que, quando o velho Pontífice expirou, era impressão unânime que o pontificado de seu sucessor ficaria irremediavelmente esmagado pelo confronto inevitável com as glórias dos dias em que reinara Leão XIII. Esta impressão cresceu de ponto quando se soube da eleição de Pio X, cuja personalidade parecia despojada de todos os predicados que em Leão XIII haviam brilhado com tão intenso fulgor. Neste sentido, a imprensa declaradamente ímpia ou simplesmente neutra explorou com uma insistência insolente o contraste entre Leão XIII e Pio X.
Na realidade, não faltavam a Pio X altos predicados de inteligência e cultura, porém, inútil tentar equipará-los ao de seu imortal antecessor. Entretanto, aos poucos, da personalidade do novo Pontífice começou a se irradiar uma luz suavíssima que atraía e iluminava o mundo inteiro. De uma bondade verdadeiramente angélica, de uma piedade que deixava transparecer o mais vivo e ardente espírito sobrenatural, Pio X era para todos os peregrinos que o visitavam, bem como para toda Cristandade, o Pai por excelência, de coração inexprimivelmente suave e compassivo, sempre disposto a acolher a expansão de todas as mágoas, de todos os sofrimentos, de todas as dores que pungem o homem neste vale de tristezas. E para cada qual encontrava sempre a palavra adequada, escolhida com uma finura de tato que só os corações de escol possuem, e revestida de uma eficácia verdadeiramente carismática.
Um rápido conselho, uma palavra, até um sorriso do Papa enchia de luz os corações mais desditosos; mais ainda: sua virtude era comunicativa aos

que dele se aproximavam. Pio X foi típica e caracteristicamente o homem de Deus descrito por Dom Chautard1, estuante de vida interior e irradiando de todos os modos, em sua maneira de rezar, de falar, de agir e até de olhar, a graça de Deus que subjugava os corações mais rebeldes. E, aos poucos, notícias singulares começavam a correr entre os fiéis. Eram curas obtidas pela intercessão decisiva do Servo de Deus. Eram atos e gestos que revelavam um conhecimento sobrenatural dos fatos. Pio X era um verdadeiro Santo. Era esta a voz corrente em toda a Cristandade.

 

Tarefa soberanamente difícil, quase inexequível

Deus governa com sabedoria infinita a sua Santa Igreja, dando-lhe para as ocasiões de crise os Pontífices adequados para o momento. Desbastando o campo doutrinário em que pululavam os erros mais grosseiros, Leão XIII, dotado de zelo apostólico admirável e relevantes virtudes, precisou e definiu os contornos da ortodoxia, ameaçados e a todo momento transgredidos por fautores de ideias novas que quereriam, entretanto, continuar a se dizer católicos. Restaurando os estudos do tomismo; refutando os erros pestilenciais do liberalismo, do socialismo e do comunismo, ele imprimiu ao pensamento católico rumos definitivos e, além disto, lhes indicou as normas de ação adequadas, na imortal encíclica Rerum novarum.
Mas isto não bastava. O erro que deprava a inteligência arrasta a vontade para o mal. A debelação radical de toda a pestilência dos erros que, desde o Humanismo e a Renascença, passando pelo jansenismo, o pombalismo ou josefismo, o filosofismo, etc., se haviam atirado sobre a Cristandade infeliz, exigia uma obra mais profunda.
Era preciso reanimar as vontades tíbias, chamar à virtude as pessoas mal-intencionadas, arrancar o pecador ao seu pecado e inspirar no homem um verdadeiro horror às veredas ímpias seguidas por seus contemporâneos. Um erro se define, se refuta e se condena. É tarefa árdua, mas francamente realizável. Porém retificar uma vontade sinuosa, dar novo calor a uma alma enregelada pela tibieza, avivar a chama do bem que bruxuleava até na alma de muitos católicos retos, eis aí tarefa difícil, soberanamente difícil, quase inexequível. Foi a obra que a Divina Providência confiou a quem com inexcedível eficácia a poderia realizar: a um Santo, a Pio X. E, por isso, disse certo historiador da Igreja que o reinado de Pio X foi dos mais gloriosos e difíceis que tenhamos visto.

Condenação da música profana nas cerimônias religiosas

Para que essa obra fosse levada a cabo era preciso, antes de tudo, que do Santuário fossem eliminadas as escórias de todas as influências meramente naturais e profanas. Pio X se imortalizou por sua obra de reerguimento dos estudos e da piedade dos fiéis acerca da Sagrada Liturgia, com o que concorreu notavelmente para o aperfeiçoamento do senso católico. A Sagrada Liturgia é a própria voz da Igreja que ora. Estudá-la, conhecê-la, amá-la, inserir-se na vida sobrenatural que ela comunica, corresponder generosamente, com a mortificação e a vida interior, às graças que ela transmite, com isto só podia lucrar imensamente a piedade dos fiéis.
Entretanto, havia um obstáculo, além do desinteresse, desconhecimento e ignorância em que em não raros lugares estavam os conhecimentos litúrgicos. Era a música profana que se associava às celebrações religiosas, roubando-lhes sua dignidade, seu caráter sobrenatural, toda a sua austeridade.

Como fazer? Atraídas por toda sorte de diversões novas, as massas fugiam ao santuário. Se a Igreja lhes tirasse a música profana, muito mais acessível ao gosto moderno do que o cantochão ou até polifônico, as igrejas se esvaziariam de vez. Não seria melhor contemporizar? É o eterno problema dos que julgam que o melhor meio de propagar verdades consiste em as diluir e ocultar, como se o mais eficaz modo de disseminar a luz fosse quebrá-la com um abat-jour…
Pio X pensou de modo radicalmente diverso. No seu famoso Motu Proprio2, condenou formalmente a música profana nas igrejas e, desembaraçando dessa floração inconveniente e às vezes até má o ambiente do santuário, reeducou os fiéis para a apreciação do verdadeiro canto sacro. O que se lucrou com isto é fácil vê-lo em nossos dias, quando já ninguém suporta de bom grado a música profana que, por vezes, tenta reintroduzir-se pertinazmente no lugar santo.
Seria preciso todo um artigo de jornal para falar a respeito dos atos pelos quais o Santo Padre Pio X, abrindo mais francamente as fontes da graça que a obstinação dos jansenistas pretendera fechar, inaugurou na Santa Igreja uma era nova de fervor eucarístico. Aconselhando a comunhão assídua e até quotidiana, o Santo Padre determinou uma admirável eclosão de espírito eucarístico, que se manifestou pelas mais variadas obras. Por outro lado, aproximando da Sagrada mesa desde os albores da idade da razão as crianças, Pio X opôs à expansão da imoralidade e da impiedade fortíssima barreira, robustecendo as vontades e as inteligências com a graça de Deus ainda na idade da inocência.
De tudo isto decorreu um aumento de piedade em toda a Cristandade, que iluminou o reinado de Pio X com uma glória inextinguível. Devotíssimo da Mãe de Deus e Senhora nossa, Maria Santíssima, o Santo Padre Pio X incentivou notavelmente a devoção para com Aquela que a Igreja ainda proclamará solenemente a Medianeira universal de todas as graças. E, por isto, foi imensa a torrente de benefícios espirituais com que se enriqueceu a Santa Igreja.

Modernismo, “súmula de todas as heresias”

 

Mas havia um grave erro, de nenhum valor intelectual é certo, pois que não consiste senão em uma indecorosa coleção de subterfúgios, de sofismas e de mentiras, que a socapa, como serpente insidiosa, se havia insinuado entre os fiéis. Era o modernismo. Ele exprimia em última análise o esforço desesperado de certos espíritos de, conservando embora certas formas e exterioridades católicas com que não ousavam romper, aceitar ao mesmo tempo todos os erros do século.
A primeira característica do modernismo era que todas as palavras que na Igreja tem um sentido definido e tradicional valiam como índices de outro sentido no vocabulário dos modernistas. Usavam a mesma linguagem que nós, mas com outro espírito e com um segundo sentido que só com habilidade deixavam entrever em seus escritos, e apenas aos poucos iam revelando oralmente aos seus adeptos. Daí uma confiança ilimitada de espíritos ingênuos, mas às vezes retos e bem intencionados, que, vendo as aparências, julgavam salvas as realidades. E o mal circulava impune.
Em uma encíclica famosa, Pio X condenou violentamente este mal e fez ver a todos os fiéis que se as mãos de um Papa e de um Santo sabem ser maternais para cicatrizar as feridas dos que sofrem, sabem ser pesadas como montanhas para esmagar erros e matar heresias.
A Encíclica Pascendi Dominici gregis, contra o modernismo, é dos documentos mais edificantes de Pio X. Suas páginas ardem e vibram de santa indignação. Tomado de um zelo sobrenatural pela Casa de Deus, o Santo Padre denuncia com palavras de fogo o veneno que escorria sub-reptício “dentro das próprias veias da Cristandade”, e com uma precisão admirável, ponto por ponto, denunciava os subterfúgios, esmagando as alegações falsas e deixando a nu toda a vileza dessa corrente que era, segundo suas expressões, a “súmula de todas as heresias”.

Heresia que defendia os regimes sociais e políticos igualitários

Um dos lances sem dúvida mais fortes da luta de Pio X contra o modernismo se encontra na condenação do “Sillon”3. Essa organização de jovens franceses tinha tomado orientações perigosas. Apaixonadamente amiga de todas as novidades , odiando sem distinção todas as tradições, partidária sistemática dos regimes sociais e políticos igualitários e condenando os aristocráticos como anticristãos (contra o expresso ensinamento de Leão XIII), inimiga de toda autoridade a ponto de não admitir que existissem professores nem cursos organizados para seus sócios, e admitindo apenas cooperativas intelectuais, inimiga de toda seleção de membros, de um interconfessionalismo tipicamente liberal, o “Sillon” gostava de se afirmar “revolucionário” e de apontar em Jesus Cristo, Senhor nosso, um grande “revolucionário”. Pode-se imaginar a indignação de Pio X contra uma tal série de erros. Ele os condenou e fustigou em uma encíclica4 que deveria estar nas mãos de todos, de tal maneira esclarece pontos doutrinários importantíssimos, que hão de interessar os fiéis até a consumação dos séculos.

O esplendor das virtudes de Pio X havia, por fim, abafado na sua totalidade o ruído estúpido dos que, inteiramente naturalistas, julgavam que o fator mais importante do apostolado está na inteligência e não na virtude. E, por isto, o ambiente criado pela admirável figura do Papa era de verdadeiro e universal enlevo.
Infelizmente, porém, veio a guerra. E como todos sabem, não resistindo ao golpe bem como às inúmeras lutas de seu árduo pontificado, Pio X morreu.
No Céu mais um Santo se sentou no número dos eleitos e na Terra sua memória continua a embalsamar todos os corações, a edificar todas as almas e a consolar inúmeras dores. Até hoje chegam ao Vaticano cartas endereçadas a Pio X em que dos mais variados pontos da Terra os fiéis pedem ao grande Papa, cujos restos mortais sabem estar ali sepultados, que reze por eles e lhes obtenha as graças espirituais ou temporais necessárias.

A cripta em que seu corpo repousa é visitada constantemente por peregrinos. E como não está sempre aberta, no lajedo de mármore da Basílica do Vaticano, exatamente sobre a lápide embaixo da qual está o lugar em que, os restos mortais de Pio X dormem no Senhor, se fixou um sinal de metal. Em torno dele rezam os fiéis nas horas em que o local não está exposto à visitação pública.

(Extraído de O Legionário n. 553, 14/3/1943)

1) Jean-Baptiste Chautard (*1858 – †1935). Abade de Sept-Fons, França, autor da obra A alma de todo apostolado.
2) Tra le sollecitudini, 22 de novembro de 1903, sobre a música sacra.
3) Le Sillon, movimento político-religioso francês que pretendia unir o catolicismo aos ideais socialistas e republicanos franceses.
4) Encíclica Notre charge apostolique, de 25 de agosto de 1910.

 

São Pio X, modelo de varão católico

Quero que o último ato de meu intelecto e o último pulsar de meu coração seja um brado de amor e fidelidade ao Papado”, costumava repetir Dr. Plinio até seus derradeiros dias. Na verdade, depois  e sua entranhada devoção ao Santíssimo Sacramento e a Nossa Senhora, por nada tinha ele mais apreço do que à divina instituição do Papado, pela qual nutria imensa veneração. Sentimento que transparece nas palavras aqui transcritas, com as quais recorda a figura de um dos maiores Pontífices que já ocuparam a Cátedra de Pedro: São Pio X, cuja festa se celebra no dia 21 de agosto.

 

Em 1903, após um dos mais longos pontificados da História, e numa idade muito avançada, faleceu o Papa Leão XIII. Logo depois das exéquias, de acordo com o secular costume da Igreja, todos os cardeais se reuniram na Cidade Eterna para o Conclave que elegeria o novo Sumo Pontífice.

Conta-se que o então Cardeal Sarto, Patriarca de Veneza, foi um dos poucos, se não o único, a se dirigir a Roma tendo já em mãos o bilhete de passagem da volta, tão certo estava de que sobre ele não recairiam os votos de seus pares.

E os fatos pareciam confirmar as despretensiosas expectativas daquele Purpurado, pois, ao final de alguns escrutínios, o sucessor de Leão XIII estava praticamente escolhido. Tratava-se do Cardeal Rampolla del Tindaro, que fora Secretário de Estado do falecido Papa, e cuja orientação de governo ele haveria de manter durante o novo Pontificado.

Manteria, se uma inesperada atitude não viesse mudar o rumo dos acontecimentos. Tão logo se tornou claro qual seria o resultado da votação, levantou-se, trêmulo e indeciso, o Cardeal-Arcebispo de Praga, dizendo: “Eu tenho uma comunicação a fazer da parte do meu soberano, o Imperador da Áustria. Prevalecendo-se do direito que têm os monarcas austríacos de vetar alguém eleito para o Papado, quando tal escolha lhe parecer nociva aos interesses e às conveniências da Igreja Católica no seu país, o Imperador Francisco José, meu senhor, dá ordem de vetar o Cardeal Rampolla del Tíndalo para Papa”.

Esse uso do veto ou seja, de proibição escandalizou todo o Conclave, porque há muito tempo os soberanos austríacos não exerciam esse direito. Era, portanto, um papel por demais antigo que Francisco José retirava da gaveta. Mas… retirou e mandou: não podia ser. O Cardeal Rampolla estava fora de cogitação.

Sabendo que não seriam possíveis tratativas nem apelações, os cardeais dão início a novos escrutínios, fazendo valer a célebre subtileza da diplomacia romana dos grandes tempos. A cada turno de eleição eram proclamados os resultados, e em duas ou três vezes os votos para o Cardeal Rampolla retomaram por baixo e foram crescendo o suficiente para significar um desafio ao Imperador da Áustria, não porém o bastante para elegê-lo. Foi uma jogada astuta e inteligente, bem ao estilo do Vaticano…

A eleição do Cardeal Sarto, futuro São Pio X

Como era de se  esperar, caiu em definitivo a votação do Cardeal Rampolla, enquanto se levantava outro candidato: o Cardeal Sarto, Patriarca de Veneza, futuro São Pio X.

Em suas Memórias do Papa Pio X, narra o Cardeal Merry del Val então monsenhor e secretário do Conclave que, depois de um daqueles decisivos escrutínios, fora encarregado de procurar o Cardeal Sarto, a fim de demovê-lo da resistência que este opunha à sua eleição. Entrando ele na Capela Paulina, reservada aos Purpurados, encontrou ali o Patriarca de Veneza, ajoelhado no solo de mármore, a cabeça entre as mãos, chorando e rezando diante de uma imagem de Nossa Senhora do Bom Conselho de Genazzano.

O prelado se ajoelha por sua vez junto do Cardeal Sarto, e com voz baixa lhe confia a mensagem de que era portador. Lentamente, o Patriarca levanta a cabeça, volta para o secretário a face sulcada de lágrimas, e lhe pede que anuncie a sua recusa formal ao sólio pontifício. Santo como era, tinha plena consciência de que o Papado significava uma responsabilidade tremenda, em meio a árduos combates em defesa da Igreja. Parecia repetir, daquele modo, as palavras do Divino Redentor no Horto das Oliveiras: “Pai, se for possível, afasta de mim este cálice”…

Compadecido daquele varão que dava tais mostras de humildade, Monsenhor Merry del Val -, ele mesmo homem de rara virtude e futuro braço direito de São Pio X –, a fim de animá-lo e fazê-lo aceitar o cargo, disse-lhe:

Coragem Eminência, o Senhor o ajudará!

Novamente ocultou o Cardeal Sarto a cabeça entre as mãos, para terminar sua prece. O secretário do Conclave se afastou. “Nunca esquecerei” comenta ele “a impressão que me produziu este encontro, à vista de uma angústia tão intensa. Era a primeira vez que me punha em contato com Sua Eminência, e pressentia ter me achado em presença de um santo”.

Poucas horas depois, o Cardeal Sarto, premido pelas reiteradas e insistentes  solicitações de vários membros do Sacro Colégio, decidiu desistir de sua oposição. Na manhã seguinte, era eleito por uma grande maioria, e aceitava a missão de suceder a São Pedro, sob o nome de Pio X.

“O Anjo guardião do Paraíso”

Homem de origem assaz modesta, o Cardeal Sarto (em italiano, sarto quer dizer alfaiate) nasceu na pequena aldeia de Riese, na qual até hoje se conservam a casa em que ele veio ao mundo e todas as lembranças de sua história desde menino. Riese tornou-se um lugar de peregrinação. Adolescente, Giuseppe Sarto deixou o lar paterno para ingressar no seminário da diocese de Treviso. Depois de completar seus estudos em Pádua, foi ordenado sacerdote, e, três décadas mais tarde, sagrado Bispo de Mântua. Em 1893 tornou-se Cardeal e Patriarca de Veneza, de onde partiu para ser eleito Papa.

Apesar de sua ascendência humilde, São Pio X possuía tanta dignidade moral, e uma tal estampa pessoal que um jornalista francês, depois de entrevistá-lo, fez o seguinte comentário: “Quem se encontra e conversa com o Papa, conhece um homem tão forte e tão puro, que tem a impressão de estar diante do Anjo que a Escritura descreve como guardando a entrada do Paraíso Terrestre, com uma espada de fogo à mão”.

De fato, diversos traços da vida de São Pio X revelam que ele foi realmente uma figura angélica, um modelo super-acabado de pureza e de fortaleza. Homem de alta estatura, muito robusto, como são em geral os italianos da região do Veneto, era dotado de vigorosa personalidade, e sobretudo, formado numa integridade e firmeza de princípios, bem como numa completa renúncia de si mesmo, que caracteriza o verdadeiro Santo da Igreja Católica.

Por isso, assim que o mundo conheceu o nome do novo sucessor do Príncipe dos Apóstolos, uma intensa manifestação de júbilo e de louvores a Deus perpassou a Cristandade. Estavam os fiéis convictos de que Nosso Senhor lhes havia dado um Pastor sábio e virtuoso, atilado e prudente, em cujo coração pulsava zelo e amor ardentes pela Esposa Mística de Cristo, que a Providência acabava de confiar a suas firmes mãos de Soberano Pontífice. E ele de tal maneira a dirigiu com maestria e paternalidade, que a Igreja passou a viver um período de esplêndido florescimento, de brilho extraordinário, de profunda unidade e coesão na sua estrutura sagrada.

O papa das primeiras comunhões

Entre os inestimáveis benefícios que a Religião Católica lucrou no governo de São Pio X, destaca-se o de ele ter estabelecido a Primeira Comunhão para as crianças. Até então, a tendência corrente era de que uma pessoa só a fizesse quando inteiramente adulta, não sendo raro o caso de homens e mulheres que comungavam pela primeira vez nas vésperas de seu casamento.

Essa atitude era determinada pela compreensível ideia de que a Comunhão é algo por demais sagrado para que as crianças se aproximem dela, pois não teriam critério para comungar com o respeito e a devoção necessárias.

São Pio X, entretanto, entendia de modo diferente, e colocou a questão em outros termos. Dizia ele: “Não se trata de saber o que a criança é capaz de pensar, e sim que grau de inocência ela tem. Porque se fôssemos raciocinar em função de sua capacidade intelectual, então não deveríamos batizá-la nos primeiros dias após seu nascimento”.

Um juízo muito acertado, cujo desenvolvimento é este: no momento do Batismo, embora o recém-nascido ainda não pense, a recepção do Sacramento significa para ele uma comunicação de graças extraordinárias, que agirão sobre sua alma até o dia em que comece a fazer uso da razão. E mesmo nesse início da vida de pensamento aquelas graças do Batismo lhe serão de extrema valia, guiando seus primeiros passos e o fortalecendo na Fé.

É este um dos principais motivos pelos quais a Igreja inteira batiza as crianças logo depois do nascimento.

E análogo princípio aplicou São Pio X, ao instituir a Primeira Comunhão para as crianças. Quer dizer, tomando em consideração que estas, via de regra, ainda conservam sua inocência, ser-lhes-á ocasião de graças superabundantes receberem a Sagrada Eucaristia. Para tanto, basta compreenderem a mudança de substância operada na hóstia no momento em que é consagrada, passando a ser, verdadeiramente, Nosso Senhor Jesus Cristo, em seu corpo e sangue, alma e divindade.

Observadas essas condições, São Pio X determinou que a festa da Primeira Comunhão para as crianças fosse cercada de grande solenidade. E datam daí os ornamentos de que se revestem as igrejas e capelas nos dias de Primeira Comunhão, e os trajes cerimoniosos com que meninos e meninas se apresentam para receber a Jesus Sacramentado, símbolos da alma inteiramente inocente e virginal que vai de encontro ao seu Salvador.

Atmosfera santificante cobrindo a Igreja

Outro  precioso fruto do governo de São Pio X foi o espraiar-se de uma atmosfera sacrossanta por todos os ambientes católicos que dele recebiam a influência, produzindo um efeito vantajoso, santificante e magnífico. De tal maneira que, anos depois de sua morte, ainda persistiam o perfume e os ecos de seu pontificado. Tal se verificou sobretudo nos países distantes da Europa, aos quais naqueles tempos tardavam em chegar as transformações ocorridas no Velho Continente.

Por exemplo, no Brasil. Eu nasci em 1908, quando há cinco anos já se encontrava São Pio X à frente  da Igreja. E fiz a minha formação religiosa envolto naquela atmosfera sacrossanta, a qual conduzia os fiéis a um respeito, uma confiança e uma admiração indizíveis por toda a sagrada hierarquia eclesiástica. E não apenas pelo que essa hierarquia tem de fundamental e organizado por ordem de Nosso Senhor Jesus Cristo portanto, algo de suma perfeição como também pelos homens investidos nesses cargos, pois nos pareciam santos como era santa a missão deles, e como era santo o Papa Pio X.

Assim, no meu espírito, como no de incontáveis católicos, os padres, os religiosos, as freiras, os bispos, e daí para cima até o Soberano Pontífice, todos se nos afiguravam de uma venerabilidade sem nome, dignos do nosso maior acatamento e inteira dedicação.

Um remédio corriqueiro… e misterioso

Ao longo de onze anos viveu a Igreja sob essa firme, paternal e abençoada proteção de São Pio X. Em agosto de 1914, após o assassinato do Arquiduque Francisco Ferdinando aliás, amigo do santo Pontífice -, arrebentou a Primeira Guerra Mundial.

O Papa, que antevira o terrível conflito e suas trágicas conseqüências para os povos nele envolvidos, via redobrarem suas responsabilidades de pastor e guia das almas, aumentando-lhe o já pesado fardo que trazia sobre os ombros. Contudo, a despeito das graves e constantes preocupações, da grande amargura que lhe causavam os horrores da Guerra, seu estado físico não inspirava maiores cuidados. Animava-o o mesmo vigor e o zelo de sempre, até a noite de 18 de agosto, quando, depois de encerrados os compromissos do dia, despediu-se de seus assistentes e se recolheu aos aposentos pontifícios. Antes de se deitar, tomou um remédio corriqueiro que os médicos lhe haviam receitado para uma ligeira indisposição catarral. Nada de maior importância, afirmaram eles. Segundo estes, tratava-se de um incômodo trivial, motivado pela temperatura excessivamente alta daquele verão de 1914.

Na manhã seguinte, porém, o Cardeal Merry del Val é chamado às pressas ao Vaticano: o Papa despertara com muita febre, e seu estado de saúde agravara-se de modo alarmante. Assim que o secretário entrou no quarto de São Pio X, este o reconheceu, estreitou-lhe as mãos com força, e apenas lhe pôde dizer: “Eminência… Eminência!”. Passaram-se alguns minutos, e as últimas palavras que o Cardeal ouviu de seus lábios foram um ato de entrega nas mãos da Providência: “Resigno-me totalmente”, disse o santo Vigário de Cristo. Pouco depois ele perdia a capacidade de falar, embora permanecesse consciente e dirigisse àqueles que o circundavam seu olhar sempre vigilante e perscrutador.

Como piorou durante o dia, Papa recebeu o Viático e a Extrema-Unção com as menores formalidades possíveis, pois todos temiam um rápido desenlace. Ali estavam suas fiéis irmãs, chorando em silêncio, o secretário de todas as horas, e alguns de seus mais próximos auxiliares. Subitamente, ouviu-se o timbre do grande sino de São Pedro, que começava a dobrar pro Pontífice agonizante. A este sinal, foi exposto o Santíssimo Sacramento em todas as basílicas patriarcais de Roma, dando início às rogações especiais. Os graves acentos do bronze subiam aos céus, juntamente com as preces do povo fiel que, na praça do Vaticano, pedia a Deus por seu Pastor moribundo.

Algumas horas depois, na madrugada do dia 20 de agosto, São Pio X suavemente adormeceu no Senhor. Nas páginas de suas famosas Memórias, o Cardeal Merry del Val, deixa transparecer certa estranheza em relação a essa misteriosa morte. “Ninguém”, escreve ele, “pôde explicar ainda a brusca mudança que se produziu na saúde do Papa, durante aquela noite…”

A Igreja chorou a perda de seu “Anjo guardião”, que por ela velara com tanta diligência. Modelo de Pontífice e de varão católico, foi elevado às honras dos altares quarenta anos depois de partir para a eternidade.