Cortesia filha da caridade

Um dos célebres quadros de Velásquez, pintor espanhol, representa a rendição de Breda, nos Países Baixos. Quando menino, ao entrar numa loja de estampas, deparei-me com uma gravura desta cena histórica, e logo me senti cativado. Depois de a contemplar por longo tempo, pensei: “Como gostaria de ter esse quadro, a fim de passar horas olhando-o e o admirando!”

É, de fato, uma tela magnífica, não apenas por sua riqueza pictórica a qual demonstra de sobejo o talento do mestre, como também pela bela expressão de valores morais que ela retrata.

Episódio superiormente imortalizado: o Marquês de Spinola, comandante das tropas de Felipe II, recebe das mãos de Justino de Nassau, defensor de Breda, as chaves da cidade, que capitula depois de uma resistência intrépida.

O general do Rei Católico está revestido de uma imponente armadura sobre a qual uma gola com rendas dá uma nota de amenidade, realçada ainda pela grande faixa própria ao comandante-chefe. Em sua mão esquerda nota-se o bastão do marechalato. Justino de Nassau se apresenta em um rico traje, e também usa gola e punhos de renda.

A cena se passa no campo, e num ambiente estritamente bélico, no qual figuram tropas de armas na mão. Tudo não obstante, o encontro tem uma nota de distinção e afabilidade que lembra uma cena de salão. Justino de Nassau, tendo sido derrotado, apresenta-se de chapéu na mão, e entrega as chaves curvando-se ligeiramente. Spinola, por respeito para com o valoroso vencido, está também com a cabeça descoberta. Atrás dele, os fidalgos de seu séquito o imitam.

Vê-se que o chefe vencedor, ao mesmo tempo que se inclina levemente, contém com o braço a reverência do gentil-homem flamengo, e o seu semblante é impregnado de simpatia e consideração. Percebe-se que ele felicita o adversário pelo brilho da resistência, amenizando assim cavalheirescamente o que o ato de rendição tem de amargo para o vencido.

Toda uma doutrina de cortesia, toda uma tradição de nobreza de alma se exprime nos pormenores discretos mas eloquentes deste quadro admirável. Elevação de alma, decorrente da fé, cortesia nascida da caridade, que faziam rutilar valores espirituais inestimáveis, num ato que em si mesmo é inevitavelmente rude e humilhante, como toda rendição(1).

E não será sem interesse considerar, ainda, que a faixa meio cor-de-rosa, meio lilás, ornando a couraça do general espanhol era uma lembrança da mortalha, pois os chefes militares daquela época partiam para o combate tendo em vista a possibilidade de morrerem, sacrificando a própria vida pela causa de sua pátria.

Então, esse homem que se apresenta para o momento no qual sua coragem e sua vitória serão reconhecidas, conserva cingido o símbolo de sua mortalha. Ele não estremece nem hesita, e se mantém numa posição ao mesmo tempo de triunfo e bondade que, a meu ver, não alcançaria sem uma particular ação da graça. Pois atitudes como essa só são possíveis dentro do âmbito sobrenatural que confere luz e esplendor à Civilização Cristã.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

1 ) Cf. Catolicismo, novembro de 1956.

Rei e centro dos corações – II

A queda singular de uma taça de água, durante a exposição em que Dr. Plinio concluía seus comentários a uma das tocantes invocações da Ladainha do Sagrado Coração de Jesus, ofereceu a ele a oportunidade de exaltar e recomendar, uma vez mais a seus discípulos, a ardorosa prática da virtude da confiança: confiar contra todas as aparências da derrota, na misericordiosa e infalível assistência de Nosso Senhor e de sua Mãe Santíssima.

Após considerarmos os direitos de soberania do Sagrado Coração de Jesus sobre a vontade do homem, simbolizada pelo órgão que lateja em nosso peito, cumpre analisarmos o outro termo da invocação que diz: “centro de todos os corações”.

Eixo do qual tudo se aproxima ou se afasta

A palavra “centro” — não o geométrico, pois se trata de uma metáfora — sugere a idéia de uma multidão de corações com um ponto de atração em função do qual todos se movem para aceitar ou rejeitar algo. Ainda que não percebamos, os movimentos da vida particular de cada um, bem como os da História, se fazem em razão do Sagrado Coração de Jesus.

Imaginemos um ímã gigantesco em torno do qual uma imensa quantidade de limalhas de ferro estivesse disposta, e um vento soprando sobre elas. A viração tende a dispersar as limalhas enquanto o ímã busca atraí-las. Os minúsculos fiapos de ferro estão continuamente solicitados por duas forças distintas: a centrípeta, que os leva a se unirem ao ímã, e a centrífuga, a dele se separarem.

Suponhamos que cada uma das limalhas fosse dotada de inteligência e livre arbítrio, e a todo momento, por causa do vento e da atração, sinta-se obrigada a escolher se irá aproximar-se ou distanciar-se do ímã. Essa é uma metáfora para indicar o significado das palavras “rei e centro dos corações”. Assim, a todo instante de nossa vida, estamos nos acercando ou nos afastando d’Ele. É o sentido de todo ato que praticamos.

Entre Deus e o demônio

A imagem do ímã, da limalha e do vento não apresenta toda a realidade. Por exemplo, não alude à fonte desse vento que tende a dispersar as limalhas. Evidentemente, quem o sopra é Satanás o qual sempre procura nos afastar de Nosso Senhor. Devemos continuamente estar caminhando para o centro, ou seja, para Deus, opondo-nos à pressão e atração exercida pelo demônio. De direito, Nosso Senhor é o ímã.

E também o é no sentido de que efetua um poder atrativo sobre todos os corações. Porém, dá ao homem livre arbítrio. Se este recusar, pecará e, caso não se arrependa, será condenado. Esse é o verdadeiro significado da metáfora.

Tais considerações se aplicam igualmente aos países. Estes têm como que uma inteligência e uma vontade coletivas, as quais constituem a opinião pública. Esta se move como as idéias individuais, pois é a síntese ou a soma delas. Assim, cada um de nós exerce um papel — maior ou menor — na opinião pública, e tem responsabilidade sobre sua orientação para um lado ou outro. De modo especial o têm os que pertencem a um movimento (como o nosso) que visa especificamente atuar no consenso geral para combater o mau “vento” soprado em cima da limalha frágil da opinião dos indivíduos, ou seja, contrariar a ação do demônio sobre as almas.

Em favor do Rei e da Rainha, sua Mãe

Com efeito, visamos criar condições favoráveis para que a atração de Nosso Senhor Jesus Cristo se exerça inteiramente. Nesse sentido, somos os soldados do rei que procuram conquistar limalha por limalha, ou partícula por partícula da limalha, cujo conjunto constitui a opinião pública e levá-la para esse divino centro de todos os corações. E, como antes salientamos, segundo o ensinamento de São Luís Grignion de Montfort, o reinado de Maria se estabelecerá quando, pela intercessão d’Ela, a parte mais poderosa e ponderável, decisiva, da opinião pública tenha conduzido o gênero humano a pertencer efetivamente ao Coração de Jesus.

Há, portanto, uma forte analogia entre esta invocação tão bela, “Nosso Senhor, Rei e centro de todos os corações”, e a devoção a Nossa Senhora Rainha. Queremos que a Santíssima Virgem seja, não só Rainha de direito — pois Ela o é como Mãe de Deus e Co-redentora do mundo —, mas de fato, que as almas Lhe pertençam e, dessa maneira, pertençam a Nosso Senhor.

Numa palavra, o Reino de Maria é um meio necessário para existir o Reino de Jesus, o qual representará uma imensa graça para a humanidade, uma insondável misericórdia para os homens que pouco ou muito pouco têm feito para merecê-la. Esta dádiva somente nos será alcançada pelas mãos de Nossa Senhora, Medianeira de todos os favores divinos.

“Torrentes de graças!”: a taça de água que gira no ar e cai de pé

Compreende-se, assim, como nossa devoção ao Reino de Jesus e a seu Sagrado Coração, ao Reino de Maria e a seu Coração Sapiencial e Imaculado se completam, formando um só todo, propiciando grande alento para nós.

Por fim, se tomarmos em consideração que a vitória pela qual nos empenhamos tanto, depende primordialmente da graça — sem a graça, sem muita graça, sem torrentes de graças nada obteremos…

[NR: Neste exato momento de sua exposição, Dr. Plinio, ao fazer um gesto com o braço esquerdo, inadvertidamente derrubou a taça na qual lhe seria servida a água, colocada sobre uma mesinha ao seu lado. A taça, de fino cristal, bateu no bordo da pequena mesa produzindo um lindo som e projetou-se para o solo caiu com a boca para baixo. Depois de tocar no tapete, saltou ao ar, endireitou-se e finalmente pousou de pé. Não sofreu o menor arranhão, como se fora ali depositada por mão cuidadosa. O fato insólito produziu uma natural reação, misto de surpresa e encanto, em todos que o viram. Dr. Plinio aproveitou a circunstância para tirar dele mais um ensinamento, dizendo então:]

Faço notar a beleza peculiar do fato de esta cena não ter sido registrada em fotografia. Poderia sê-lo, como tantos instantâneos que são colhidos em nossas reuniões. Porém, Nossa Senhora não dispôs que houvesse uma máquina fotográfica preparada neste momento. Por quê? Para que ele ficasse gravado no coração de cada um dos meus ouvintes.

Recordemos: falávamos da necessidade de torrentes de graças as quais dependem da intercessão de Maria Santíssima, que escolhe as ocasiões adequadas para alcançá-las. Às vezes quando a alma, compenetrada de sua miséria, se encontra mais tocada e orientada para a receptividade; às vezes, nas piores horas de sua vida espiritual, quando a graça atua e vence nossa maldade.

Por exemplo, ninguém poderá pretender que São Pedro, quando negou Nosso Senhor durante a Paixão, estava com a alma disposta para receber graças. Entretanto, o dom divino pousou sobre ele e operou sua cura salvadora. O Príncipe dos Apóstolos não cessou de chorar, por assim dizer, até o momento em que morreu crucificado de cabeça para baixo.

História de uma gota d’água, lição de confiança

Insisto, pois, na ideia de que o papel soberano da graça e o de Nossa Senhora em obtê-la do Coração infinitamente misericordioso de seu Filho, são decisivos na História. Nessas condições, não nos devemos importar, de modo cruciante, com os fatores e circunstâncias humanos. O importante é que Deus, na sua clemência, nos seja propício, disposição divina esta que poderemos alcançar por meio de preces a Nossa Senhora. E para nos valermos do fato que acaba de ocorrer, acrescento: se estivermos numa boa situação e cairmos, confiando em Nossa Senhora, cairemos de pé!

Imaginemos que no fundo dessa taça houvesse uma gota de água dotada de pensamento. Estaria contente porque habita dentro de um cristal, com seus reluzimentos próprios. Ela não cogitaria que o recipiente pudesse ser derrubado e diria: “Estou na concha desta taça e nada me sucederá!”

De súbito, o cristal recebe uma cotovelada do orador pouco cauteloso… A gota se assusta, sente um estremecimento e, percebendo que a taça se inclina perigosamente, exclama: “Tenha confiança em Nossa Senhora, não há risco de cair!” Quando o cristal dá uma cambalhota, ela instintivamente se pergunta: “O que me irá acontecer agora? Vou cair…” Mas, continua afirmando: “Confiança em Nossa Senhora!” A taça cai de pé, com a gota ilesa em seu fundo.

Ou seja, a virtude da confiança é, ao mesmo tempo, fruto e condição para a perfeita devoção aos Sagrados Corações de Jesus e Maria. Por maiores que sejam os embates que soframos, parecendo estarmos numa sucessão de desastres, devemos confiar em Nossa Senhora. E se os fatos desabonarem nossa confiança, e Ela permitir que passemos por cambalhotas, convém nos lembrarmos da metáfora da gota d’água: ela se agarrou com todas as forças à superfície lisa de um cristal fascinante e, por fim, notou que a taça caiu de pé.

Nada é impossível para o que confia

Quando nos dirigirmos, então, ao Sagrado Coração de Jesus, tenhamos principalmente em vista que Ele é o Rei e centro de todos os corações, centro e Rei da História. Além disso, consideremos a necessidade de cada um possuir uma mente e vontade firmes, uma sensibilidade varonil e forte, que resiste até aos grandes eclipses dos sentidos. E, na pior das aridezes, permanecer com o inabalável desejo de oferecer tudo a Nosso Senhor por meio de Maria, para que venha o Reino do Sagrado Coração de Jesus, através do Reino do Coração Imaculado da Mãe de Deus.

Alguém poderá dizer: “Como isto é penoso!”

Respondo: “A história da gota d’água na taça no-lo comprova: pode ser difícil, mas nada é impossível para quem confia em Jesus e Maria!”

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 100 (Julho de 2019)

Santiago, Admirável continuidade de bênçãos

Certos lugares que reluziram com invulgar esplendor nos áureos tempos da Cristandade conservam ainda hoje, e com intensidade por vezes surpreendente, uma admirável continuidade com seu passado. E em se tratando sobretudo de tradições religiosas, a fé muito acentuada pela qual sempre se distinguiu o povo espanhol nos leva a  encontrar, nesta nação, significativos exemplos dessa continuidade.

Talvez o mais expressivo deles seja o Santuário de Santiago de Compostela. Situado na Galícia, ao norte da Espanha, seu nome deriva do latim “Campus Stellae”, isto é, Campo da Estrela. Segundo as crônicas, após o martírio de São Tiago o Maior, ocorrido em Jerusalém, seu corpo foi transladado por discípulos para aquela região hispânica e ali o sepultaram.

Com o passar do tempo, porém, perdeu-se a noção de onde seus restos mortais haviam sido depositados. Até um dia em que, no século IX, alguns camponeses avistaram uma luz inusitada refulgindo sobre o local.

Começaram a escavar e depararam com os ossos do grande Apóstolo. Em breve erguia-se o santuário, que haveria de se tornar um dos maiores centros de peregrinação de  toda a Cristandade. Da Europa inteira se acorria para Santiago de Compostela, e num tal afluxo que, em determinadas épocas do ano, certos trechos dos caminhos transformavam-se em verdadeiras ruas, repletos de peregrinos!

É difícil existir lugar mais sagrado e mais venerável do que Compostela. O devoto que ali se apresente com verdadeiro espírito de peregrinação e a alma voltada para o  sobrenatural, não pode deixar de sentir as bênçãos  inapreciáveis de continuidade com as mais antigas e excelentes graças da Civilização Cristã. Bênçãos peculiares, diferentes das que se nota em outros santuários igualmente  veneráveis como Aix-la-Chapelle ou Genazzano; bênçãos palpitantes num ambiente repassado de fervor e entusiasmo.

A igreja é o maior templo românico do mundo, embora sua fachada obedeça às linhas de um estilo posterior. É grandiosa, magnífica e imponente. À primeira vista, o exterior pode parecer excessivamente sobrecarregado. Mas depois de uma ponderada análise, e tendo nossos olhos se habituado a considerá-lo, percebe-se que essa sobrecarga é  ordenada e muito bonita. As fachadas laterais também se revestem de uma extrema beleza, e todo o edifício compõe um harmonioso, digno e lindíssimo conjunto com os  outros prédios da praça em que ele se encontra.

Internamente, possui a formosura própria da arte românica, com um pormenor bem espanhol: não há vitrais. A luz penetra através de uma claraboia cuja abertura foi cuidadosamente estudada para que todo o recinto receba suficiente iluminação. Em seus corredores laterais abrem-se diversas capelas, consagradas a certas invocações de  Nossa Senhora e a alguns santos.

E no centro, a meio termo entre o altar-mor e a porta de entrada, existe uma capela do Santíssimo Sacramento, bonita e piedosa. Os fiéis que ali se ajoelham para adorar o  Rei dos Reis, perpetuamente exposto, são acolhidos por uma tocante imagem do  Sagrado Coração de Jesus, impregnada de unção e de bondade celestiais.

Entretanto, o local mais abençoado do Santuário é, a meu ver, a cripta onde se encontram os despojos de São Tiago o Maior. A urna funerária em que estão conservados é, na  verdade, uma bela e rica imagem do Apóstolo, lavorada em ouro e pedras preciosas, com traços de inspiração ainda pré-gótica.

Êmula dessa bênção toda particular é a que se sente noutra capela do Santuário, situada embaixo da escadaria principal. Trata-se de uma construção dos tempos de Carlos  Magno, o grande e piedoso monarca do Sacro Império Romano-Alemão, muito devoto de São Tiago e que ali esteve diversas vezes. Ali dentro torna-se ainda mais nítida a noção da continuidade desse presente com as magníficas tradições da Cristandade, e mais viva a ideia de que as graças de hoje e as de ontem se respeitam e se entrelaçam,  constituindo um tesouro espiritual que nada poderá destruir!

Duas coisas merecem especial destaque no conjunto dos atraentes aspectos do Santuário. Uma é o “botafumero”, imenso turíbulo de prata que, em dias de festa, costuma ser levantado para a vasta abertura da cúpula e, lá no alto, descrevendo um gigantesco semicírculo, se põe a espargir o odorífero incenso por todo o recinto sagrado.

Para alguém que o assista pela primeira vez, esse interessante e louvável ritual de incensamento pode tomar um certo ar de exercício de força, como quem observa se os homens encarregados de puxar as cordas têm o necessário vigor para espalhar aqueles tufos fumegantes. E, portanto, no meio desse ato religioso, há algo de campesino e de um pouco tosco. Mas, de um tosco e um campesino saborosos, encantadores, que dão gosto de serem vistos, porque fazem a beleza dos costumes de um lugar como Santiago de Compostela.

Outra coisa que atrai especialmente a atenção, porque imbuída de simbolismo, é a presença dos sinos que tocam nas majestosas torres da igreja. Eles já ressoavam por aquelas regiões, nos dias anteriores à dominação moura.

Quando os invasores chegaram a Compostela, saquearam o Santuário, levando os sinos para uma mesquita de Sevilha. Séculos depois, durante os heroicos feitos da  Reconquista espanhola, São Fernando de Castela recuperou estes mesmos sinos e ordenou que fossem recolocados em seu lugar de origem.

Quando ali estive, eu também como peregrino, ao ouvir o timbre desses bronzes, testemunhas de tantas epopeias, pensei no triunfo daquele grande rei espanhol e no triunfo  ainda maior da Igreja Católica. E os dobrares que ecoavam das torres imponentes encheram minha alma de uma harmonia extraordinária.

Uma vez mais, reluzia a admirável continuidade das bênçãos da Civilização Cristã.

Ensino imparcial da História: TRIUNFO DA IGREJA

A Carta Apostólica “Annum Ingressi”, diz Dr. Plinio, é a chave de cúpula de uma brilhante série de documentos redigidos pelo Papa Leão XIII, para mostrar o papel benéfico e insubstituível da Igreja Católica no desenvolvimento da civilização e na promoção do verdadeiro progresso. Dentro da série estamos publicando, ele continua a comentar o pensamento do Pontífice.

Conforme vimos, os documentos publicados por Leão XIII sobre os mais diversos temas constituíam um conjunto que visava ao mesmo fim: esclarecer e alertar, na tormenta, o povo fiel.

As Encíclicas sobre doutrinas sociais, sobre a família, sobre o poder político não são senão episódios de uma só e grande reação em face das “opiniões perversas”. E de tal maneira esses documentos se entrelaçam uns com os outros, que os maiores condensam muitas vezes, e genialmente desenvolvem, ensinamentos para os quais as Encíclicas anteriores já haviam preparado os espíritos, tocando ex professo ou incidentemente o mesmo assunto. Ele nolo diz, aliás, expressamente quanto a mais de uma delas.

Numa série tão concatenada, o último documento, feito por um autor que, como vimos, não ignorava estar prestes a transpor as “portas da eternidade”, tem evidentemente o caráter de remate, o papel de chave de cúpula, a importância de um complemento final e supremo, de uma mensagem extrema na qual se resume, e chega à sua mais nítida e sintética expressão, tudo quanto de mais essencial fora anteriormente ensinado.

A história de Leão XIII, a análise de seus documentos, a própria história do século em que ele viveu e no qual sua figura alcançou projeção mundial, não podem abstrair do estudo da “Annum ingressi”.

O estudo da História não pode ser “desinteressado”

Essa Carta Apostólica, que constitui importante trabalho histórico — pois é como que a síntese de uma fase crucial da História da Igreja, escrita por ela mesma —, apresenta para a historiografia católica e, a este título, também para a historiografia em geral, um interesse inegável. Pois ela nos faz conhecer o pensamento do grande Papa sobre a missão da História, bem como sobre o “tratamento ” do fato histórico com os recursos de uma sã filosofia e de uma teologia ortodoxa.

O pensamento de Leão XIII se nos apresenta bem definido nesse documento: a História não pode ser “desinteressada ”, isto é, o historiador deve ser imparcial na pesquisa da verdade histórica, mas uma vez tendo-a encontrado, pode e deve tomar partido por ela. No caso concreto, o historiador imparcial, bem informado e capaz, verá na História uma justificação da Igreja. Cabe-lhe dar testemunho deste fato.

E mais: como a Igreja é uma sociedade viva, que age e luta no presente; como o testemunho da História é elemento essencial para o êxito ou o insucesso desta luta; o historiador está no seu direito quando se empenha especialmente em desfazer o falso testemunho de uma História mentirosa.

A História apologética, assim entendida, não é um subproduto da História, e muito menos uma caricatura.

É, pelo contrário, História genuína e excelente, voltada para a realização de uma de suas mais altas missões. Se o Papa coloca, no ápice da grandiosa construção doutrinária, um documento histórico-apologético, um de seus objetivos expressos é exatamente “reabastecer de Fé e coragem” as almas que, opressas pelas “graves provações da Igreja”, poderão “recobrar alento”.

A História tem também outro fim, que é dos principais para Leão XIII: buscar nos fatos do passado uma explicação do presente, que sirva para a solução dos problemas atuais (veremos depois que Leão XIII aponta outra utilidade para a História: proporcionar elementos para fundadas conjecturas do futuro). Com efeito, se Leão XIII se propõe demonstrar na “Annum ingressi”, com argumentos históricos, a grande lei que nela enuncia, fá-lo para “assinalar os remédios” aos males de seu tempo: História “Magistra Vitae” — a História é a mestra da vida, diziam os antigos.

Muitas vezes o ensino da História é preconceituoso Aliás, nessa Carta Apostólica, Leão XIII outra coisa não faz senão pôr em prática os conselhos que, em outros documentos famosos sobre a História, ele deu aos historiadores católicos.

Referimo-nos em especial ao Breve Saepenumero Considerantes (“Consideramos freqüentemente”), de 18 de agosto de 1883, documento famoso, pelo qual Leão XIII franqueou os arquivos do Vaticano ao estudo dos historiadores.

É interessante ver como a “Annum ingressi” constitui um modelo de trabalho histórico feito segundo o espírito desse Breve.

Começa o Breve por lamentar “a força e perfídia” com que os adversários da Religião procuram tirar proveito da História para “tornar suspeitos e odiosos a Igreja e o Papado ”. Dá ele um apanhado da historiografia anticatólica, desde os “Centuriadores de Magdeburgo” (Alemanha) até nossos dias¹.

Ora, esta historiografia “invadiu até as escolas”, onde “freqüentemente se dão às crianças, para as instruir, livros cheios de erros”. No ensino superior, o estudo da História é aproveitado para “construir teorias baseadas em preconceitos temerários, o mais das vezes em desacordo flagrante com a Revelação divina”, o que enche a “chamada Filosofia da História” de “densas trevas”.

Em suma, “sem descer a pormenores, o plano geral do ensino histórico tem por fim tornar suspeita a Igreja e odiosos os Papas, bem como persuadir, sobretudo a multidão, de que o governo pontifício é um obstáculo à prosperidade e grandeza da Itália”. Leão XIII manifesta aqui uma preocupação muito acentuada com a História da Itália, país no qual a investida anticlerical estava em seu clímax. Não obstante, o panorama descrito se aplicava, mutatis mutandis, ao mundo inteiro.

Nesse Breve fica, assim, caracterizada em termos impressionantes a ofensiva desenvolvida contra a Igreja no campo histórico: “Hoje mais do que nunca”, assevera Leão XIII, “a arte do historiador parece ser uma conspiração contra a verdade”. O Pontífice emprega, a este propósito, expressões que insistem muito sobre a má-fé da historiografia anticatólica.

História anticatólica, eivada de erros e de injustiças

O Papa fala de “injustos ataques contra a honra e dignidade da Sé Apostólica”, “mutilações e hábeis omissões sobre o que constitui os maiores lances da História, a fim de dissimular, pelo silêncio, os fatos mais gloriosos e gestos memoráveis, enquanto se redobravam esforços para de pôr em evidência e exagerar” o que, no passado da Igreja, poderia ter sido “menos prudente ou menos irrepreensível”; “malevolência e calúnias” contra o poder temporal dos Papas; “mentiras que audaciosamente se esgueiram nas volumosas compilações e nos delgados panfletos ”, na imprensa e no teatro; quando a própria evidência dos fatos não permitia que se voltassem contra a Igreja “todos os negrumes da calúnia”, narravam-se os fatos de maneira a subestimar tanto quanto possível a glória dos Papas, “à força de atenuações e dissimulação”.

Pouco depois, Leão XIII denuncia os livros escolares “cheios de mentiras”, a “perversidade e leviandade” de certos professores; mostra que nas escolas superiores as teorias contrárias à Revelação eram elaboradas “com o único intuito de dissimular e ocultar o que as instituições cristãs tinham de mais salutar”.

Com isto chegavam a “inconseqüências e absurdos”. Quanto ao “plano de ensino da História tendente a tornar a Igreja suspeita, os Papas odiosos, e persuadir a multidão de que o governo pontifício era um obstáculo à gradeza da Itália”, “nada se pode afirmar que mais revolte a verdade”, diz Leão XIII; isto é “mentir violentamente sobre fatos evidentes e notórios.

Enganar conscientemente a outrem, com intuito criminoso, é por maldade envenenar a História”.

Quanto aos efeitos deletérios dessa ação anticristã, que dissemina uma História “escravizada ao espírito de partido”, o Breve os enumera com precisão e força².

O dever dos historiadores católicos

Tudo isto convida, a um nobre esforço de História apologética, “homens probos e versados neste gênero de estudos, que se consagrem a escrever a História de maneira que esta seja o espelho da sinceridade e da verdade”.³

A História apologética não é, pois, uma História feita com retoques fraudulentos, para servir às conveniências de uma causa. É proba, honesta, veraz, científica, inflexivelmente subordinada ao tríplice ditame de toda História digna desse nome: “não mentir, não temer dizer a verdade, não ceder ao desejo de lisonjear, ou de hostilizar”.

Se se pode falar de uma História apologética segundo a mente de Leão XIII, é simplesmente no sentido de uma História tão autêntica e científica como outra qualquer, mas que escolhe por temas os assuntos em que a História falsa procura guerrear a Igreja.

Quando falamos de História científica aludimos tão-somente a uma História feita segundo os bons métodos, e com o auxílio dos recursos científicos hodiernos. Os historiadores católicos devem ter em conta que “nada do que o engenho dos modernos inventou é alheio ao objeto de seus trabalhos” — escreveu Leão XIII noutro de seus documentos.

Além de ser obra rigorosamente imparcial, uma obra dessa categoria presta alto serviço à causa da religião e da sociedade, bem se vê. Tarefa digna de particulares “eruditos e adestrados na arte de escrever a História” – “historia scribendi arte” 6.

Tão nobre que constitui para a própria Igreja um direito e um dever: “já que o inimigo busca na História suas armas principais, cumpre que a Igreja combata em paridade de condições, e redobre seus esforços para repelir o assalto com valentia maior onde ele é mais violento”7.

E foi essencialmente com este intuito que Leão XIII franqueou “os depósitos literários” do Vaticano aos estudiosos. Tanto é legítima e gloriosa atarefa de uma História apologética bem entendida.

E, com efeito, não teria sentido o papel dos estudos bíblicos indispensáveis à Igreja para que ela exerça seu ministério num ambiente cultural cada vez ais trabalhado pela crítica científica, se não se reconhecesse francamente a liceidade de uma História apologética.

Na mente de Leão XIII, não só tais estudos bíblicoapologéticos eram cientificamente lícitos, mas da maior importância. Consagrou-lhes uma Encíclica que ficou famosa (Providentissimus Deus, de 18 de novembro de 1893), mas instituiu ainda a Comissão dos Estudos Bíblicos, para “assegurar a manutenção integral da verdade cristã e promover os estudos da Sagrada Escritura”8 e lhe pôs à disposição “uma parte de nossa Biblioteca Vaticana”, na qual prometia instalar, para uso da Comissão, abundante coleção de manuscritos e de volumes de todas as épocas, tratando de questões bíblicas.9

O apelo de Leão XIII deu origem a toda uma série de trabalhos históricos de orientação católica, que figuram com honra na bibliografia de nossos dias.

1 Saepenumero Considerantes II,2,a,b,c,d. Os chamados“centuriadores de Magdeburgo”, teólogos protestantes, escreveram no século XVI uma história da Igreja, de caráter fortemente anticatólico, com argumentos inconsistentes, distorções da verdade e muitos documentos falsos. Sua tese era de que a Igreja Católica havia sido infiel à primitiva Igreja cristã, tinha destruído a brilhante antiguidade grecoromana e jogado o mundo no obscurantismo, fanatismo e miséria da Idade Média. Felizmente, o Renascimento havia recuperado os valores do mundo antigo.
2 Saepenumero Considerantes IV,a,b.
3 Saepenumero Considerantes IV,b.
4 Saepenumero Considerantes IV,d.
5 Carta Apostólica Vigilantiae Studéique Memores, 30/10/1902.
6 Saepenumero Considerantes V.
7 Saepenumero Considerantes IV,i.
8 Vigilantia Studéique Memores, op. cit.
9 Ibid. Leão XIII apela nesta Carta Apostólica aos “católicos
mais favorecidos com bens de fortuna” para enriquecer
ainda mais este depósito. Na biblioteca do Vaticano, que o
próprio Pontífice expandiu pela aquisição da biblioteca
Borghese, bem como no arquivo do Vaticano, hauriram os
documentos para seus trabalhos, historiadores do valor do
Cardeal Hergenröther, do dominicano Deniffle, do
Cardeal Ehrle, do Barão Luís de Pastor e do Padre
Duchesne.

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 52 (Julho de 2002)

Desponsórios com a beleza

Quando voltamos nossos olhos para o passado e consideramos certos momentos áureos da Cristandade, não nos é difícil compreender como a boa harmonia entre o espiritual e o temporal, entre o religioso e o social constitui a perfeita ambientação para a existência da Civilização Cristã.

Numa atmosfera assim formada, nascem costumes, tradições e instituições abençoadas pela Providência Divina, e cujas belezas, em que pese o volver dos séculos, ainda perduram na lembrança dos homens.

Um exemplo? Fins da Idade Média. Uma cidade à beira-mar, cercada de lagunas, recortada por canais. Durante o dia, as fachadas de seus edifícios góticos admiram-se a si mesmas, refletidas no imenso e irrequieto espelho de suas águas. Pela noite, as luzes que escapam dos interiores apalaciados se confundem com as cintilações das muitas lanternas acesas em pontas de estacas que se cravam no fundo do mar… É Veneza, a feérica! A célebre Rainha do Adriático tinha uma forma de governo peculiar.

Não era dirigida por monarquias hereditárias. A República Sereníssima de Veneza tinha por soberanos os chamados doges, que eram eleitos e ocupavam o cargo por um período determinado. Ora, essa instituição doganal é uma das jóias preciosas da História da humanidade. Em torno dela nasceram e desabrocharam diversas maravilhas que não existiriam se aqueles homens desistissem de ser doges, se quisessem ser reis ou príncipes como os de outros povos. Porém, como assumiam a sua qualidade especial de dirigentes, a bênção ligada àquela instituição prevalecia e se estendia sobre toda a sociedade veneziana.

A começar pelo próprio Palácio dos Doges, edifício magnífico como símbolo do poder público e da grandeza de um povo, com seus amplos salões ricamente decorados, suas paredes recobertas de tapeçarias e pinturas lavradas por mestres famosos, e com sua arquitetura externa que é um verdadeiro e quase insuperável requinte do estilo gótico.

Mas o doge era também o protagonista de um costume em que se pode perceber de modo particular a mencionada harmonia entre o espiritual e o temporal. Trata-se dos desponsórios de Veneza com o mar.

De longe se vê a movimentação na Praça de São Marcos, os sinos do Campanile dobram festivamente, a multidão se acotovela e vai abrindo passagem para o cortejo do doge que, após ouvir a Missa solene, deixa a Catedral com o seu séquito, cercado de toda pompa e esplendor.

De longe se vêem miríades de gôndolas dirigindo-se para o meio do
Adriático, com músicos tocando composições de Vivaldi, pessoas cantando e festejando. A melodia se faz ouvir cada vez mais perto, o som das vozes e cantigas torna-se mais intenso.

Dali a pouco esse cortejo de pequenas embarcações estaciona no mar alto, enquanto as águas continuam a ser remexidas pelas batidas pesadas dos remos de uma imensa nau que surge logo atrás. É o famoso Bucentauro, todo esculpido e todo folheado a ouro, todo elegante com suas tape çarias pendentes do tombadilho, trazendo a figura majestosa do doge em trajes de gala, revestido do barrete frígio, acompanhado do famoso Conselho dos Dez, dos altos membros do Clero, das damas e cavalheiros da aristocracia veneziana.

As batidas nas águas se tornam mais suaves, os remos se levantam. Expectativa geral. Então, de um escrínio precioso o doge retira um anel ainda mais rico e o lança ao fundo do mar. A música recobra intensidade,
ecoam vivas e aplausos, bandeiras e bandeirolas se agitam: estava afirmado, uma vez mais, o poder de Veneza sobre o Adriático e o Mediterrâneo.

Os remos do Bucentauro feriam novamente as águas e o barco imponente retornava para a Praça de São Marcos, entre músicas de violinos e os brados da população que aclamava o seu governante. A festa prosseguiria no Palácio dos Doges, nas luxuosas residências, nas praças e canais venezianos, até que se extinguissem os últimos ecos dos violinos, até que se emudecessem as vozes envolvidas na noite da velha e sereníssima República.

Quando, tempos depois, o advento das grandes navegações abaloua supremacia marítima e comercial de Veneza, esta se deu conta de uma outra realidade: perdera o império dos mares, mas ganhara o império da beleza.

Ela aproveitara o tempo de sua opulência para se encher de palácios, de obras-primas imortais, para fazer-se umas das cidades mais lindas e talvez a mais original de todo o universo. E no momento em que decaía comercialmente, as nações insaciáveis das maravilhas dela começaram a visitá-la, a freqüentar a feérica moribunda que ia expirando. E todos lhe traziam o tributo de sua admiração: o mundo inteiro ali se encantava e ali bastava, não querendo que Veneza morresse!

Então Veneza compreendeu que, continuando a vida de luxo, a vida de festa, a vida de arte, ela prolongava sua própria existência. Ela tinha uma beleza imorredoura.

Sim, mais do que casar-se com o mar, a venturosa Rainha do Adriático desposara-se com o pulchrum…

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 64 (Julho de 2003)

Modelo de santidade

Nossa Senhora é para nós o exemplo perfeito de santidade. Ou seja, se nos modelarmos inteiramente segundo Ela, alcançaremos a completa semelhança com Nosso Senhor Jesus Cristo. Se A tomarmos como ideal, acreditarmos na eficácia da devoção a Ela, e tudo fizermos em estreita união com Maria, a Ela nos assemelharemos.

Assim, devemos pedir a Nossa Senhora, com todo o empenho, a graça de uma profunda compreensão de suas altíssimas virtudes, as quais havemos de imitar. E que Ela nos faça participar, em grau sempre crescente, da sua insondável fortaleza. Maria é a Virgem forte e combativa, a Virgem intransigente e absolutamente inflexível diante do demônio, do mundo e da carne. Supliquemos a Ela essa intransigência, antes de tudo contra o que há de mal em nosso interior; em segundo lugar, contra o que há de mal fora de nós — tendo em vista nossa própria santificação.

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 76 (Julho de 2004)

Guerra de tendências

A vida de Dr. Plinio, analisada à luz da batalha das tendências por ele travada e transposta para a história dos povos, permitiu-lhe formar princípios dos quais deduziu uma teoria e com esta elaborou o livro “Revolução e Contra-Revolução”, que constitui, em grande parte, as memórias dele.

A primeira sensação que tive, relacionada com a Revolução tendencial, foi a da pressa. Entre a geração de mamãe e a minha havia uma intermediária, de primos. Dona Lucilia tinha, em números redondos, trinta anos a mais do que eu. Assim, entre ela e mim havia primos quinze anos mais velhos do que eu, parentes e vários amigos da família.

Choque entre dois modos de ser

Pouco depois de Dona Lucilia, começava a aparecer uma geração na qual a alegria do viver estava deslocada. Não era mais o bem-estar daquela placidez, com tempo diante de si, mas uma forma de vivacidade que consistia em andar e falar depressa, em estar continuamente alegre, satisfeito, em contar coisas tendentes ao engraçado, ao divertido, ao sensacional.

Eu presenciei, mas de forma confusa, o choque desses dois modos de ser e notei que, ou me engajava nesse modo de ser novo e mudava minha personalidade, abandonando essa placidez e tomando esse trem que ia para a frente, ou seria tido como sem graça por essa gente nova. Era toda uma orquestração tendencial que ia nascer, na qual a estabilidade fecunda, pensativa, forte, mas compassada, cedia lugar ao corre-corre em busca de prazeres, agitação e excitação.

Conferi esse modelo comigo mesmo, perguntando-me, entre outras coisas, se me adaptaria a isso. E pensava: “Eu não sou assim. Sou tranquilo, gosto das coisas plácidas e que andam passo a passo. Não quero essa alegria saltitante.”

Por exemplo, via determinada pessoa entrar em casa assobiando a última música da moda. Alguém perguntava:

— Que música é essa?

Gargalhada…

— Ah, você não sabe?! É tal música assim.

E sentava-se com uma cara radiante, quando eu não via razão para estar radiante. Aliás, não vejo nenhuma necessidade de passar a vida radiante, mas sim de modo tranquilo. É uma coisa completamente diferente. E concluía: “Não tenho embocadura para isso. Se fosse meter-me nisso, falsearia minha personalidade. Mas, pior, não se deve ser assim. Deve-se ser como quem? Como mamãe. Ali está certo, está direito, está bom…”

Estabelecia-se entre mim e os adeptos da nova mentalidade um diálogo de surdos que terminava amavelmente porque todo mundo era amável, mas com um pensamento assim na cabeça deles: “Esse menino não tem jeito… É um desmancha prazeres mesmo!” E eu com outra reflexão: “Essa gente não tem jeito. Não se pode viver perto deles. Eu vou destoar mesmo.”

Mecanização geral da vida

Essa impressão acentuou-se à medida que a influência do pós-guerra, carregada de vida mecânica, se intensificou. Em São Paulo, os carros puxados a cavalo foram ficando mais raros, enquanto os automóveis e bondes mais numerosos. A mecanização geral da vida foi entrando e dando um ritmo mais apressado a todas as coisas.

Fiquei colocado diante da seguinte situação: eu tinha tendência à lentidão e à preguiça. Sentia a preguiça como uma espécie de peso em cima de mim, que me tornava todos os movimentos lentos, lerdos, pesados, desagradáveis, e me fazia encontrar gosto na inação. Isso devia ser vencido por uma vida ativa. Ora, vida ativa só era possível no ritmo daquela que todo mundo levava, porque era necessário tomar o bonde, ir para o colégio, voltar correndo, ir ao dentista, depois passar por casa para fazer não sei o quê, e isso precisava ser feito dentro daquela velocidade, não tem remédio, do contrário “perdia o bonde”.

Donde uma espécie de reajuste interno tendencial para combater a preguiça, nunca permitindo deixar para mais tarde o que eu pudesse fazer logo. E começando sempre, se  pudesse optar, pelo mais desagradável. Porque para o mais agradável se tem ânimo; o difícil é fazer logo o mais desagradável, de maneira a nunca me permitir, nesse ponto, moleza nenhuma, mas dentro do corre-corre dos pés conservar a tranquilidade do modo de ser e da alma, de molde a dar, com a estabilidade antiga, uma force de frappe1 nova, juntando as duas reações.

Contraste entre a posição tendencial da pureza e da impureza

Ligada a isso, outra coisa tornou-se clara para mim: o contraste entre a posição tendencial da pureza e da impureza. A castidade tem isto de próprio: quem a vive verdadeiramente é comedido e encontra sabor em tudo, até nas menores coisas. Ela se contenta com pouco e se alegra muito com coisas pequenas; não precisa viver correndo atrás de delícias. Um pequeno prazer, um pequeno atrativo já a regozija inteira. Quando lhe acontece de receber uma delícia, o homem puro se alegra também e, cessada a delícia, ele não entra na depressão, mas continua a vida animado pela alegria que teve.

No homem impuro é tudo ao contrário. As alegrias pequenas não lhe satisfazem, parecem bagatelas. As coisas que se repetem lhe parecem enfadonhas. Ele só quer alegrias enormes e, quando elas passam, cai na depressão. Antes de chegar a alegria, ele fica na torcida; depois da alegria, vem a frustração. Essa é a vida do impuro. Não preciso entrar em descrições, porque todos nós vemos o mundo encharcado disso.

Eu notava muito o contraste nesse ponto entre pessoas de minha geração, em torno de mim, sonhando com maravilhas, e o desdém que tinham pelas coisas agradáveis e pequenas que a vida oferece. Eu me regozijava, às vezes, com essas coisas, mas não comentava com eles. Por exemplo: sábado à noite, tendo todo um domingo diante de mim, eu me deitava. Era o dia em que, em minha casa, se trocava a roupa de cama. A cama dava impressão de inteiramente nova; quarto tranquilo, todo revestido com um papel de parede de que eu gostava muito, um quadro de Nossa Senhora em esmalte, uma mesinha com pequenos objetos. Eu me deitava e pensava: “Como me sinto bem e estou contente! Vou ter amanhã o dia inteiro de repouso; irei de manhã à Missa, depois voltarei para casa e vou brincar com os soldadinhos de chumbo; chegada a hora do almoço, terei um superalmoço. À tarde, vou ao cinema e depois é o desfile nas confeitarias. Por fim, janto. Como é agradável deitar-me agora na previsão desse dia!”

Mas eu via os outros de minha idade indo dormir; era completamente diferente. Não tinham vontade de que chegasse a hora de repousar, queriam ficar conversando e mexendo. Era preciso ir arrancando-os para a cama, meio brigados com a governanta. A hora de dormir era triste porque iam entrar nas sombras da noite. Para mim as sombras eram amigas. Apagada a luz, eu ainda ficava ouvindo um pouco os grilos num terreno baldio perto de casa, com um cheiro de vegetação que vinha dali. Logo passava da reflexão para o sono. Contudo eu não ousava elogiar isso diante de ninguém, pois percebia que não sentiam isso assim.

A hora de levantar também me era agradável. Mas levantar sem corre-corre; sentar na cama e rezar, tomar um pouco a noção das coisas que me rodeavam: a luz que entrava pela veneziana, os sons domésticos, os ruídos da rua, a vida que começava a pulsar em torno de mim. Depois me levantava com calma e, primeira coisa: “Bom dia, mamãe!”, depois fazia minha toilette e começava a vida.

Outros se jogavam para fora da cama. Eu pensava: “Mas o que é isso? Essa eletricidade perto de mim!” Tinha vontade de dizer: “Fora!” Mas não podia, tinha de engolir por inteiro. Se fosse algum primo que ia passar a noite comigo e conversava com exagero, eu respondia pausadamente até que ele também se domasse um pouco. Outra coisa altamente apreciável para mim, mas não para ele: tomar café com leite, pão com manteiga. Não tinha geleia, nem queijo, nem outras delícias. Era o comum. Mas um pão no qual se sentia o bom gosto do trigo, uma manteiga feita do genuíno leite, passada abundantemente sobre o pão. Um prazer simples, mas cheio de suco para uma alma equilibrada.

Uma espécie de xadrez humano

Eram tendências que se chocavam. Resultado: eles gostavam de brigar, eu detestava a briga. Discussão, sim, é agradável, pois entra o florete do argumento. A meu ver, é a mais bela forma de esgrima que o espírito humano excogitou. É lindo! Disso eu gostava. Mas, brigar…! Então um diz para o outro: “Eu te parto a cara!” Que intenção é essa? “Primeiro, com a minha não pode. A sua, não tenho o menor intuito de partir, pela simples razão de que não perco tempo com ela. A sua cara me desinteressa do modo mais total possível. Nem sequer para quebrar, ela me importa. Concebo bem que você tenha as mesmas disposições a meu respeito. Portanto, cada um com sua cara, e não quebre a do outro.”

O senso da hierarquia, muito desenvolvido em mim, vinha de todo o ambiente doméstico de que falei, marcado pela recusa à pressa. No momento em que recusei a pressa revolucionária, preservei dentro de mim o senso da hierarquia. Porque a vida com pressa é feita sem hierarquia, as pessoas não têm hierarquia de valores e, no convívio, não existe a hierarquia de pessoas. Elas se cortam a palavra umas às outras. E me causava muita estranheza exatamente a vida igualitária dos meus companheiros de colégio.

Ficam assim apresentados alguns problemas com os quais me deparei ainda em pequeno: uma escolha e uma definição temperamental e tendencial; um choque entre uma posição e outra; depois esses choques se multiplicam, porque a posição inicial se desdobra em posições afins, tanto de um lado quanto de outro, formando uma guerra de tendências.

Então, havia pessoas com as quais eu estava em guerra total, ou seja, eram completamente opostas a mim. Elas percebiam isso, como eu também, e inaugurava-se uma verdadeira batalha, disfarçada pela educação comum. Quer dizer, não se podia mostrar, mas havia luta.

Eu notava também a existência de indivíduos divididos tendo, em parte, tendências boas que afinavam comigo e, em parte, tendências más que afinavam com a Revolução. Esses constituíam uma “terra de ninguém” entre os dois extremos de tendências opostas, e que estavam na guerra total, procurando acentuar nos intermediários as tendências afins para puxá-los ao seu próprio campo, constituindo uma espécie de xadrez humano. Eram a Revolução, a Contra-Revolução e o semicontrarrevolucionário, apresentados tendencialmente e já entrevistos no tempo de pequeno. Assim, minha vida de criança e de mocinho era levada nessa batalha das tendências, mas sem uma conscientização inteira.

Montando um vocabulário como quem confecciona uma joia imensa

Que papel faz dentro disso a conscientização?

Por incrível que pareça, sentia tudo isso em pequeno, mas, foi tal a inibição causada pelo fato de ninguém aludir a tais considerações, que só vim a explicitar essas coisas mais ou menos a partir dos meus vinte e cinco anos, e devagar. Implicitamente, eu tinha torrentes disso; porém, não saberia explicitar para os outros, como não saberia fazê-lo para mim. Ademais, para saber por em termos é preciso ter toda uma linguagem. É quase outra ordem da realidade e outra paragem do espírito humano, que exige um vocabulário próprio para se chegar a explicitar.

Esse vocabulário não se procura no dicionário. Encontra-se testando: “Tal palavra serve, tal outra não serve. O que quer dizer essa, o que quer dizer aquela?” No uso do dia a dia, reter as palavras: “Essa serviu para explicar tal coisa, vou reter; aquela outra palavra vai me servir, mas em tal ocasião…” Assim ir montando o vocabulário como quem monta uma joia imensa, com milhares de pedras preciosas ou semipreciosas, para poder explicitar essas coisas. Isso não faz uma vida mole, mas uma existência sumamente entretida. No dia em que o homem pode dizer antes de dormir: “Hoje encontrei uma palavra!”, esse foi um dia positivo na vida dele.

Quando explicitei isso para mim mesmo, consegui montar as regras que instintivamente eu tinha seguido. Então, em grande parte, a obra Revolução e Contra-Revolução constitui minhas memórias. Não que eu tenha pensado naquela ordem teórica, histórica, filosófica. Esses pensamentos não afloraram em minha cabeça assim, mas constituíam um magma fecundo no qual as ideias iam se ordenando.

As batalhas internas de um povo são parecidas com as de uma alma

Em sentido figurativo, cada povo tem uma cabeça, um espírito, uma alma, à maneira de um homem: o que neste são tendências diversas, naquele são partidos políticos, correntes filosóficas ou artísticas. As batalhas internas de um povo são extraordinariamente parecidas com as de uma alma. Logo, é conhecendo as lutas internas de nossa própria alma e da dos outros que interpretamos bem os fatos históricos.

Minha vida analisada e reanalisada à luz da batalha das tendências por mim travada, e transposta para a história dos povos, permitiu-me uma remontagem da minha experiência, formando princípios, dos quais deduzi uma teoria e com esta elaborei um livro.

Neste sentido, esse livro constitui as minhas memórias, mas não só. É a minha previsão. Porque, como na luta das tendências, percebi, com a ajuda de Nossa Senhora, quais eram as regras do jogo, daqui por diante sei como esse jogo deve continuar. Sempre aprenderei algo de novo, porque as tendências são insondáveis, e não presumo esgotá-las. Qualquer alma humana tem um fundo incognoscível. Entretanto, é possível conhecer muita coisa e, por aí, saber o traçado do futuro. A previsão política é, em boa medida, a análise de como estão as tendências hoje e no que elas vão dar amanhã. Com isso, a previsão política é fecundada como a água fecunda a raiz de uma planta. Na raiz do pensamento previsor está o conhecimento das regras das tendências. Essa é a vantagem de conhecer as tendências.

Entretanto, todas as coisas verdadeiramente muito elevadas são passíveis de serem exploradas. Por exemplo, a música. Quanta coisa magnífica se faz com ela, mas também quanta vilania! Todas as artes são assim. Ora, agir nas tendências é uma arte; logo, pode ser tomada para o melhor e para o pior.

Onde está a dignidade disso? Quando se vive toda essa intensa vida das tendências, há determinados momentos em que o espírito se distancia desse jogo e faz a pergunta: “Mas, afinal, o que aqui é verdade, o que é erro? O que é bem, o que é mal?” Passo, então, a fazer disso uma análise lógica, com argumentos, raciocínios, para saber como uma coisa se costura na outra. E faço, eu mesmo, a crítica do meu pensamento para verificar se ele enfrenta as objeções. Então, vemos surgir, à maneira de um píncaro de neve sobre uma montanha muito verde, a lógica fria, rutilante e, dentro da sua frialdade, espelhando melhor o Sol do que a relva nas encostas da montanha. E podemos formular a teoria.

Um modo de ser eminentemente hierarquizante

Por exemplo, eu tenho um modo de ser eminentemente hierarquizante. Não basta dizer que possuo esse modo de ser para provar que é justo que isso seja assim. Quem me dá o direito de ser assim? A ordem natural das coisas feita por Deus é assim? Se for, então é bom que eu seja assim. Do contrário, não é bom. Porque a medida de todas as coisas de nenhum modo sou eu, que fui criado por Deus. A medida de todas as coisas é Ele. O que Ele ensinou a esse respeito? Por que Ele ensinou? Qual foi a intenção d’Ele?

E aqui entraria a teoria esplendorosa, magnífica, de São Tomás que contraria o igualitarismo. Explica o Doutor Angélico que, ao criar seres que refletissem suas infinitas perfeições, Deus não poderia fazer um único ser, porque qualquer criatura é tão insuficiente para realmente espelhá-Lo que ela seria caricata.

Mas essas criaturas, por sua vez, para O refletir têm que ser diferentes umas das outras. Se Deus criasse dois seres iguais, Ele cometeria o erro que um gago pratica quando pronuncia duas sílabas inúteis: “Eu que-quero.” Porque na palavra humana cada sílaba tem um som. O resto é linguagem de criança, ou de uma pessoa que não tem a locução normal, bem construída. Então, por causa disso, Deus formou criaturas diferentes, e assim sendo, criou-as desiguais, pois não há seres diferentes sem que um seja superior ao outro em algum ponto. Logo, ou não haveria Criação, ou existiria hierarquia.

Então, Gloria in excelsis Deo! (Lc 2, 14). No fim, o cristal de rocha do raciocínio, em arestas tomistas definidas que rutilam ao Sol, é o encanto e a glória da montanha. Assim, nos entusiasmamos tanto com as tendências quanto com o raciocínio, e glorificamos a Deus que nos deu esta riqueza: sermos verdadeiros instrumentos de música de tendências e cristais reluzentes de raciocínio.               v

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 7/7/1979)
Revista Dr Plinio 257 (Agosto de 2019)

1) Do francês: força de ataque.