Reflexões sobre o Santo Sudário

 

 

  Ao contemplar o Santo Sudáriovemos como, durante sua vida
terrena, naquele Corpo o pensamento
enunciado nos Evangelhos repercutia
na voz, aflorava na fronte, bailava
nos olhos, exprimia-se pelos lábios
e gestos. Assim, a imagem ali
estampada é a prova, não só da
existência, mas da Divindade de Nosso
Senhor Jesus Cristo. É o Homem-Deus!

Analisando o Santo Sudário, parece-me que mesmo tomando
em consideração estar a Sagrada Face um tanto alterada
pelos golpes recebidos – como, por exemplo, o nariz –, ela revela outras
excelências de Nosso Senhor.
É fato que na sua forma nativa, perfeita, a fisionomia de Nosso Senhor
se apresentaria de modo ainda mais excelente. Mas per accidens uma
certa excelência maior aparece devido às próprias deformações que ela
sofreu. Deve-se entender isso como uma espécie de preliminar da análise.

 

Abismo de maldade
que causa assombro

 

Chama a atenção ver como não só o nariz visivelmente recebeu uma pancada e ficou deformado, mas o queixo também caiu um tanto. A
distância entre o ponto mais alto da fronte e a parte mais baixa do queixo é um pouco maior do que seria normalmente.
Isto tem, a meu ver, um efeito
curioso: na harmonia perfeita e divina de Nosso Senhor, sua Face deveria dar uma dupla impressão de uma Pessoa muito entregue ao pensamento, mas nem um pouco tenso. O que é natural, pois o pensamento não Lhe custava o menor esforço. Ele pensava com a facilidade e a abundância próprias à excelência das suas duas naturezas unidas hipostaticamente
na Pessoa d’Ele. Por causa dessa alteração fisionômica provocada pelos golpes, Jesus parece um pouco afanoso no pensar.
E, por uma coincidência feliz, percebe-se também que o seu pensamento versa sobre a dor e a perseguição sofridas por Ele, e a injustiça ali cometida, e também a respeito de tudo quanto Lhe aconteceu, as mais atrozes ingratidões, aberrações que chegaram a um ponto inimaginável. Sendo Ele a vítima, medita sobre os criminosos e o crime, a respeito

do qual qualquer meditação tem como ponto de partida a sua própria
santidade e, portanto, a imensa gravidade do fato de que contra o Santo
dos Santos tenha sido feita a violência das violências.

Por causa do estiramento da Face tem-se certa impressão de ser-Lhe
meio penoso sondar até o fim, pela meditação e pela reflexão, esse abismo
de maldade, o qual não é próprio a Ele estar medindo, pois mais Lhe
compete permanecer com a atenção voltada para as perfeições excelsas
de Deus. E esse abismo de maldade causa uma espécie de assombro expresso
na fotografia do Santo Sudário. E, junto com esse assombro, uma
tomada de atitude em consequência, ou seja, Ele repele totalmente a
atitude das pessoas que fizeram isso e, embora não esteja no momento
emitindo um juízo de quem vai condenar, a condenação já está vindo
no horizonte, inapelável e tremenda.

 

Convicção de que a
Ressurreição virá

 

Notam-se a profundidade, a serenidade, a seriedade da reflexão e a firmeza da consequência da conclusão. O pensamento durante todo o tempo é de uma solidez inabalável, todas as suas impressões foram nítidas e definidas. Tudo quanto Ele viu, rejeitou, pensou ficou para todo o sempre.

Por detrás aparece a Divindade. Porque se percebe que Ele não tem apenas em vista o criminoso, mas a Santíssima Trindade. Noto isso em algo de aveludado, sereno, imperturbável, de sublimemente elevado pelo que Nosso Senhor não desce de corpo inteiro até esse poço de infâmia para sondá-lo, mas tem um padrão do alto do qual Ele mede tudo isso.

A unidade de Pessoa com duas naturezas, a divina e a humana, em União Hipostática é inatingível por tantas ofensas que nem de longe tocam a fímbria da majestade serena d’Ele, mantida de tal maneira por inteiro que um mosquito, voando do lado de fora de uma pirâmide, é menos extrínseco ao que está dentro dela do que todos esses pecados são extrínsecos à santidade, à majestade, à divindade de Nosso Senhor. Jesus está completamente de fora, como quem diz: “Eles cometeram esse pecado, mas a minha santidade, a de Deus Pai e do Espírito Santo não foram atingidas. Nós nos amamos na Trindade Santíssima de um amor ao qual esse ódio não afeta em nada. Há uma paz enorme, uma serenidade, uma dignidade que essa corja de nenhum modo atingiu.”

Por outro lado, imaginemos Nossa Senhora, doloridíssima, dirigindo algumas palavras a seu Divino Filho. Ele Lhe responderia com tal suavidade que se diria estar sendo carregado nos braços d’Ela. Sem dúvida, existia neste Varão a consciência de que ao pé da Cruz estava a Mãe d’Ele. A Santíssima Virgem é o Paraíso de Deus. Portanto, dentro de todo esse horror, Ele estava junto ao seu Paraíso e tinha com isso um gáudio. Isso excede a todas as cogitações humanas.

Uma parte dessa serenidade vem da noção da inatingibilidade. E aí a atitude diante da morte é a mais surpreendente
possível. Porque Ele está morto, mas há uma qualquer coisa parecida com a consciência ou convicção da Ressurreição
que virá. De tal maneira que, de algum lado, a condição d’Ele de morto parece dizer: “Está tudo encerrado!”
Mas de outro lado há algo que afirma: “Nada está encerrado!” Só de olhar isto deveria dar aos assassinos
d’Ele uma insegurança de saírem ganindo pela rua, sem ter o que dizer.

 

 

Batalha dos definitivos

 

O queixo de Nosso Senhor parece ter recebido um golpe em virtude do qual a distância entre a parte superior e a fissura dos lábios ficou mada por eles diante de Mim é definitiva!
A que Eu tomo diante deles é definitiva! A minha morte é definitiva! Definitiva será minha vitória! É a batalha dos definitivos. Nesse embate
só falta o último lance que compete apenas a Deus e, portanto, a Mim. Esse lance é a minha Ressurreição, e esta não depende nada dos homens,
mas inteiramente de Mim! E isto virá!”

Com a pancada recebida, o nariz se alongou e isso confirma a impressão de ter passado por várias peripécias. Através de seu traçado, tornado assim indeciso, há uma decisão no
fundo, mais ou menos como a do homem que passa por muitas provas e as vence, permanecendo inabalável, imutável.

O Divino Redentor passou por todas as vicissitudes da Paixão, e em todas elas a perfeição da atitude foi inteiramente a mesma. Através das várias peripécias estampadas no nariz,
se nota a indefectível continuidade d’Ele até o “Eli, Eli, lamma sabactani” 1. Essa fisionomia parece dizer a quem a contempla: “Tu passarás pelas mais assombrosas peripécias.
Sê firme, igual a ti mesmo, para seres igual a Mim até o fim! Os firmes vencerão, e não há bofetada nem golpe que os deforme. Para frente!”

Olhar que increpa todos
os pecados do mundo

Esse olhar de pálpebras fechadas eu não ouso comentar, pois logo que começasse a fazê-lo, senti-lo-ia fixar-se em mim e dizer:
“Tu ousas transpor para teu miserável vocabulário e o jogo das tuas impressões aquilo que é superior a qualquer cogitação? Eu estou
te olhando e tu pensas que alguma palavra é capaz de descrever esse olhar? A todo momento ele continua o mesmo e variado. Tu pensas seres
capaz de acompanhar essa variedade dentro da estabilidade perfeita?

Meu olhar te convida a penetrar no fundo de Mim mesmo, e quando começas a adentrar percebes que estás entrando no Sanctum Sanctorum2, dobras os joelhos, baixas a cabeça e te deixas envolver, não consegues erguer a tua fronte. Não fales do que não ousas ver!”

Sente-se que esse olhar increpa não apenas os pecados cometidos contra Nosso Senhor durante a Paixão, mas todos os pecados do mundo. Portanto, também tem a atenção posta nos nossos defeitos, embora não com uma recusa tão colossal; porém, enquanto defeito, Ele rejeita.

 

No Santo Sudário Nosso Senhor Jesus Cristo está nos ensinando por contraste. Há representações do Divino Redentor que nos fazem sentir uma certa afinidade com Ele, mas esta é a imagem do contraste por excelência. Diante dessa figura só tenho vontade de dizer a Nossa Senhora: “Minha Mãe, obtende que Ele me cure!”
A boca também traz a marca da Paixão, porque possui o sinal da dor, e ao fechar-se exprimiu algo da alma d’Ele que normalmente não se exprimiria. Não é propriamente uma boca de mistério, mas dá a entender: “Não falarei nada, e no meu silêncio está tudo dito, não me perguntes.” Não está na nossa medida ouvir o que Ele tem a dizer. Portanto, não O interroguemos, mas compreendamos por meio de seus lábios cerrados.

A Sagrada Face apresenta algo à maneira de uma contradição, porque o rosto do homem é o repositório da sua honra; entretanto, nessa Face Divina se encontra toda a honra como nunca houve, junto com todas as bofetadas e insultos que jamais foram descarregados contra alguém; tudo está acumulado ali. Calculem o que Nossa Senhora sofreu vendo isso! Simplesmente não há palavras!

Harmonia, equilíbrio
e beleza só possíveis
no Homem-Deus

Pode-se perguntar: a Paixão acrescentou algo a Ele? Poder-se-ia resumir a questão numa outra: a cicatriz acrescenta algo ao guerreiro? É claro! Nosso Senhor Se tornou cheio de cicatrizes. Quando nós, pelos rogos de Maria, O contemplarmos no Céu, veremos na Face d’Ele uma espécie de plenitude do que era em todas as idades da sua vida. Mais do que como era no Santo Sudário e na Cruz. Todas as suas cicatrizes estarão irradiando esplendores e aumentarão a beleza da Santa Face. Não temos ideia de como Ele será pulcro para nós olharmos.

A fronte tem uma proporção e está numa harmonia celestíssima com o restante do rosto, é a própria imagem da perfeição moral. O tamanho normal dela não aparece devido ao cabelo desalinhado, maltratado, desordenadamente posto pelo Sangue que escorre. Tudo isso causa uma sensação de que a testa desapareceu, como se diria de um castelo cuja parte mais alta pegou fogo.

Consideremos a estatura d’Ele. Percebe-se a extensão de ombro a ombro, a altura do pescoço e do tronco, o comprimento dos braços, formando uma proporção simplesmente monumental!

Em Nosso Senhor existe a conjunção de dois aspectos: a estabilidade e o movimento. Ele tem uma estabilidade perto da qual uma pirâmide do Egito é uma mexerica. E, de outro lado, possui uma facilidade de Se mover a qualquer momento, para um movimento dominador, natural, que afasta qualquer obstáculo para longe. Ele é o Rei rompu, brisé, anéanti – quebrado, despedaçado, aniquilado –, segundo a expressão de Bossuet, mas a essência d’Ele está completa. Ele domina plenamente. Olhando só esse equilíbrio já se compreende não se tratar de um mero homem. É o Homem-Deus.

Pode-se perceber nesse Corpo inerte o pensamento enunciado nos Evangelhos que repercute na voz, aflora na fronte, baila nos olhos, exprime- se pelos lábios e gestos. D’Ele saíram virtudes de toda espécie e cada uma delas era um hino de ordem e de elevação, algo que não podemos imaginar.

A meu ver é inteiramente óbvio que isso traz consigo a prova de que Ele existiu e era Homem-Deus. Só alguém de um valor igual ao d’Ele poderia conceber aquilo que ali se encontra.

 

A tal ponto que se eu não conhecesse Jesus e O visse passar pela rua, me ajoelharia e diria: “Meu Senhor e meu Deus!”

Em contrapartida, ao entrar em uma catedral gótica, no ambiente silencioso ou onde se tocasse uma música inteiramente adequada, causando- me a impressão de que todas as luzes e formas do recinto sagrado se corporificavam em sons; uma igreja toda florida de maneira a encher-se de perfumes odoriferíssimos, meu espírito desejoso de unum seria levado a perguntar: “Mas não haverá alguém que englobe e exprima melhor tudo isto?” Se nesse momento aparecesse Jesus, eu daria um brado: “Eis! Porém, Ele é muito mais belo do que tudo isso!” E, mais uma vez, exclamaria: “Meu Senhor e meu Deus!”

E ainda que, enquanto eu me desfizesse de veneração, gratidão e pedido de perdão, Ele me quisesse fazer um agrado, não era para mim o mais importante. O principal era querer a Ele: gratias agimus tibi propter magnam gloriam tuam3.

Pois bem, a Igreja Católica é o Corpo Místico de Nosso Senhor Jesus Cristo. Tudo quanto ela possui e ainda aparecerá dela no Reino de Maria é isso, com uma intensidade, uma fragrância da qual nós temos dificuldade de formar uma ideia. v
(Extraído de conferência de
9/2/1983)

 

 

 

1) “Meu Deus, meu Deus, por que Me
abandonaste?” (Mc 15, 34).
2) Do latim: Santo dos Santos.
3) Do latim: Nós vos agradecemos por
vossa imensa glória.
Gabriel K.

 

Cindindo a História de alto a baixo

Numa piedosa imagem de Nosso Senhor flagelado, chama muito a atenção a sublimidade do olhar, no qual transparece o sofrimento intenso do Divino Salvador, que medita com profundidade a respeito do significado transcendente, metafísico, sobrenatural de todas as dores pelas quais passa. O Redentor divide a História entre os que são d’Ele e os que são contra Ele.

 

Tenho a intenção de comentar uma imagem de Nosso Senhor Jesus Cristo flagelado. Dizer dessa imagem que é bonita é muito pouco, porque mais do que isso é profundamente impressionante, e de molde a despertar muita piedade. E é enquanto tal que desejo fazer dela objeto de nossas considerações.

Significado transcendente, metafísico, sobrenatural das dores

À primeira vista, quando me foram apresentadas fotos dessa imagem, fiquei chocado porque as feridas do Corpo sagrado de Nosso Senhor Jesus Cristo estão apresentadas com um tal realismo e de modo tão brutal, que o instinto de conservação do homem clama com aquilo, tem a tendência a fugir e achar que não é arte representar um horror daqueles de um modo tão horripilante.

Esse é um primeiro impulso que deve ser dominado porque é uma ingratidão. Tal será que, tendo Nosso Senhor Jesus Cristo sofrido tudo o que padeceu por nós, não queiramos sequer olhar para o Corpo chagado d’Ele porque isso pode nos desagradar. Como um primeiro impulso se compreende, pois é uma reação quase física. Porém, haveria ingratidão em consentir nesse impulso. Além de ingratidão é uma falta de respeito sem nome!

Compreende-se, então, que o escultor tenha chegado a esculpir de modo tão terrivelmente realista essa imagem, a qual pareceu-me ser uma escultura espanhola, com aquele realismo próprio das imagens sobre a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, e que deveria datar de fins do século XVIII, mais provavelmente do século XIX. Soube depois que ela se encontra no Canadá.

Consideremos, nas seguintes fotos, alguns aspectos dessa imagem.

Algumas coisas me agradam extraordinariamente nessa figura. A primeira delas que me chama mais a atenção é o olhar profundamente pensativo, meditativo. Tenho visto incontáveis crucifixos em que Nosso Senhor parece abismado – aliás, santamente – na consideração da sua própria dor, e onde o artista procura atrair a atenção para os sofrimentos do Divino Crucificado a fim de provocar compaixão. Nesses crucifixos o próprio olhar do Redentor, muito legitimamente, parece perguntar: “Pelo menos nesta dor, tu não tens pena de Mim?”

Porém, aqui eu interpreto o olhar de outra maneira. É bem verdade que a dor está presente. É o olhar de uma Pessoa que sofre intensamente, mas, por cima da dor, nota-se que há uma reflexão profunda, consternada de Quem pensa profundamente a respeito do que Lhe está acontecendo, do significado transcendente, metafísico, sobrenatural de todas as dores pelas quais Ele está passando, e que constitui propriamente uma meditação.

Nosso Senhor enquanto pedra de escândalo

É uma meditação sobre a sua própria Paixão, como Ele gostaria que nós fizéssemos e que, segundo interpreto olhando a Face sagrada, parte do mais alto ponto de consideração em que uma mente humana possa se colocar. Mas é, ao mesmo tempo, uma reflexão que vai até o mais concreto, palpável, miúdo, o mais distante da transcendência, e une tudo numa vista em comum, numa consideração global não só do que fazem contra Ele, mas também do que realizam por Ele.

De maneira que estão contemplados não apenas os homens vivos nessa ocasião, mas todos os que ao longo dos tempos meditariam esse passo da Paixão e seriam frios, indiferentes, cruéis, ou O adorariam transportados de amor e admiração na consideração da situação em que Ele está.

Tudo isso é considerado, o que me faz lembrar a palavra do Profeta Simeão sobre Ele: Pedra de escândalo que dividiria os homens para a perda e a salvação de muitos, a fim de que se revelassem as cogitações de muitos corações (cf. Lc 2, 34-35). Quer dizer, dividindo, cindindo a História de alto a baixo em dois: os que eram d’Ele e os que eram contra Ele, salvando-se uns e perdendo-se os outros. Parece-me que essas considerações altíssimas, e outras ainda, estão expressas nesse olhar, que pousa ao longe, num ponto indefinido.

Entretanto, há uma altaneria na posição d’Ele pela qual, por mais que esteja alquebrado, não está arqueado. Pelo contrário, o tronco sagrado está ereto numa posição que se poderia chamar de nobre. A própria cabeça não está caída de modo desairoso, nem erguida de maneira arrogante, mas posta com uma naturalidade digna sobre o pescoço, e elevada como um Homem que está entregue às suas mais altas cogitações.

Notem a posição lindíssima dos dois braços. Dir-se-ia tratar-se de um personagem num ato de muito protocolo, de muita etiqueta. Nas cortes, muitas vezes o modo correto de postar os braços diante de um rei ou de uma rainha é esse. Assim está Ele.

No Corpo ferido pela flagelação vemos partes da carne sagrada intumescidas, algumas foram batidas e outras arrancadas. Embora esteja cercado por gente que ria d’Ele, Jesus não olha para essas pessoas, mas as transcende. Ele está infinitamente acima de tudo isso, entregue aos seus pensamentos, à sua oração. De tal maneira que se poderia colocar, entre os muitos títulos que essa imagem mereceria, a frase: “Iesus autem orabat”, como também “Iesus autem tacebat”(1).

Três aspectos do divino olhar

Observem como o manto da irrisão, apesar de tudo, cai composto, com a parte direita meio voltada para trás, indicando por esses discretos indícios a beleza e a força moral que não O abandonaram nem mesmo nas situações mais terríveis.

Creio ser este semblante a última expressão do comovedor. É Cristo enquanto pensando, refletindo, orando durante a sua Paixão. Julgo discernir nesse olhar três aspectos. Primeiro, muita dor física que se exprime aí, seguida de muita angústia diante do sofrimento que vem. É Alguém que está em pleno tormento e sente o tormento que ainda vem. Portanto, encontra-Se no auge do horror, em que Ele ainda não sofreu tudo, e a morte que o libertará está longe. Ele já sofreu tanto que perdeu toda a força para resistir; entretanto, ainda tem que aguentar enormemente. Há, por isso, uma ansiedade, uma angústia. Mas que angústia doce, suave, sem agitação, confiante! “Isto tem uma saída. Meu Pai atenderá minha prece, e Eu chegarei até o fim. Isto tem um sentido.”

Por outro lado, vê-se a tristeza profunda, mas uma tristeza moral, como que divinamente decepcionado com aqueles que O abandonaram. Não parece que o Divino Mestre Se lembra, nessa hora, não dos miseráveis que O estão chicoteando, mas dos Apóstolos que O deixaram? Ele parece estar revendo cada Apóstolo, um por um: pensando em São Pedro, sobre quem Ele construiu a Igreja; em São João, o Apóstolo Virgem, que horas antes ainda deitara a cabeça sobre o peito d’Ele para fazer uma pergunta na intimidade; em São Bartolomeu, de quem Ele mesmo disse que era um verdadeiro israelita no qual não havia fraude e que, entretanto, O abandonou também… Ele está pensando em todos os outros. E lembrando-Se com horror do filho da perdição que O vendeu, Ele está cogitando em todos aqueles que O trairiam ao longo dos séculos.

Entretanto, Jesus está pensando também em algo que O angustia enormemente, mas é magnífico: Nossa Senhora e a dor que Ela está sofrendo.

Porém, por cima disso, parece-me ver os olhos do pensador que está meditando, fazendo a Filosofia e a Teologia daquele acontecimento central da História, que é a sua Paixão e Morte. E contemplando tudo isso Ele está orando. A meu ver é manifesto haver dentro disso uma magnífica oração.

Nosso Senhor sofreu tudo isso pelos rogos de Maria

Quando uma pessoa pensa, costuma frequentemente formar um vinco precisamente nesse lugar da fronte onde, na imagem, sobressai uma vergastada profunda. A meditação do verdadeiro homem de Deus é muitas vezes acompanhada de dor, de tristeza e de amargura, faz sangrar a alma, se não o corpo, que envelhece, encanece, se consome, mas se eleva e se santifica.

Considerem no Corpo divino a tumefação do braço esquerdo: nem tem o contorno comum de um braço, mas está todo ele bailando em torno dos ossos. E esses braços ainda vão carregar a Cruz, essas mãos ainda serão cravadas no madeiro, até que Ele morra. Esta é a imensidade de tormentos que O aguarda depois de ter sofrido tudo isso.

Ali vemos amarradas as mãos sagradas do Onipotente. É bonito que o escultor as tenha apresentado inteiramente descontraídas; não há contração nervosa, mas estão como as mãos de um rei prontas para serem osculadas. É o Rei da dor.

Por nós, que somos escravos da Santíssima Virgem, essa imagem deve ser considerada de dentro dos olhos de São Luís Grignion de Montfort. Devemos entender que se Nosso Senhor sofreu tudo isso foi pelos rogos de Maria; se esse Sangue é aplicável a nós, é pelos rogos de Nossa Senhora; se nossa presença não causa horror a Ele, mas, pelo contrário, é aceita com misericórdia, é pelos rogos de Maria.

É com Ela, por Ela e n’Ela que nós podemos nos apresentar a Nosso Senhor Jesus Cristo. Maria Santíssima é o caminho necessário, por vontade de Deus, para nos aproximarmos de seu Divino Filho e sermos, não digo dignos, mas pelo menos de algum modo proporcionados para olhar essa figura, e pedirmos por nós e pela Igreja.

Considerações sobre o escultor da imagem

Agora, uma palavra sobre o escultor. A meu ver, esse homem fez uma coisa extraordinária no seguinte sentido: muitas vezes vemos em uma obra de arte a expressão da alma do artista que a produziu. Essa é uma qualidade, pois indica o modo pelo qual a pessoa exprimiu o que aquele tema lhe produzia no espírito. Contudo, muito mais bonito é quando o artista de tal maneira se deixa identificar com o tema, que a expressão de alma dele não aparece, e sim somente o tema. Nessa escultura não se sente o artista, mas apenas Nosso Senhor Jesus Cristo.

O artista de tal maneira viveu, por assim dizer, a dor de Nosso Senhor que ele O representa e se apaga. Não se percebe qual era o estado de alma dele, a não ser na extrema inteligência, propriedade, finura e, sobretudo, na extrema piedade com que ele apresenta a matéria; de resto, ele está ausente. Isso, a meu ver, é o auge do mérito dentro da obra de arte.                v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 10/2/1976)
Revista Dr Plinio 265 (Abril de 2020)

 

1) Do latim: Jesus, porém, orava. Jesus, porém, calava.

 

“Tenho sede”

Quando do alto da Cruz Nosso Senhor disse “tenho sede”, Ele sentia sede corporal, por ter vertido muito Sangue. Mas isso era um símbolo de sua sede das almas, conhecidas por Ele individualmente, especialmente as que viriam a constituir, até o fim do mundo, a Santa Igreja Católica. 

Em Jesus Cristo as naturezas humana e divina estavam hipostaticamente unidas, formando uma só Pessoa. Portanto Ele, Segunda Pessoa da Santíssima Trindade encarnada para nos salvar, era  verdadeiro Deus e verdadeiro Homem. Este é o ensinamento  da Igreja Católica a respeito de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Quis verter todas as lágrimas e todo o Sangue para nos salvar

Sendo Homem-Deus, Ele poderia ter permanecido na Terra o tempo que quisesse. E poderíamos imaginar que Ele ficasse fazendo apostolado, pregando, ensinando até o fim dos tempos, sem morrer. Todos morreríamos, mas nós somos como as águas que correm num rio. Jesus Cristo era como uma pedra celeste, junto à qual todos passam, se abrem e depois se fecham de novo. Ele fica ali de pé, parado, dando vida, beleza, esplendor a tudo.

Ele não quis isso, preferiu morrer na Cruz, depois ressuscitar e subir ao Céu e nos deixar, na aparência, longe d’Ele. Custa compreender que tenha sido assim, pois poderia haver algo mais  extraordinário do que se encontrar com Ele? Entretanto, Nosso Senhor Jesus Cristo julgou ser isso o melhor para a salvação dos homens.

Imaginem que Ele residisse em Jerusalém, num palácio esplendoroso ou num templo, porque estava à altura d’Ele morar dentro de uma igreja, como objeto contínuo de nossa adoração, não  precisando de repouso, de alimento, de nada, pois a vontade d’Ele era soberana; continuamente adorado, adorável e fazendo bem aos homens.

Se Jesus residisse em qualquer parte da Terra, sem dúvida se construiria uma enorme cidade em torno d’Ele, tal seria o número de pessoas que quereriam morar perto d’Ele. Ele poderia fazer este milagre: conservar a vida de Nossa Senhora junto a Ele.

Não é exprimível a quantidade de vantagens, de dons, de bondade e de tudo que os homens receberiam. Entretanto, Nosso Senhor não quis  porque nada disso salvaria os homens. Para salvar os homens era necessário que Ele sofresse, que o seu Sangue infinitamente precioso fosse derramado por nós em expiação dos nossos  ecados. E todo o bem que Ele nos pudesse fazer, estando nesta Terra, não seria comparável ao bem da Redenção infinitamente preciosa que Ele nos conquistou, a qual Nossa Senhora como corredentora do gênero humano obteve para nós.

Na circuncisão Ele verteu Sangue. Os teólogos dizem que simplesmente as gotas de Sangue ali vertidas já teriam sido suficientes para resgatar toda a humanidade. Mas tal é a insondável, incompreensível e adorabilíssima bondade de Nosso Senhor, que Ele não se contentou com isso e quis verter todo o Sangue que derramou na sua Paixão, Crucifixão e Morte.

Ele quis verter todas as lágrimas que verteu, sofrer tudo quanto sofreu, para que nós fôssemos salvos, e constituir com esses que ele remiu a Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Temos assim um meio de medir toda a glória que a Esposa de Cristo dá a Ele e de compreender como devemos amá-la. Por conseguinte, precisamos entender o que representa a repetição, na Santa Igreja atólica, do martírio sofrido por Ele.

Uma ideia muito bonita a respeito do universo Nosso Senhor Jesus Cristo remiu- -nos com o seu Sangue infinitamente precioso e, a partir do momento de nosso Batismo, somos transformados em templos do Espírito Santo e a vida da graça começa em nós  e, com ela, Nosso Senhor passa a viver em cada um.

Isso determina uma misteriosa união entre nós que estamos habitados pelo mesmo Deus, constituindo  um vínculo enormemente maior do que qualquer liame de amizade, de respeito, de consideração, de estima, de parentesco, seja o que for. O fato de que a divina graça habita em mim e num outro nos une mais do que todos os laços meramente humanos.

Às vezes, veem-se pessoas conversando sobre o parentesco que têm entre si, recordando os ancestrais, etc. Certamente é de se tomar em consideração. Mas o que é isso em comparação com o fato  e que o Divino Espírito Santo tem sua morada naquelas almas, e ambas são membros do Corpo Místico de Nosso Senhor Jesus Cristo?

Que maravilha se todos os membros da Igreja Católica compreendêssemos, por exemplo, isto: lendo no jornal que uma criancinha de um país longínquo acaba de ser morta, tendo recebido o Batismo segundos  antes de falecer, a alma dela passou a ser habitada pelo mesmo Espírito Santo que está na minha alma e, por isso, ela passou a ser parentíssima nossa pelo fato de se ter tornado uma célula viva do mesmo Corpo sobrenatural ao qual pertencemos: o  Corpo Místico de Nosso Senhor Jesus Cristo! Deus fez da Igreja a verdadeira obra-prima de toda a Criação.

Os antigos tinham uma ideia muito bonita. Diziam eles que, como na Terra nasceu, viveu, sofreu e morreu Nosso Senhor Jesus Cristo, então ela deveria ser o centro de todo o universo. E  maginavam que o centro da Terra fosse Jerusalém, porque ali, no meio de tormentos e de dores incomensuráveis, o Divino Redentor disse “consummatum est” e redimiu o gênero humano. Dali a sua Alma desceu ao Limbo para se encontrar com Adão, Eva e todos aqueles que Lhe tinham sido fiéis na Antiga Lei.

De lá voltou para a Terra, ressuscitou gloriosamente, inundou de alegria e de  lória a Nossa Senhora. E, depois de passar algum tempo ainda na Terra, subiu ao Céu do alto do monte Tabor com um esplendor, uma glória de que ninguém tem ideia. E assim a sua vida terrena estava terminada.

Fica-se com o coração partido. Mas como Jesus Cristo foi embora e nós ficamos na Terra, Ele deixou  quem o representasse, São Pedro, a quem Ele disse aquelas palavras magníficas: “Tu és Pedro, e sobre essa pedra Eu construirei a minha  Igreja e as portas do Inferno não prevalecerão contra ela” (Mt 16, 18). De lá para cá, formou-se a mais antiga dinastia que há na Terra, a dos pontífices romanos. Dinastia inesperada e singular, onde ninguém é pai daquele que o sucede e ninguém é filho daquele a quem sucede. Dinastia, entretanto, tão contínua e tão augusta: a enorme procissão  os papas através da História. Que magnífica série, que dinastia sem igual essa que vai de São Pedro até aquele que será o último papa sobre a Terra!  Que coisa grandiosa!

Imaginem, no dia do Juízo Final, o cortejo enorme dos papas, dos bispos que ao longo de toda a História apascentaram o rebanho de Nosso Senhor Jesus Cristo! Depois, o séquito dos sacerdotes  ue durante toda a História, ininterruptamente, renovaram de modo incruento o Santo Sacrifício do Calvário, rezando a Santa Missa. Em seguida, o imenso cortejo de todos os que viveram no estado religioso, almas especialmente consagradas a Deus: é a Santa Igreja que passa com sua luz, seu esplendor naqueles elementos que, ou exerceram dentro dela governo, ou foram chamados a ar especialmente o bom exemplo.

Por mais que possa haver vácuos, falhas nessa série, que grande quantidade de santos e de serviços prestados; que imensa glória até que o último papa, o derradeiro bispo e o último padre possam  soltar-se para Deus e dizer: “Está cumprido tudo, a tarefa foi realizada, a glória está conquistada. Senhor, encerrai a História, porque o fim de vossa Igreja na Terra chegou!”

Fonte de toda a verdade, todo o bem e toda a beleza

Se não me engano, foi São Pio X quem escreveu um documento no qual ele falava, de passagem, a respeito da civilização cristã. Tal documento foi lançado em fins do século XIX ou no começo do  éculo XX, antes da Primeira Guerra Mundial. Esse período representou o apogeu da Europa, em que ela estava no auge de todo o progresso, de toda a glória. A América do Norte, filha da Europa,  ma vez que era filha da Inglaterra, começava a tomar lugar entre as grandes potências. Dos vagidos de suas vastidões, suas brumas, suas selvas, de junto de seus mares esplendorosos, ia surgindo uma coisa que seria a glória e a esperança da última parte do século XX: a América Latina, nascendo como uma virgem, filha de Portugal, da Espanha, filha da Fé, prolongada em todas essas vastidões que vão desde o México  até a Patagônia.

Esse documento trazia o seguinte comentário: “Se quereis saber qual é a Religião que ensina a ordem divina ao mundo, olhai para os resultados. Vede as nações que confessam o nome de Jesus Cristo, como elas estão acima de todas as outras em glória, em poder e em toda forma de esplendor e perfeição. Eu vos pergunto, então: Quais as nações que têm a ordem perfeita, senão as que se orgulham do nome de Jesus Cristo? E qual, então, a fonte de todo o verdadeiro bem, de toda a beleza, de toda a maravilha que contemplais na civilização cristã?

Essa fonte está na própria Igreja Católica Apostólica Romana!

Cristandade, tu és bela, gloriosa! Entretanto, digo eu, a corola dessa flor não é nenhuma das nações que te compõem, mas a Santa Igreja Católica Apostólica Romana. E para que isso fosse assim,  osso Senhor Jesus Cristo sofreu tudo quanto quis sofrer. Sofrimento tão atroz que O levou a dar aquele brado magnífico: “Eli, Eli, lamá sabactâni?” – “Meu Deus, meu Deus, por que Me abandonaste?” (Mt 27, 46).

Pouco depois, como se estalasse de dor, Ele disse: “Consummatum est” e expirou… (Jo 19, 30).

A primeira canonização da História

Mas Jesus conhecia tão bem a glória que O esperava que, pouco antes Ele tinha dito a um ladrão: “Ainda hoje estarás comigo no Paraíso” (Lc 23, 43). Nosso Senhor tocou a alma daquele  miserável,  perdoou-o e profetizou essa coisa preciosíssima: ele não iria desesperar, nem pecar até a hora de morrer.

A Santa Igreja, por razões verdadeiras e excelentes, estabeleceu que o padroeiro da boa morte é São José, uma vez que ele morreu tendo Nosso Senhor a seu lado, ensinando-o a bem morrer, e  ossa Senhora junto aos dois rezando a Jesus por José, para que a morte dele fosse perfeita. Não se pode morrer melhor.

A morte de Nossa Senhora foi tão leve que os teólogos falam de “dormição”, como um sono. E quando Ela ressuscitou não dava a impressão de ter saído das garras da morte, mas de que florescia  ais uma vez. Excetuadas essas duas mortes, que outra poderia ser bela como a do bom ladrão?

Imaginemos a cena: o bom ladrão ao lado de Nosso Senhor, contorcendo-se de dor; um bandido que, tocado pela graça, estava arrependido e, em meio a todos seus sofrimentos, pensava: “Eu aqui, o meio de minha dor e vendo a dor d’Ele, sinto-me mais feliz do que em qualquer momento de minha vida! A morte se aproxima de mim com seus passos pesados e suas garras terríveis, mas Ele  lha para mim com amor e me restituiu na amizade d’Ele. Se eu pudesse ficar eternamente cravado nessa cruz, sofrendo como estou, mas olhando para Ele, ah, como seria bom! Só sou alguma coisa porque Ele olha para mim e eu para Ele. Nunca mais quero deixá-Lo. Se a morte me agarra e me leva, o que será de mim?”

Talvez nesse momento auge de dor, Jesus, que tanto sofria, mas olhava com tanta compaixão para a dor dos outros, tenha dito para o bom ladrão: “Tu hoje estarás Comigo no Paraíso”.

Assim, naquele momento em que a Inocência e o criminoso, contrito e penitente, se reuniam, ali estavam Nossa Senhora, São João Evangelista e as santas mulheres. A Santa Igreja fazia a sua primeira canonização. Como é benfazejo, assistindo às cerimônias de canonização conforme eram realizadas antigamente no Vaticano, tão pomposas e magníficas, com os sinos e as trombetas que  ocavam, etc., lembrarmos que a primeira canonização foi feita na dor e na aflição, na humilhação e no terror, mas com uma promessa incomparável! É glorioso para a Igreja Católica simplesmente esse fato de ela poder inclinar-se sobre a história desses ou daqueles que viveram na Terra, e dizer com poder infalível: tal pessoa está no Céu. É parecido com Nosso Senhor afirmando: “Tu estarás no Paraíso”. Não é igual, pois Nosso Senhor garantiu ao bom ladrão o Céu.

A Igreja não garante o Paraíso a ninguém, mas declara que alguém já falecido está no Céu, num alto grau reservado aos heróis. Quanta beleza e quanta glória da Igreja Católica! Ela deu origem a todas as pulcritudes da Europa, do mundo, e à maior de todas as belezas: a das almas!

Sede de almas

Foi por amor às almas que Nosso Senhor sofreu toda a Paixão. E quando Ele, do alto da Cruz, disse “tenho sede”, todos os intérpretes estão de acordo em dizer que Jesus sentia muita sede  corporal, o que é explicável por ter vertido muito sangue; mas isso era um símbolo da verdadeira sede d’Ele, que era a de almas.

Sede da alma de cada um de nós. Ele nos conheceu individualmente, sabia como nos chamaríamos, como seríamos, como O injuriaríamos… Entretanto, conhecia também os momentos de bondade nos quais, Ele tocando nossas almas, nós nos arrependeríamos e voltaríamos para o bom caminho. Ele sabia de tudo e queria que nossas almas Lhe pertencessem. Quer dizer, que nossas almas Lhe fossem fiéis e a graça pudesse viver nelas. Foi por ter esta sede desmedida de almas que Ele sofreu também desmedidamente e verteu seu Sangue sem nenhuma medida, desde o primeiro instante em que no Corpo sacratíssimo d’Ele, enquanto agonizava no Horto das Oliveiras, começaram a estalar as primeiras veias e Ele principiou a suar Sangue, até ao fim de sua  paixão, quando veio Longinus e O perfurou com uma lança para que saísse o resto do líquido existente no seu Corpo santíssimo. Ele quis dar e derramar tudo por causa dessa imensa sede de almas!

Se é verdade que muitas almas se perdem, é também verdade que várias outras se salvam. Se pensarmos  simplesmente no mundo contemporâneo, no meio do oceano de pecados que se cometem,  quantas crianças vão para o Céu porque foram batizadas e morreram sem atingir a idade da razão, e brilharão no Paraíso como  sóis por toda a eternidade, compreenderemos quantas almas sobem ao Céu como bolhas de um gás dourado que sai do fundo da humanidade, dos extremos da Terra. E as almas dos recém-nascidos batizados, cantando para todo o sempre a glória de Deus.

A mais bela púrpura de todos os tempos

Em breve celebraremos o Domingo de Ramos, que precede de pouco a Paixão e Morte de Jesus. É o domingo em que Ele entra em Jerusalém aclamado pela multidão, montado num burrico, com mansidão e humildade, o  Filho de Davi e Rei por direito daquela terra que se entregara aos romanos pagãos, não soubera conservar a sua independência e, sobretudo, a sua fidelidade à verdadeira religião.

Nessa entrada triunfal, entretanto, Jesus está meio triste porque, apesar de receber com agrado aquela glória, por serem almas que O amam, Ele olha para elas e, conhecendo todas, não tem ilusão  obre nenhuma. A começar pelos Apóstolos que O acompanhavam. Eles não sabiam, mas Jesus estava ciente do que iria acontecer. Conhecia o sono do Horto das Oliveiras, a fuga medonha no omento em que Ele era preso, as infidelidades dessa gente para com Ele.

O Divino Redentor sabia que aquela aclamação toda provinha de um povo superficial, frívolo, ingrato, que naquele momento gritava “Hosana ao filho de Davi!”, mas pouco depois estaria preferindo Barrabás.

Vem a Quinta-Feira Santa e a Ceia na qual Ele anuncia: “Um de vós há de Me trair!” Todos começam a perguntar: “Quem será? Serei eu?” (Mc 14, 18-21). Fazem sinal a São João para que pergunte  Jesus.

Sendo ele o discípulo predileto, a oração de São João podia alcançar esse favor. Então Nosso Senhor lhe diz baixinho: “É aquele a quem Eu der o pão molhado no vinho”. Molha e como cortesia o  á  para Judas, o qual o recebe e, naquele momento, o demônio entrou nele (Jo 13, 25-27).

Nosso Senhor disse-lhe: “Judas, o que tens a fazer, faze-o logo” (Jo 13, 27). Judas saiu… E o Evangelho diz que era noite; ele entrou na treva, penetrou no horror! Terminada a Ceia, em que Jesus instituiu a Sagrada Eucaristia, todos saem do cenáculo entoando, segundo o ritual antigo, um cântico da Páscoa – isto é, a saída dos judeus do cativeiro do Egito e a travessia do Mar  ermelho, a pé enxuto, por um milagre de Deus – e se dirigem ao Horto das Oliveiras.

As tristezas vão-se acumulando na alma de Nosso Senhor e os Apóstolos não compreendem. Ele os manda aguardar, enquanto Se retira para rezar, levando consigo apenas São Pedro, São Tiago e  ão João. Ali começa a sua Paixão, na previsão de tudo quanto aconteceria. Pela pressão moral diante do terror dos acontecimentos – isso se explica inclusive do ponto de vista médico –, algumas veias capilares começaram a se romper e a derramar Sangue; e Ele suou Sangue no seu Corpo inteiro. Quando os romanos e os judeus O foram prender, com certeza a sua túnica estava purpúrea como a de um rei, mas com a mais bela púrpura de todos os tempos: o Sangue do Filho de Deus, que era o Sangue de Maria, porque a Carne de Cristo é a carne de Maria, e o Sangue  e  Cristo é o sangue de Maria.

Desenrolaram-se, então, todos os episódios da Paixão. Nosso Senhor sofreu a Paixão naqueles dias, mas previu o que a sua Igreja padeceria ao longo da História. Assim, Ele sofreu também por  udo isso, por todos os nossos pecados, por esses dias nos quais vivemos, mais catastróficos do que quaisquer outros da História da Igreja, em que o mal parece ter chegado ao auge. O Redentor Se sacrificou por tudo isso, para nos resgatar. Embora não quisesse que se praticassem esses  horrores, Ele não tirou a liberdade do homem. Este, recusando a graça, fez da sua liberdade o péssimo som que estamos vendo em nossos dias.

O “fatinho” da vida de cada um de nós

Diante disso, o que devemos fazer? O que Ele quer de nós? “Christianus alter Christus”: Todo  cristão é um outro Jesus Cristo. Nessa situação devemos dizer: Vou sofrer a Paixão com Nosso Senhor Jesus Cristo! Se eu tiver sido inocente como São João, estarei ao pé da Cruz amando-O e pedindo-Lhe que preserve a minha inocência. Se fui pecador como São Dimas, ficarei junto à Cruz, quer dizer, aos fiéis, ao que resta da Igreja, pedindo: “Não permitais que eu me separe de Vós!” Rogarei isso por meio de Nossa Senhora, sem cuja intercessão nenhuma oração é válida.

Se eu dever sofrer, ser odiado, perseguido e desprezado, porque fui fiel aos aspectos imutáveis e eternos da Santa Igreja Católica, que aconteça! Meu martírio de alma ou de corpo será um prolongamento do sofrimento de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Oh, glória! Peço à Mãe d’Ele que me obtenha coragem, e irei para a frente. Debaixo do desprezo e do ódio do mundo inteiro, estarei de pé para dizer: “Blasfemadores e prevaricadores, vós andais mal! Eu estou com Jesus e Maria, com a Santa Igreja Católica Apostólica Romana!” Devemos desde já apresentar esse pedido a Nossa Senhora, incorporando a ele todas as almas existentes, inclusive aquelas que pecam contra Deus, fazendo esses horrores, para que Ele as toque e as converta.

Contudo, merecem um lugar especial em nosso amor aqueles a quem Nossa Senhora chamou para serem, conosco, os batalhadores pela Causa d’Ela. Rezemos especialmente por todos os católicos  e nossos dias, para que sejam inteiramente fiéis e suportem carregar a cruz às costas, aguentem a crucifixão, dispostos a qualquer coisa para acompanhar até o fim Nosso Senhor Jesus Cristo e Nossa Senhora.

Os mais augustos episódios, os acontecimentos que o mundo de hoje reputa tão importantes não são nada em comparação com isso. Esses são os grandes fatos da História. Não obstante, devemos tomar em consideração este “fatinho” da vida de cada um de nós: lembrarmo-nos do instante em que fomos chamados, do momento em que alguém passou junto de nós e disse: “Vem, o Senhor te chama!”, quando sentimos a nossa alma tocada e respondemos: “Sim, eu vou seguir!” E, então, nossos passos começaram a percorrer as primeiras distâncias na enorme caminhada que nos esperava; os nossos olhos maravilhados e o nosso coração cheio contemplavam esta sublime “descoberta”: a Igreja Católica! Lembrarmo-nos de que isso foi conquistado para cada um de nós no instante em que Nosso Senhor disse “Consummatum est” e, junto à Cruz, com os sete gládios de dor traspassando o seu Coração, estava chorando a Santa Mãe do Redentor.

Flávio Lourenço

A morte é como um ladrão, vem quando menos se pensa. Que ela seja o fim dessa caminhada, no momento em que Nossa Senhora nos der a graça de fazermos um grande Sinal da Cruz e, com os  lhos postos numa imagem d’Ela e nosso coração transbordante de amor à Santa Igreja Católica, pudermos dizer também: “Consummatum est”.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 30/3/1985)

Divina seriedade de Nosso Senhor

Os algozes fizeram terríveis brutalidades contra Nosso Senhor, por ódio à virtude que n’Ele transparecia de modo tão magnífico. Quem chegasse perto do lugar onde Jesus estava sendo flagelado, ouviria lancinantes brados de dor, entretanto, mais harmoniosos e belos  que os sons de qualquer orquestra.

Se considerarmos Nosso Senhor ao longo da sua peregrinação durante os três anos da sua vida pública, de um lado para outro pregando às multidões, quer no primeiro ano  que foi gaudioso, em que a obra d’Ele iniciou-se e mais ou menos encantou todo o povo de Israel; quer no segundo, quando as dificuldades começaram a aparecer; quer no  terceiro, o qual foi dramático, chegando até o Gólgota e o “Eli, Eli lammá sabactâni” (Mt 27, 46) – Meu Deus, Meu Deus, por que Me abandonaste? –; em quaisquer desses  anos, como imaginaríamos Nosso Senhor?

Majestosa e serena tristeza de Nosso Senhor

Andando alegre de um lado para o outro, satisfeito, com a fisionomia contente, comentando despreocupadamente e de modo agitado os aspectos engraçados das coisas? Ou  com um fundo de tristeza amenamente presente na sua personalidade, marcando seus divinos olhares e tudo quanto Ele dizia e fazia, exprimindo-Se aos homens em termos de um tratamento afável, doce, bondoso, mas também com um fundo de tristeza não dramática, nem lancinante, mas habitual, estável – para empregar uma comparação  que não me satisfaz inteiramente, mas que diz algo –, um olhar que tivesse algo de luminoso, resplandecente, de tristonho como o luar?

Sem dúvida, esse olhar assim tristonho, mas resignado, atento, afável, bondoso, exprimiria o fundo da alma d’Ele.

Trata-se de saber por que essa majestosa, serena, imensa, afável tristeza de Nosso Senhor enchia de tal maneira  a alma d’Ele. Começo por me perguntar que relação há entre esse olhar e a seriedade, e concluo ser esta a própria seriedade do Redentor. Não havia outro modo de ser sério. Ora, se era essa a seriedade d’Ele, não deve ser também  essa a nossa seriedade?

Se isso é assim, devemos nos indagar qual a razão pela qual sua tristeza era tão grande quanto a amplidão de suas vistas.

Na divindade d’Ele não podia haver tristeza. Deus é de tal maneira perfeito, excelso, admirável, que n’Ele não cabe consternação. Havia tristeza na humanidade santíssima de Nosso Senhor. Mas essa natureza humana estava ligada hipostaticamente à Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, constituindo uma só Pessoa continuamente na visão  direta de Deus, no oceano de suas perfeições e de sua felicidade infinita e imperturbável por todos os séculos dos séculos sem fim.

Logo, essa tristeza não poderia vir de Deus, mas só do Homem. Porque Nosso Senhor veio à Terra como Redentor e se encarnou para nos resgatar, morrendo na Cruz como   Homem-Deus e fazendo, portanto, que um Homem oferecesse um sacrifício infinitamente precioso que perdoasse o pecado original e os pecados posteriores, e abrisse o Céu.

Então, torna-se claro que esse sofrimento só poderia vir do Homem. Como um Ser que era Deus, e de tal maneira participava dessa felicidade infinita do Onipotente, podia ter tanta infelicidade, tanta tristeza a propósito dos homens que são tão menos do que Deus?

Dir-se-ia que seria mais ou menos como se eu – vou falar em termos mundanos – recebesse de repente de herança uma fortuna inestimável, imensa, e no mesmo dia, ao  partir uma fruta, corto um pouquinho o dedo. Aqui está um pequeno incômodo que coincide com uma causa de felicidade extraordinária, mas nem se pensa nele. Se à noite   o dedo estiver molestando, começa-se a dar conta de que nele houve um corte de manhã, porque se pensou o dia inteiro na felicidade e na alegria em ter ganho uma fortuna.

Com a devida reverência aplicada à comparação, poder-se-ia dizer que a tristeza causada pelos homens em Deus seria pequena perto de sua infinita jubilação. Isso se explica  da seguinte maneira: Deus ama os homens com amor infinito, e por causa disso Ele quer ter o amor dos homens. Um amor deseja a paga, a retribuição, e quando não é  retribuído sofre de um padecimento tão profundo, que chegava a penalizar desta maneira o Verbo de Deus encarnado. Ele possuía um conhecimento direto, imediato de  todas as coisas. Olhava para todos os homens e conhecia – nem sei se se pode chamar discernimento dos espíritos – os estados de espírito deles.

Ponto de gravidade em torno do qual todos os homens devem girar

Deus via essa atitude dos homens que era de não O amarem: o povo eleito voltado completamente para as abominações que conhecemos; os outros povos para idolatrias e  pecados que enchiam todo o mundo de então. E Ele se sentia não retribuído no seu amor infinito, que não é o sentimento comum, por exemplo, de um professor que se  dedica muito aos alunos e vê que estes não reconhecem.

É uma coisa muito diferente. Sendo Deus, Ele era infinitamente digno do amor dos homens; e estes, recusando o amor do Redentor, ficavam péssimos, totalmente  recusáveis, porque o ponto de gravidade em torno do qual todos os homens, e cada homem em concreto, devem  girar é Ele, que é infinitamente bom, infinitamente santo, e  em função do qual todos nós devemos fazer gravitar a nossa vida. Ele é o Astro divino, o Sol divino. Nós somos os planetas que satelitizam em torno do Sol, e não olhamos  para Ele, nem queremos olhar. Vendo assim as criaturas que Nosso Senhor ama tanto, chega a causar n’Ele essa tristeza.

É uma tristeza por ver a falta de virtude; dos homens o Criador só quer virtude. O homem pode ter o que quiser, se não possuir virtude, por assim dizer, não interessa a Deus. E se Ele toma posição face ao homem é apenas com desejo de que se torne virtuoso e semelhante a Deus para se amarem. Ele rejeitado, a sua tristeza enche a Terra, mais ou  menos como  a luz do luar cobre de tristeza o céu.

Devemos querer que tudo seja semelhante a Jesus Cristo

Isto é um dos traços da divina seriedade de Nosso Senhor Jesus Cristo. E nós vamos ver que os Apóstolos, os mais chegados a Ele, antes de Pentecostes estavam cheios de  coisas destas.

Prestavam atenção em coisas terrenas, humanas, e tendo entre eles Nosso Senhor Jesus Cristo, levaram um tempo enorme para perceber e reconhecer que Ele era o  Homem-Deus, simplesmente porque não tinham apetência daquelas virtudes, não as amavam, e por isso seu entusiasmo não era ascendente, alpinístico, não escalava os cumes. Mas era um entusiasmo dos charcos, dos pântanos. Por exemplo, quando os Apóstolos caminhavam com Jesus para o Horto das Oliveiras, é possível que Ele os tenha  repreendido, dizendo: “Daqui  a pouco iremos orar e vocês vão dormir, enquanto o Filho de Deus começará a padecer.” Naturalmente, os Apóstolos, ligados a   brincadeiras e coisas semelhantes, dormiram. Depois, o resto nós conhecemos… Vamos transladar isso para nós.

Somos meras criaturas. Não temos, portanto, a união hipostática com Deus, mas fomos batizados e em consequência do Batismo começou a viver em nós a graça, que é uma participação criada na própria vida incriada de Deus. E há alguma coisa que não deixa  de ter vaga semelhança com a união hipostática. Nós somos os templos do Espírito  Santo. Isto posto, a grande preocupação nossa na vida é de notar na Igreja Católica, nos  Santos que Ela gerou, nos seus Institutos, nas páginas luminosas de sua História, aquilo que é santo e, portanto, lembra a Deus, a Nosso Senhor Jesus Cristo, porque nós amamos o que é parecido com Ele. Isso é o mais importante de nossa existência, como para Ele o centro da vida terrena era viver  na união hipostática e querer que os   homens recebessem a graça e O adorassem como Homem-Deus.

E, portanto, a nossa grande alegria – se somos fiéis ao nosso Batismo e coerentes na nossa Fé – deve ser ver que os homens estão amando Nosso Senhor, e que tudo no  mundo se passa de acordo com o Espírito, a Lei d’Ele, como se Jesus estivesse presente. Não queremos para nós outra coisa: que tudo seja semelhante a Ele.

Devemos ter um fundo de seriedade luminosamente triste

Sem dúvida, eu admiro Paris, descontados todos os aspectos mundanos. Porém, se me dessem para escolher entre viver naquela cidade, onde o pecado deixou tantas marcas e o amor de Deus algumas coisas tão maravilhosas – a Catedral de Notre-Dame, por exemplo –, ou numa localidade habitada pelo povo mais vulgar, mais desvalido, mais inculto da Terra, mas onde todos  amassem verdadeira e sinceramente a Deus, eu preferiria viver naquele povo, e sairia de Paris voando.

Porque, embora Paris seja tudo quanto é, e Notre-Dame signifique tanto para mim, prefiro ver almas e não apenas pedras, inteiramente segundo Deus, que amam o Criador em espírito e verdade, e tratando com elas tenho a impressão fundada e viva de discernir o Espírito Santo presente em cada uma. Por isso, quero ir para lá ainda que as  pessoas só usem uns tecidos grosseiros feitos de palmeira, comam apenas uns peixes ordinários que se pescam no rio local. Se nelas estais Vós, meu Senhor e meu Deus, é lá que eu quero estar!

Não sei se cada um de nós teria a mesma reação, e se faz assim de Deus o sol de sua própria seriedade.

Mas o fato concreto é que na alma do católico deve haver um fundo de seriedade, vaga e luminosamente triste pelas condições abjetas, altamente censuráveis do mundo  contemporâneo. Nós devemos nos sentir censurados, rejeitados, detesta odiados, e – oh, dor! – não porque é nossa pessoa, que pouco vale, mas porque rejeitam o Espírito  Santo que está em nós, recusam em nós a condição de membros do Corpo Místico de Cristo, que é a Santa Igreja Católica Apostólica Romana.

Se conhecessem os meus defeitos e me rejeitassem por essa causa eu os amaria, mas eles têm conhecimento de minhas qualidades e me recusam; então eu me sinto rejeitado no que é mais internamente  meu, naquilo por onde sou mais eu e pertenço a Nosso Senhor como ente batizado e que tem Fé, membro da Santa Igreja Católica. E então há em mim um fundo constante de tristeza, de seriedade triste.

Em Jesus, a seriedade não excluía, por exemplo, que Ele fosse de vez em quando à casa de Lázaro para tomar alguns dias de sossego, de tranquilidade, de bem-estar, de sentir o amor por Ele. Santa Maria Madalena O adorava, como sabemos, Marta O queria, Lázaro O amava e isso Lhe enchia a alma. Mas por toda parte, assim como a lua acompanha os passos do homem que anda pela noite, via-se a tristeza enluarada: “Os homens não querem a Mim porque não amam a Deus. Isto é uma espada que Me vara de alto a baixo.”

Gemidos de Jesus por causa de nossa indiferença

Se nós, uns nos outros, procurássemos apenas o amor de Deus e nos regozijássemos sempre, pensando nesse amor que há em nós, e quando notássemos em alguém uma falta de amor de Deus nos entristecêssemos, como Nosso Senhor, de uma tristeza cheia de amor, de vontade de extravasar- se para aquele a fim de trazê-a Deus; se assim   agíssemos, como a atmosfera em nossas Sedes seria, então, mais próxima do ideal de seriedade que tomamos quando nós participamos de um Retiro, como compreenderíamos mais completamente o que é a seriedade!

Não é porque desejamos que queiram odiassem, eu lhes oscularia as mãos e os pés e lhes agradeceria, porque  execro os meus defeitos. Mas essa gente, que tem a proibição de escrever o meu nome num jornal, odeia o que eu tenho de bom; isso me faz sofrer, me indigna. Não por mim, mas por Nosso Senhor, porque é Ele que estão rejeitando.

Aqui está a matéria-prima, a tintura- mãe de nossa seriedade. Entrando agora na Semana Santa,  contemplaremos as brutalidades, a injustiça, a crueldade que tiveram para com Ele, e teremos presente o tempo inteiro que fizeram isso por ódio à virtude que em Nosso  Senhor transparecia de um modo tão magnífico.

De maneira que, por exemplo, se algumas pessoas chegassem perto do lugar onde Jesus estava sendo flagelado, ouviram lancinantes gritos de dor d’Ele. Mas esses gritos eram mais  harmoniosos e mais bonitos que os sons de qualquer orquestra, mais atraentes que as exclamações de qualquer orador, por mais famoso que fosse.

Ele naquela púrpura de seu sangue, jorrando sobre todo o seu Corpo sagrado, era mais majestoso do que um rei na púrpura de seu manto real. Os carrascos viam isso e O  flagelavam porque queriam a vulgaridade, a indecência, a imoralidade. Então mais flagelavam, e Jesus gemia. Gemia por seu Corpo sagrado – um homem geme quando  sente isso –, porém muito mais por causa das almas tão ruins que O açoitavam, como Ele via o que aconteceria até o fim dos séculos.

Nosso Senhor nos olharia passando a  Semana Santa indiferentes aos gemidos, às dores d’Ele, e diria: “Até vós, a quem Eu chamei para um amor especial? Vós ouvis os meus gemidos, Me contemplais coroado de espinhos, como em outros episódios da minha Paixão, e também sois indiferentes!” E Jesus dando brados e gemidos por causa de nossa indiferença.

Maria Santíssima, fixai em mim as chagas do Crucificado!

Pensem na tristeza de Nossa Senhora diante disso. Provavelmente Ela sofria porque tinha algum conhecimento do que se passava com Jesus. Em suas santas intuições,  contemplando cada brado, cada gemido d’Ele, cada pedaço de carne que os açoites arrancavam e jogavam no chão – a união hipostática continuava com aqueles pedaços de  carne –, Ela, completamente transida de dor, sabia como seria a nossa Semana Santa. Quantas vezes, no lugar onde deveria estar o amor a Ele está o amor a outras coisas, ou quiçá a outras pessoas. Para pegar exemplos que não sejam amizades e afetos de si pecaminosos, suponhamos um amigo de quem gostamos porque é engraçado; de outro  porque é prestigioso e nos prestigia; de um terceiro porque nos admira. São essas as razões pelas quais se deve gostar dos outros, ou é porque eles se parecem com Nosso Senhor?

São Tiago era, por uma razão natural de parentesco intencionada por Deus, muito parecido com Nosso Senhor. De maneira que quando os algozes tiveram medo de errar na escolha e pediram para Judas indicar quem era, ele disse: “Aquele que eu oscular, esse é o Homem” (cf. Mt 26, 48).

Por isso, após a morte de Nosso Senhor havia quem percorresse distâncias enormes para ver o Apóstolo que se parecia com o Redentor. Ora, nós temos a Ele presente na  Sagrada Eucaristia… É Semana Santa. O que fazemos? O que isso arranca de nossas almas? Nós rezamos a Nossa Senhora pedindo- Lhe que ponha em nós as disposições de  alma d’Ela para vivermos a Semana Santa como deveríamos viver?

Há um hino da Liturgia que diz: “Sancta Mater, istud agas, crucifixi fige plagas” – Santa Mãe, fazei isso, prendei em mim as chagas do Crucificado. Isso nós deveríamos  afirmar durante  a Semana Santa. E quando chegar as três horas da tarde de Sexta-Feira Santa e adorarmos a Nosso Senhor na Santa Cruz, pensemos na seriedade e  procuremos sentir fixas em nós as chagas do Divino Redentor. Então peçamos a Nossa Senhora que faça de nós homens que vivam da tristeza de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 29/3/1988)

Revista Dr Plinio 240 (Março de 2018)

 

 

Paixão de Cristo

Embora fosse infinitamente superior aos homens, Nosso Senhor Jesus Cristo chegou ao extremo de receber todos os ultrajes que Lhe foram feitos em sua Paixão, com imensa doçura.

Assim sua superioridade tornou-se não apenas régia, mas, por essa doçura, digna de ser amada. É uma elevação enquanto corolário da misericórdia, consentindo em colocar-se num plano indizivelmente menor, por amor àqueles que Lhe são inferiores.

Plinio Corrêa de Oliveira, 18/10/1989

É de noite que é belo acreditar na luz!

Nossa Senhora acreditou na luz durante a terrível treva da Paixão. Nesse tremendo desamparo, vendo que cada chaga era uma razão humana para tornar indiscutível a morte de seu Divino Filho, Ela teve uma Fé plena.

Quando Maria Santíssima segurou aquele cadáver nos braços, no momento em que O acolheu para ser objeto dos cuidados e levado à sepultura, tendo aquela imensa derrota física nas mãos, Ela via toda a impossibilidade natural da Ressurreição e fazia um ato tranquilíssimo de Fé: “Ele ressuscitará. Eu creio porque Ele prometeu!”

Plinio Corrêa de Oliveira, 19/11/1971

Uma devoção da cristandade…

Nosso Senhor Jesus Cristo morreu numa sexta-feira e ressuscitou num domingo. Ambos os dias foram-Lhe especialmente consagrados, de modo que, semanalmente, relembram a Paixão e a Ressurreição do Senhor. Porém, entre estes dias há outro: o sábado. Como faria a civilização cristã para solenizar este dia posto entre duas datas tão sublimes?

 

Na Idade Média, sob o impulso dos monges cluniacenses, o sábado passou a ser consagrado a Nossa Senhora. Mas, por que razão a piedade católica instituiu esse costume?

A Ressurreição

Embora os Apóstolos tivessem um misterioso instinto de que a história de Nosso Senhor não podia estar concluída e que a última palavra ainda não fora dita — caso contrário haveriam se dispersado —, eles ainda não tinham atinado com a ideia da Ressurreição.

Não concebiam eles que Quem ressuscitara Lázaro — fato que eles puderam comprovar —, ressuscitar-se-ia a Si próprio; não imaginavam que Nosso Senhor aceitaria o desafio lançado pelo mau ladrão crucificado a seu lado: “Se és o Cristo, salva-te a ti mesmo!”(1). Cristo fez muito mais do que descer da Cruz e curar-se a Si próprio: Ele consentiu em morrer para depois ressuscitar-Se.

De fato, a Ressurreição é algo tão extraordinário e miraculoso, que o espírito humano é propenso a sequer imaginá-la. Pois, se um vivo ressuscitar um morto é incomum, quanto mais o é um morto voltar à vida por suas próprias forças, sair dos abismos da morte e dizer a seu corpo: “Levanta-te!”… Esta é uma espécie de vitória dentro da vitória, de esplendor dentro do esplendor, que o espírito humano não pode sequer imaginar.

A Fé da Santíssima Virgem sustentou o mundo

Porém, havia alguém que possuía plena certeza na Ressurreição de Jesus: Maria!

No sábado que precedeu a Ressurreição de Nosso Senhor, somente Nossa Senhora, em toda a face da Terra, teve uma Fé completa e sem sombra de dúvida na Ressurreição. Ela possuía uma certeza absoluta, uma expectativa imensamente dolorida por causa do pecado que havia sido cometido, mas imensamente calma, com a certeza da vitória que se aproximava.

A cada minuto que passava, de algum modo a espada da saudade e da dor penetrava ainda mais seu Coração Imaculado. Mas, de outro lado, havia a certeza de uma grande alegria da vitória que se aproximava. Esta concepção inundava-A de consolação e gáudio.

Maria Santíssima, nesta ocasião, representou a Fé da Santa Igreja e, por assim dizer, sustentou o mundo, dando continuidade às promessas evangélicas, pois, se não houvesse Fé sobre a face da Terra, a Providência teria encerrado a História.

Maria foi a Arca da Esperança dos séculos futuros. Ela teve em Si, como numa semente, toda a grandeza que a Igreja haveria de desenvolver ao longo dos séculos, todas as promessas do Antigo Testamento e todas as realizações do Novo; tudo isto viveu dentro da alma de Nossa Senhora.

Podemos até nos perguntar se este episódio não foi mais bonito do que quando a Santíssima Virgem trazia o Messias em seu seio. Numa ocasião Ela gestava o Messias e carregava dentro de Si a salvação do mundo inteiro; noutra, tinha Ela em Si a Santa Igreja Católica Apostólica Romana, portanto, o Corpo Místico de Cristo.

É à noite que é belo acreditar na luz

Na obra Chanteclair, de Edmond Rostand, há uma linda frase: “É à noite que é belo acreditar na luz”.

Que mérito há em acreditar na luz ao meio-dia? Mas, acreditar na luz à meia-noite, ou mais ainda, às três horas da manhã, quando até a própria meia-noite já vai longe, tem-se a impressão de que o curso das coisas nos afundou nas trevas definitivamente; aí é que é belo acreditar na luz.

Ora, Nossa Senhora acreditou na luz durante a terrível meia-noite da morte de seu Filho. Apesar de presenciá-Lo “rompu, brisé, anéanti”(2), Ela não teve dúvida nenhuma.

Quando Jesus morreu e Nossa Senhora teve seu divino cadáver no colo, Ela fez um tranquilíssimo ato de Fé, dizendo: “Apesar destas chagas e desta morte estraçalhante, Ele ressuscitará! Eu creio porque Ele prometeu!”

Este foi, sem dúvida, um dos mais belos momentos da vida d’Ela.

A fidelidade de Maria fez-Lhe merecer, até o fim do mundo, ser lembrada especialmente aos sábados

Compreende-se assim, com que tato a Igreja escolheu para festejar Nossa Senhora este dia que lembra exatamente a hora trágica da dúvida e do abandono de todos.

No sábado, Jesus estava na sepultura, cheio de perfumes e de aromas, envolto no sudário. O sepulcro estava selado por uma enorme lápide e guardado por soldados. Para todos estava tudo acabado, exceto na alma d’Ela, onde uma tocha de Fé e de convicção ardia com a certeza de que Ele ressuscitaria.

Este é o Sábado Santo, dia especialmente consagrado a Nossa Senhora.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 19/11/1971)

 

1) Lc. 23, 39.
2) Roto, quebrado e aniquilado.

O poder das lágrimas de Maria

No momento de Jesus ser retirado da Cruz para ser depositado, como sobre um altar, nos joelhos virginais e santíssimos de sua Mãe, Nossa Senhora olhava para Ele e chorava amargamente.

As lágrimas de Maria Santíssima, vertidas tão abundantemente quanto o sangue por Ele derramado, operaram algo extraordinário: para que os efeitos da Redenção santíssima se aplicassem plenamente a nós, essas lágrimas mereceram o que nós não mereceríamos, aquilo que os nossos pecados rejeitaram afastando de nós o Sangue de Cristo.

Pelas lágrimas de Maria, intercessora onipotente junto a Deus, a misericórdia exalada pelo Sangue de Cristo mais uma vez desceu até nós, nos resgatou, nos deu forças e nos incitou à luta.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 13/4/1990)

Paixão

Cada festa celebrada pela Igreja é acompanhada de enorme efusão de graças correspondentes às dádivas recebidas em vida pelo santo então celebrado. Isto se dá também quanto aos mistérios da vida de Nosso Senhor Jesus Cristo, ou de Nossa Senhora, que eventualmente consideremos em determinada celebração.

Ora, aproxima-se o dia em que a Santa Igreja reserva para contemplarmos liturgicamente o “mistério dos mistérios”, ou seja, a morte de Nosso Senhor Jesus Cristo e a redenção do gênero humano.

No momento em que Ele, expirando, disse “consummatum est” e sua Alma se separou do Corpo, a redenção se operou. O gênero humano, de perdido que era, passou a ser salvo. Nesse momento, nós fomos resgatados e a fonte de todas as graças se abriu para nós.

De fato, por causa de seu sacrifício, Nosso Senhor Jesus Cristo é uma fonte de graças aberta para todos nós; este sacrifício abriu para nós uma infinita torrente de misericórdia, que nos traz toda espécie de bem e de perdão, desde que verdadeiramente queiramos dela nos beneficiar.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 7/4/1966)

Fazei-me, enquanto viver, com meu Jesus condoer!

Um dos mais bonitos lances da Paixão foi o encontro de Nosso Senhor com sua Mãe.

Vinha Ele carregando a Cruz pela estrada, todo flagelado, coroado de espinhos, com todo o aparelhamento de horrores que conhecemos, quando, de repente, se encontra com Nossa Senhora. 

Imaginemos Jesus, o mais amoroso dos filhos, e Maria, a mais perfeita das mães. Como Ela há de ter chorado por ver seu Filho nessa situação, e como o Filho há de ter chorado por ver sua Mãe presenciar o infortúnio tremendo que acabava de cair sobre Ele?

Diante dessa cena, devemos nos perguntar: Como aliviar as dores de Nosso Senhor?

O ponto essencial para isso é pedir que sintamos verdadeira dor pelo que Ele sofreu. Devemos rezar a Nossa Senhora, fazendo esse pedido, pois, ao longo da Paixão, Jesus previa todo o futuro, previa todos nós que estamos passando pela vida e pela História, sofrendo como Ele, em união com os sofrimentos d’Ele.

Plinio Corrêa de Oliveira, 01/4/1995