Certos lugares que reluziram com invulgar esplendor nos áureos tempos da Cristandade conservam ainda hoje, e com intensidade por vezes surpreendente, uma admirável continuidade com seu passado. E em se tratando sobretudo de tradições religiosas, a fé muito acentuada pela qual sempre se distinguiu o povo espanhol nos leva a encontrar, nesta nação, significativos exemplos dessa continuidade.
Talvez o mais expressivo deles seja o Santuário de Santiago de Compostela. Situado na Galícia, ao norte da Espanha, seu nome deriva do latim “Campus Stellae”, isto é, Campo da Estrela. Segundo as crônicas, após o martírio de São Tiago o Maior, ocorrido em Jerusalém, seu corpo foi transladado por discípulos para aquela região hispânica e ali o sepultaram.
Com o passar do tempo, porém, perdeu-se a noção de onde seus restos mortais haviam sido depositados. Até um dia em que, no século IX, alguns camponeses avistaram uma luz inusitada refulgindo sobre o local.
Começaram a escavar e depararam com os ossos do grande Apóstolo. Em breve erguia-se o santuário, que haveria de se tornar um dos maiores centros de peregrinação de toda a Cristandade. Da Europa inteira se acorria para Santiago de Compostela, e num tal afluxo que, em determinadas épocas do ano, certos trechos dos caminhos transformavam-se em verdadeiras ruas, repletos de peregrinos!
É difícil existir lugar mais sagrado e mais venerável do que Compostela. O devoto que ali se apresente com verdadeiro espírito de peregrinação e a alma voltada para o sobrenatural, não pode deixar de sentir as bênçãos inapreciáveis de continuidade com as mais antigas e excelentes graças da Civilização Cristã. Bênçãos peculiares, diferentes das que se nota em outros santuários igualmente veneráveis como Aix-la-Chapelle ou Genazzano; bênçãos palpitantes num ambiente repassado de fervor e entusiasmo.
A igreja é o maior templo românico do mundo, embora sua fachada obedeça às linhas de um estilo posterior. É grandiosa, magnífica e imponente. À primeira vista, o exterior pode parecer excessivamente sobrecarregado. Mas depois de uma ponderada análise, e tendo nossos olhos se habituado a considerá-lo, percebe-se que essa sobrecarga é ordenada e muito bonita. As fachadas laterais também se revestem de uma extrema beleza, e todo o edifício compõe um harmonioso, digno e lindíssimo conjunto com os outros prédios da praça em que ele se encontra.
Internamente, possui a formosura própria da arte românica, com um pormenor bem espanhol: não há vitrais. A luz penetra através de uma claraboia cuja abertura foi cuidadosamente estudada para que todo o recinto receba suficiente iluminação. Em seus corredores laterais abrem-se diversas capelas, consagradas a certas invocações de Nossa Senhora e a alguns santos.
E no centro, a meio termo entre o altar-mor e a porta de entrada, existe uma capela do Santíssimo Sacramento, bonita e piedosa. Os fiéis que ali se ajoelham para adorar o Rei dos Reis, perpetuamente exposto, são acolhidos por uma tocante imagem do Sagrado Coração de Jesus, impregnada de unção e de bondade celestiais.
Entretanto, o local mais abençoado do Santuário é, a meu ver, a cripta onde se encontram os despojos de São Tiago o Maior. A urna funerária em que estão conservados é, na verdade, uma bela e rica imagem do Apóstolo, lavorada em ouro e pedras preciosas, com traços de inspiração ainda pré-gótica.
Êmula dessa bênção toda particular é a que se sente noutra capela do Santuário, situada embaixo da escadaria principal. Trata-se de uma construção dos tempos de Carlos Magno, o grande e piedoso monarca do Sacro Império Romano-Alemão, muito devoto de São Tiago e que ali esteve diversas vezes. Ali dentro torna-se ainda mais nítida a noção da continuidade desse presente com as magníficas tradições da Cristandade, e mais viva a ideia de que as graças de hoje e as de ontem se respeitam e se entrelaçam, constituindo um tesouro espiritual que nada poderá destruir!
Duas coisas merecem especial destaque no conjunto dos atraentes aspectos do Santuário. Uma é o “botafumero”, imenso turíbulo de prata que, em dias de festa, costuma ser levantado para a vasta abertura da cúpula e, lá no alto, descrevendo um gigantesco semicírculo, se põe a espargir o odorífero incenso por todo o recinto sagrado.
Para alguém que o assista pela primeira vez, esse interessante e louvável ritual de incensamento pode tomar um certo ar de exercício de força, como quem observa se os homens encarregados de puxar as cordas têm o necessário vigor para espalhar aqueles tufos fumegantes. E, portanto, no meio desse ato religioso, há algo de campesino e de um pouco tosco. Mas, de um tosco e um campesino saborosos, encantadores, que dão gosto de serem vistos, porque fazem a beleza dos costumes de um lugar como Santiago de Compostela.
Outra coisa que atrai especialmente a atenção, porque imbuída de simbolismo, é a presença dos sinos que tocam nas majestosas torres da igreja. Eles já ressoavam por aquelas regiões, nos dias anteriores à dominação moura.
Quando os invasores chegaram a Compostela, saquearam o Santuário, levando os sinos para uma mesquita de Sevilha. Séculos depois, durante os heroicos feitos da Reconquista espanhola, São Fernando de Castela recuperou estes mesmos sinos e ordenou que fossem recolocados em seu lugar de origem.
Quando ali estive, eu também como peregrino, ao ouvir o timbre desses bronzes, testemunhas de tantas epopeias, pensei no triunfo daquele grande rei espanhol e no triunfo ainda maior da Igreja Católica. E os dobrares que ecoavam das torres imponentes encheram minha alma de uma harmonia extraordinária.
Uma vez mais, reluzia a admirável continuidade das bênçãos da Civilização Cristã.