Nas suas reminiscências do tempo de menino, Dr. Plinio se comprazia em recordar as celebrações natalinas vividas por ele na “São Paulinho” do início do século passado, e mais especialmente em seu próprio lar, sob o carinhoso e maternal olhar de Dona Lucilia…
Para descrever uma noite de Natal na pequena São Paulo daquela época, é preciso fazer uma distinção entre as comemorações nas casas e as que se faziam no centro da cidade.
Nas residências, quatro ou cinco dias antes já se começava a sentir a alegria própria dessa data. Grandes pacotes chegavam das lojas, acolhidos e “confiscados” sumariamente pelos adultos, furtando os assim da curiosidade das crianças. Eram presentes, objetos para a árvore de Natal, enfeites destinados a chamar a atenção para o Nascimento do Menino Jesus, de um modo deleitável.
Além disso, nós, os pequenos, víamos as senhoras sair à rua e retornar com diversos embrulhos, não sem procurarmos nos lembrar do que havíamos pedido a São Nicolau que nos trouxesse. E este sempre os mandava o anelado presente!
Na verdade, não me recordo de uma só vez em que São Nicolau tenha trazido menos do que eu solicitara, e em várias ocasiões enviou mais do que o esperado por mim. Meu São Nicolau não era rico. Possuía apenas o suficiente para atender as minhas petições. Porém, era muito afetivo, e se percebia que ele fizera algum sacrifício para, de vez em quando, superar a minha própria encomenda!
A grande festa se aproximava, e um aroma de pão de mel, mesclado com o de chocolate, invadia as dependências da casa.
As crianças, que naquela época formavam um “submundo”, trocavam telefonemas — nós ligávamos para os nossos primos, e vice-versa —, contando as “últimas novidades” dos preparativos.
O dia 24 já amanhecia completamente diferente. Alguns cômodos estavam interditados para os meninos, os quais eram relegados para o jardim, se o clima o permitisse. Se não, para um quarto de brinquedos ou outro de crianças, onde devíamos passar o tempo. A partir de certo momento, nem neste último podíamos entrar, pois ali também estavam aprontando delícias.
Às 5 ou 6 horas da tarde, o movimento das ruas começava a declinar. Nas residências se acendiam todas as lâmpadas, o que conferia um ar mais festivo aos ambientes. Às vezes, as salas da frente — em geral, de cerimônia, e habitualmente fechadas nos dias comuns — tinham suas janelas abertas de par em par, permitindo ao cintilar das luzes refulgir no exterior, e aos transeuntes perceberem uma ou outra árvore de Natal erguidas lá, cá, e acolá.
Por volta das 9 horas da noite a expectativa da Missa do Galo era tão viva que a molecada na rua começava a bater com paus nos postes (então de ferro e ocos por dentro), ocasionando muito barulho, numa rudimentar imitação dos sinos das Igrejas. Estas começavam a se abrir a partir das dez horas, e logo chegavam os fiéis que desejavam obter um bom lugar para participar da cerimônia.
Aos poucos, ia se formando o público todo, e o templo sagrado se enchia. Em certo momento, o sino se punha a tocar para festejar o Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo. Todos se levantavam, cânticos natalinos eram entoados. Revestido com paramentos solenes, o sacerdote entrava portando a imagem do Divino Infante, a qual, depositada no Presépio, era venerada pelo público.
Terminada essa homenagem, o padre se dirigia para o altarmor e dava início à celebração da Missa do Galo.
Ao voltarmos da Igreja, as crianças eram reunidas numa ou duas salas da parte da frente da casa, intensamente iluminadas. Nós, vestidos de gala, aguardávamos em meio a animadas conversas, enquanto terminavam os últimos arranjos para a festa. Afinal, quando tudo se achava pronto, nossos pais e as governantas nos vinham buscar. Era então organizada uma descida pela escadaria externa da casa, passando pelo jardim, todos de mãos dadas e cantando músicas de Natal — bem entendido, em alemão.
Em seguida, entrávamos no quarto de brinquedos, agora completamente transformado: no centro, erguia-se uma grande árvore de Natal, toda recoberta de enfeites, e em cujo topo brilhava uma estrela prateada ou dourada, ornada com uma figura de Anjo. Aos pés da árvore, um lindo e tocante Presépio.
Nos cantos do quarto estavam dispostas as mesas com toda espécie de iguarias. Mas, recomendação formal: “não comer nem beber nada antes de ter rezado para comemorar o Nascimento de Nosso Senhor”. Eu, sempre afeito às delícias do paladar, procurava ver o que haviam preparado. Não ousava me desviar do meu lugar (mamãe não o toleraria!), mas, de quando em vez, lançava furtivas olhadelas para aqueles lados…
Dando prosseguimento às comemorações, todos se ajoelhavam junto ao Presépio e Dona Lucilia recitava algumas orações, creio que compostas por ela na hora. Eram dirigidas ao Menino-Deus, a Nossa Senhora e a São Jo-sé, pedindo abundantes graças para cada um de nós e para a família inteira. Ela rezava de modo suave, com muita seriedade e piedade profunda, procurando nos incutir os mesmos sentimentos que a animavam.
Nenhuma criança se atreveria a soltar uma lamúria porque a oração se prolongava, nem ousaria se levantar para pegar alguma guloseima antes da hora. A ordem estava mantida pela simples presença de Dona Lucilia, de um modo irrepreensível. Mas, por via das dúvidas as Fräuleins vigiavam seus pupilos, e não fariam a mínima cerimônia em reprimir severamente aquele que desobedecesse.
Após a recitação das preces, todos se levantavam, davam-se novamente as mãos e se punham a cantar e a girar junto à árvore de Natal. Pouco depois era servido o lanche.
De longe chegava o som dos sinos bimbalhando. De longe, também, vinham ecos de outras casas onde igualmente se cantava e outras crianças tinham o seu Natal. Quase nenhum barulho nas ruas. Toda a festa era das famílias, nos lares, voltada para o Menino Jesus.
O Natal ainda nos reservava algumas delícias. Uma delas, o repouso.
Terminadas as comemorações, os visitantes se retiravam para suas respectivas residências, e podíamos, afinal, descansar um pouco. Na casa voltava a reinar a tranqüilidade e um certo silêncio, posto que nós, meninos, juntos provocávamos uma tremenda barulheira. Agora éramos apenas minha irmã, uma prima que morava conosco, e eu.
Subia para meu quarto e, sob o ordenativo olhar da Fräulein, aprontava-me para dormir e me deitava. Uma vez na cama, pensava: “Ah! O repouso! Como é gostoso descansar! Como o travesseiro está bom, a roupa de cama fresca, a fronha aconchegante, o colchão macio!”
Mas, eu sabia que algo de melhor me esperava. Com efeito, na noite de 24 para 25 vinha São Nicolau, e deixava sobre os nossos sapatos, ou aos pés da cama, os presentes que nos eram destinados. Como já disse, aqueles mesmos que havíamos pedido. São Nicolau era muito exato…
Não será difícil imaginar como eu ficava na espreita de ver os meus novos brinquedos. Era-me muito agradável acordar de madrugada, pela expectativa, e sentir o peso dos presentes colocados junto aos meus pés. Eu dizia para mim mesmo: “Vou beber aos golinhos esta boa surpresa. Sei que acordarei várias vezes durante a noite, mas quero sentir o peso delicioso dos presentes a cada despertar, e depois adormecer de novo. Quando amanhecer, então será a hora de eu me lançar sobre os embrulhos!”
“No dia seguinte à festa de Reis a árvore era desmontada. Mais um Natal havia terminado…”
E assim, na manhã do dia 25, as alegrias natalinas se redobravam, diante dos maravilhosos presentes que tanto desejávamos.
Também nesse dia havia o que no meu tempo se denominava “o enterro dos ossos”. Tratava-se do costume de comer o que sobrara da ceia, mas conservando uma parte importante desses restos, tendo em vista o “Natal dos pobres” celebrado no dia de Ano Bom. Então, os pacotes de alimentos que não tinham sido utilizados, o que ainda era novo e podia ser oferecido a uma criança indigente, separava-se e guardava-se para aquela ocasião, acrescidos de mais iguarias que se mandava comprar.
Na noite de 31 de dezembro procedíamos ao mesmo cerimonial de Natal, a descida da escada até a sala adornada para a ceia, etc., sob o olhar dos pobres. Estes entravam conosco na sala, acompanhavam as orações, e em seguida nós os estimulávamos a terem liberdade de se servir do lanche. Como, naturalmente, eram muito acanhados, lhes dizíamos: “Pegue isto, tome aquilo”, etc., para deixá-los à vontade.
Dessa vez, as crianças da família estavam severamente proibidas de comer mais do que os pobres. A comemoração era deles, não nossa, e por isso devíamos nos contentar com o que sobrasse. A árvore de Natal permanecia no quarto de brinquedos até a festa de Reis. No dia seguinte, acontecia o que sempre sucede com as coisas neste mundo: era o fim. A árvore era desmontada, mamãe guardava os enfeites e o Presépio.
Mais um Natal havia terminado…
Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 69 – Dezembro de 2003
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